Graça Freitas. Uma falsa frágil, como as orquídeas que ama
Numa noite em que o céu tinha um brilho mais forte E em que o sono parecia disposto a não vir Fui estender-me na praia sozinho ao relento E ali longe do tempo acabei por dormir.
As primeiras linhas da letra de Estrela do Mar, de Jorge Palma, uma das canções de que confessa mais gostar, falam de uma noite sem sono e de solidão. Também por estes dias não serão muitas as horas que a diretora-geral da Saúde dorme, e não poderá deixar de se sentir só: o facto de ser o rosto da resposta à pandemia, com o que isso implica de responsabilidade e, em termos de julgamento público, de atenção a cada tonalidade do discurso, da expressão, a cada gesto e hesitação, não são partilháveis.
Como o pneumologista Filipe Froes, o representante da Ordem dos Médicos para as questões do coronavírus, outro rosto que os portugueses conheceram agora, Maria da Graça Gregório de Freitas abrirá todas as manhãs os olhos claros “com centenas de mails para responder e a sensação de estar a acordar já com atraso”. A sensação de que as horas acordadas são poucas para tudo o que há a fazer, cada interrupção um desvio no raciocínio, na capacidade de pensar sobre o que está a suceder e o que fazer.
É sem dúvida preciso ser forte para lidar com tanta pressão – e manter aquilo que os ingleses chamam de grace under fire (graça debaixo de fogo). Manter a serenidade e a bonomia – até alguma frescura; transmitir segurança. E, apesar de assumir que há coisas que ainda não sabe porque não se sabem, conseguir ainda assim tranquilizar quem a ouve.
Adalberto Campos Fernandes, o também médico que enquanto ministro da Saúde do anterior governo a nomeou para o cargo, quando o antecessor, Francisco George, saiu por limite de idade, em 2017, reconhece-lhe essa força. “É uma falsa frágil. Determinada, muito corajosa, mas delicada. Não é agressiva. E nesta situação em que estamos em combate, tem levado alguma pancada de forma injusta.”
Mas não é altura para sentimentos. Mesmo se sabemos, porque o contou ao Público em agosto de 2019, da reação que teve quando dez anos antes viu a diretora da Organização Mundial de Saúde declarar o início da pandemia de gripe A: “Chorei porque conheço pessoas cujos avós morreram na pandemia de 1918.”
Com a gripe A acabou afinal por morrer pouca gente; as mortes ficaram pelas dezenas. “Estou muito grata à natureza por termos tido uma pandemia benigna”, diz na citada entrevista, na qual confessa que o pior momento que enfrentara desde que entrara na DGS, em 1996, não dizia respeito ao seu tempo de diretora – apesar de nele ter enfrentado várias crises, incluindo dois surtos de legionela –, mas precisamente a um coronavírus, o da pneumonia atípica ou SARS, surgido em 2003, quando era (foi-o de 1996 a 2005) chefe da Divisão de Doenças Transmissíveis. “Não sabíamos o que a provocava e, até se perceber que era um novo coronavírus, foram dias de profunda angústia.”
Angústia até perceber: eis algo que não tem faltado no caso do covid-19, que até esta sexta-feira matou mais de dez mil pessoas no mundo, mais de mil só em Espanha, mais de quatro mil só em Itália.
Assume-o Constantino Sakellarides, que esteve no posto agora ocupado por Graça Freitas de 1997 a 1999 e como ela é especialista em saúde pública. “A maior qualidade que podemos ter é modéstia intelectual. E a última semana tem sido dramática: pensávamos há duas semanas coisas que não pensamos hoje. Começámos a abordar esta ameaça com o modelo da gripe pandémica e já o abandonámos; agora passámos para o modelo do ébola. É que este vírus tem uma mortalidade muito menor do que os anteriores coronavírus, mas transmite-se muito mais. As decisões antes tomadas tinham que ver com o modelo da gripe, que tem uma
Os elogios de Sakellarides são emulados por outro ex-diretor-geral da Saúde, José Pereira Miguel. “Não me lembro de onde a conheci. Penso que por estar ligada a um centro de saúde e que o primeiro trabalho que fizemos juntos tinha que ver com a forma como a hipertensão era controlada nos centros de saúde.” Convidá-la-ia a seguir para sua assistente na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa – foi-o mais de 20 anos, até ele se jubilar. “Tenho pena de que não tenha feito uma carreira académica, de que não se tenha doutorado, tinha todas as condições. Fui patrão dela, por assim dizer, por duas vias, quando fui para a DGS, onde ela fez um trabalho extraordinário, foi distinguida com a medalha de prata de serviços distintos do Ministério da Saúde por causa da gripe.”
Como pessoa, di-la “de diálogo e bom gosto, educadíssima, respeitadora dos outros. Abnegada, está sempre disponível para ajudar. Sensata, reflete sobre as coisas, não lhe salta a tampa. E muito leal, algo que para quem é dirigente é um aspeto fundamental. Tem também uma capacidade de ser relativamente fria em relação a decisões que têm de ser tomadas”. Algo precioso numa situação que Pereira Miguel vê como “nunca vista pelo escalar. Vejo críticas por aí de pessoas que não sabem do que estão a falar – é muito injusto”.
Rodrigo Marques, 36 anos, internista de saúde pública que foi aluno da atual diretora da DGS, acrescenta outras qualidades: “As aulas dela eram diferentes. Fazia uma coisa que era andar no meio de nós, sentar-se connosco no anfiteatro, era só ela, sem mais nada, e fazia-nos ficar atentos. As dos outros professores eram enfadonhas, as dela não.” Ficou com a impressão de alguém “extremamente simples, muito acessível, muito disponível”, mas também “muito assertiva: as coisas eram feitas à maneira dela. Fomentava a discussão de igual para igual, era descontraída. Mas era rigorosa e exigente e as regras eram para cumprir”.
Uma pessoa nascida no Huambo, há 62 anos, filha de uma “mãe que trabalhava só em casa” e um funcionário público da Administração do Território de Angola, então colónia onde viveu com a família “em muitos concelhos, muitas localidades pequenas, apesar de a minha escolaridade ter sido feita num colégio numa cidade”.
E que não se lembra, diz numa entrevista de junho de 2019 a um site relacionado com saúde, do que a fez querer ser médica: “Não sei se a figura do delegado de saúde, muito importante naquele território, terá tido influência. (...) Fui sabendo o que era a Saúde Pública, e para mim Saúde Pública era pensar mais além, de forma mais vasta do que apenas numa pessoa individual, num doente e numa relação médico-doente.”
Certo é que quando chegou a altura de entrar na faculdade foi na de Medicina, ainda em Luanda, que entrou. O ano era 1974; não o terminaria ali, partindo para Portugal em 75. “Uma transição muito pacífica”, assegurou ao Público, sem adiantar mais. Fez o internato no Hospital de Santa Maria, foi a seguir, durante oito meses, para o Centro de Saúde de Ponte de Sor, no Alentejo, onde se confrontou “na primeira linha com os doentes”. Na mesma altura em que ela e a humanidade se confrontavam com uma lição de humildade: “Acabei o curso em 1980 e a tendência de as doenças transmissíveis desaparecerem era já tão grande que se pensava que, com os antibióticos, os anti-inflamatórios, os antisséticos, sobretudo com as vacinas, a humanidade ia deixar de ser afetada por estas doenças. Exatamente no ano em que acabo o curso (…) emerge a sida.”
Lá se ia, conclui, “a nossa arrogância”, “o pensamento de que dominaríamos a natureza”. Talvez por isso se tenha dedicado ao Plano Nacional de Vacinação, que diz ser “um pouco a obra da minha vida”: é preciso nunca baixar os braços, nunca facilitar, nunca ceder à falsa sensação de segurança que fez, diz, as pessoas “perderem o medo das doenças porque ninguém as vê”.
Calhou a Graça Freitas, de quem o antecessor, Francisco George, declina falar (“Acho que não devo falar da minha sucessora”), liderar a luta do país face a esta terrível lição de humildade.
Para a jurista Leonor Furtado, que até há pouco tempo foi dirigente da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, a batalha não podia estar mais bem entregue. “É uma profissional excecional, sabedora, competentíssima, uma cientista séria como temos poucos em Portugal. E uma mulher voluntariosa como têm de ser todas as mulheres dirigentes, porque se nos exige muito mais do que aos homens; somos muito mais observadas e criticadas.” Suspira. “Ser dirigente superior mulher é complicado porque se está muito só. Imagino numa situação destas.”
Para além dessa solidão, as duas mulheres partilham o amor pelas orquídeas – flores de aspeto frágil mas muito resistentes. “É muito corajosa, enfrentou uma situação de doença grave e celebra ter ultrapassado isso. Gostava agora de lhe dar o abraço que sinto que ela merece – mas não se pode dar abraços agora.”
De repente, de um dia para o outro, a vida como a conhecíamos, puf. Ruas desertas, lojas fechadas, escolas encerradas, voos cancelados, pais e filhos que se viam de relance de manhã e à noite agora o dia todo juntos, filhos adultos que ligavam de semana a semana aos pais, agora todos os dias a lembrar-lhes que têm de ficar em casa, almoços e jantares de família ou amigos adiados sine die, no país do presentismo, muita gente em teletrabalho, outros sem poder trabalhar de casa nem fora dela e outros ainda para quem o mundo não parou, antes acelerou. Gente de máscara e luvas e gel desinfetante e distanciamento físico. Beijos e abraços proibidos até ver.
Por estes dias, em que a maioria está ligada dia e noite às redes sociais, o que não faltam são vídeos humorísticos, memes e quejandos sobre os tempos que vivemos. O “de repente, puf” é bem ilustrado por um vídeo que circula de uma família europeia de férias na neve falando descontraidamente do novo coronavírus. Não há problema, está na China, é longe, não é connosco. Lá em cima, começa a desenhar-se uma avalanche, mas eles não dão por isso. É lá longe, no Irão, não é com eles. A avalanche aproxima-se a grande velocidade. Só percebem quando lhes cai em cima. Puf.
Neste momento, a Europa é o epicentro da epidemia e vê, atónita, outros países fecharem-lhe fronteiras. A Itália vive a situação mais grave, em número de mortos e infetados, com 3405 mortes em 41 035 casos, seguida de Espanha, com 831 mortes em 18 077 casos. Portugal está em isolamento há uma semana, mas os números ainda não refletem as medidas tomadas pelo governo. Ontem, à hora de fecho deste jornal, os números oficiais apontavam para 1020 casos e seis mortos. Quando nos estiver a ler, todos estes números terão aumentado, provavelmente. O continente europeu, ao contrário daquilo a que está habituado, está particularmente vulnerável. O novo coronavírus é mais letal entre os mais velhos, com sistema imunitário debilitado e comorbilidades, como diabetes, hipertensão, problemas cardíacos ou respiratórios, e por aí fora, comuns numa população envelhecida como a europeia. Será essa uma das explicações para o facto de a Itália, cujo número de infetados é metade em relação à China, ter aproximadamente o mesmo número de mortos.
Enquanto uma vacina e medicamentos eficazes não forem criados, o mundo, e especialmente a Europa, não poderá respirar de alívio. Para combater a pandemia, os países erguem fronteiras, isolam-se, isolam a população, tomam medidas de contenção. De repente, de um dia para o outro, a vida como a conhecíamos muda.
Os mais velhos são os que estão em maior risco, mas, de acordo com os testemunhos de muitos filhos à beira de um ataque de nervos, parecem ser os menos preocupados. Não deviam, como explica o pneumologista Filipe Froes. “Todos estamos em risco, mas os mais velhos, e sobretudo aqueles que têm comorbilidades associadas, são os que estão em maior risco, por isso têm de ter mais cuidados e defender-se. É um problema de todos que todos temos de contribuir para resolver. A proteção individual e coletiva serve para nos defendermos a nós, individualmente, e a todos, em conjunto, e evitar a disseminação do vírus na comunidade. É o princípio da imunidade de grupo, que é o objetivo da vacinação em massa.” Como para este vírus ainda não há vacina, é fundamental que cada um cumpra a sua parte e siga as recomendações. Na opinião do médico, de um modo geral, estas estão a ser seguidas. “As pessoas agem dependendo da maneira como compreendem o problema, por isso é preciso explicar-lhes o problema de forma clara, compreensível e acessível, e essa é uma responsabilidade de todos nós.”
Júlio Machado Vaz não embarca em generalizações de jornalistas e considera uma injustiça encarar os maiores de 65 como um grupo homogéneo. Para os que resistem a ficar fechados em casa tem explicação, não justificação. “É uma geração que passou por muito e têm a perspetiva de que tudo passa. Com isto cruza-se o facto de serem mais agarrados às suas rotinas, algumas delas verdadeiros rituais, como ler o jornal enquanto bebe o cafezinho, de que é difícil abdicar.”
Dito isto, Júlio Machado Vaz chama a atenção de que “o isolamento deve ser físico, não social. Este tem de ser combatido, pelas redes sociais, pelo WhatsApp, pelo telefone, seja de que forma for. No outro dia, uma senhora contava uma história comovente. A filha pegou no carro e pôs-se do outro lado da rua e acenaram uma à outra da janela. É muito importante isto”, diz o psiquiatra, que nestes tempos de pandemia se preocupa tanto com a “geração sanduíche”, que tem de cuidar dos mais velhos e dos mais novos, como com a sua, que em muitos casos não domina as novas tecnologias e por isso está menos apoiada. “No meu tempo de jovem, analfabeto era quem não sabia ler nem escrever. Agora, há os infoexcluídos, que num momento como este estão muito mais isolados.”
E as consequências disto na saúde mental? “Graves. As duas que mais me preocupam são a depressão e o stress pós-traumático. Quando a crise for resolvida, resolve-se a parte física, mas as questões psicológicas arrastar-se-ão. Quando a quarentena acabar, vamos cair todos nos braços uns dos outros, mas isso não significa que não fiquem marcas, e em algumas pessoas não serão apenas marcas.” Para as evitar ou amenizar, o psiquiatra aconselha que se mantenham as rotinas e não se caia na tentação de deslizar para uma terra de ninguém em que os dias se sucedem aos dias em frente ao “quadrado”. “Levantar sempre à mesma hora, não andar de pijama, ler, escrever, ouvir música, fazer exercício físico, conversar com os filhos e os amigos, manter-se ativo, sobretudo mentalmente. Se a malta se deixa deslizar, é fácil perder a noção de a quantas anda. Temos de lutar contra isso.”
E, quando vencermos o vírus, porque vamos vencê-lo, voltaremos à tal vida como a conhecíamos? Maria João Valente Rosa, especialista em demografia, acha que não. O livro que está para lançar – Tempo sem Idade – fá-la pensar em tudo isto como uma oportunidade de redefinições.
Está a acontecer tudo muito depressa e os dados ainda são insuficientes para análises e conclusões, na opinião da investigadora, mas haverá lições a tirar.
“Os tempos que atravessamos são terríveis, mas é importante perceber o que podemos tirar desta experiência. Esta pandemia obrigou-nos a uma paragem brusca que fez acender algumas luzes encarnadas: tomámos maior consciência de que o nosso comportamento influencia a vida dos outros, que fazemos parte de um todo e que temos neste uma responsabilidade individual e coleti