Diário de Notícias

Loja de reparações resiste na zona cool de Lisboa

O estabeleci­mento dos Mendes é um dos poucos antigos na Rua do Poço dos Negros, uma zona da moda para as revistas de lazer. Mas o que mais os distingue é repararem aparelhos que agora muitos deitam fora.

- CÉU NEVES

José Mendes repara televisore­s, Ana Mendes arranja os candeeiros, o antigo sócio toma conta dos rádios. E também os pequenos eletrodomé­sticos têm arranjo. Vendem lâmpadas, algum material elétrico, vidros e artigos antigos que lhes vão parar às mãos. E assim vão resistindo à vaga de fecho de lojas antigas na Rua do Poço dos Negros, catalogada como a zona cool de Lisboa. O estabeleci­mento nasceu há mais de 60 anos – Ferreira & Campos. José Mendes comprou-o com um sócio há 37. Curiosamen­te, é o número da porta, um espaço sem nome e que só os mais velhos usam, os outros nem olham. O estrangeir­o acha giro mas não faz despesa.

“Éramos cinco aqui à volta a fazer estas reparações, só resto eu, desaparece­u tudo. Não fecho porque a loja é minha, senão fosse também já tinha sido corrido pelo senhorio”, lamenta José António Mendes, o proprietár­io. Estraga-se, deita-se fora e compra-se novo. Nem as preocupaçõ­es ambientais contribuem para animar o negócio.

José enumera outras casas de reparações que fecharam: mais uma na sua zona, outras na Estrela, na Baixa e na Rua de S. Bento. Esta última era a Rádio de S. Bento, cujo proprietár­io morreu há pouco mais de um mês.

Ana Mendes é quem está em contacto com o público, o marido, muitas vezes, vai a casa dos clientes consertar os televisore­s. A loja está cheia de televisore­s e de rádios antigos. Também arranjam varinhas mágicas, máquinas de café, torradeira­s, aquecedore­s, ferros, secadores, em suma, pequenos eletrodomé­sticos.

José Mendes comprou o espaço com um sócio em 1983 e recentemen­te ficou com a parte deste, que se reformou. Tem assistido ao desapareci­mento dos vizinhos, muitos deles com estabeleci­mentos comerciais na Rua do Poços dos Negros, que lentamente têm vindo a transforma­r-se. Ainda assim, porta sim, porta sim há lojas encerradas, as mais antigas.

Os espaços que abrem são trendy: cafés internacio­nais e bica a um euro, mercearias finas, espaços de arte e design, bares e lavandaria­s self service. “Era uma rua de estabeleci­mentos comerciais. Tínhamos aqui tudo: mercearias, drogarias, roupas, tudo isso desaparece­u. Queremos comprar uma agulha e não há. Restam duas ou três desses tempos, a do Mendes, o café-padaria Forninho e a pastelaria do Luís, só me lembro destas”, enumera Estrela Pereira. 77 anos. Mora no bairro desde os 13 anos. O último artigo que levou aos Mendes foi uma máquina de café. “Mando arranjar as coisas que se estragam, fica mais barato. Trabalhei 50 anos e não fiquei rica”, brinca. Reformou-se da fábrica de sacos de papel, que também já não existe.

Estrela entra muitas vezes na loja, nem sempre para comprar ou mandar arranjar. Gosta de lá ir para dois dedos de conversa com a dona, Ana Mendes, 60 anos.

Se fosse pelo meu marido já tínhamos fechado (...). Há dias em que não aparece ninguém, mas enquanto for dando para as despesas ...”

Vizinhos, clientes, amigos, confundem-se. Há mais de três décadas que Ana caminha para a Rua do Poço dos Negros, de segunda a sábado, e é aqui que fez relações de vizinhança. Em Tires, onde é a casa de família, apenas conhece duas ou três pessoas. É sobretudo isso que a faz abrir a loja diariament­e, às vezes para a fechar sem dinheiro na caixa. “Se fosse pelo meu marido já tínhamos fechado, por mim não. Há dias em que não aparece ninguém, mas enquanto for dando para as despesas vamos ficando, estou ocupada”, justifica.

Os três filhos do casal querem dar outro destino à loja, igualmente um espaço aberto ao público mas noutra área e moderno. Uma coisa Ana tem a certeza: “Não vamos vender isto aos estrangeir­os.” Arranja sempre ocupação, entre atender os poucos clientes, limpar os aparelhos, organizar a loja, consertar os candeeiros. O que está a reparar tem o fio cortado, impedindo a passagem da corrente elétrica. Terá de ser substituíd­o por um novo.

Os filhos têm entre os 30 e 35 anos, todos com formação superior. “Nunca quisemos que viessem para a loja. Há 20 anos talvez compensass­e, agora não. De há 15 anos para cá, começaram a fechar lojas, umas atrás das outras, não só nesta rua , e eram lojas boas. A nossa sorte é que ainda vivem cá muitas pessoas de idade e são essas que mandam arranjar as coisas. Os moradores novos não mandam arranjar. Avaria-se, vai logo para o lixo. Compra-se um aparelho novo”, ilustra Ana Mendes.

Maria Alice, 80 anos, entra no espaço para cumpriment­ar e falar com a vizinha. Nasceu ali, na casa dos pais, foi morar para a Amadora quando se casou. Voltou a viver na zona há três anos. “Mas sempre vim aqui às compras mandar arranjar as coisas, o que for preciso. Mando consertar os aparelhos bons, o que vale a pena. E eles também dizem se vale a pena arranjar ou não.”

Se é um televisor, vai parar às mãos de José Mendes. Pouco para na loja, muitos dos consertos são ao domicílio. Não quer foto, “não preciso de publicidad­e”, diz. Não por ter muitos clientes, como já se percebeu, mas porque há muito que deixou de acreditar no negócio.

Trabalhou na Tompson, onde acompanhou a chegada da televisão a cores a Portugal, até se meter no negócio das reparações há quase 40 anos. E foi fazendo atualizaçõ­es quando surgiam novos equipament­os. “Antigament­e, os representa­ntes das grandes máquinas davam formação, agora já ninguém dá formação. Isto não tem nada que ver com o que era há 30 ou 40 anos, agora, avaria-se um aparelho e vai para o lixo”, diz.

Explica que consegue arranjar 99% dos televisore­s antigos, também muitos LCD, estes na ordem dos 70 %. “Hoje em dia é tudo LCD e está tudo complicado, antigament­e substituía­mos as peças, agora é tudo computador, mas continuam-se a reparar”, explica Mendes. Acrescenta: “Mas são os velhotes que aqui vêm, e esses vão morrendo. Outros são despejados. A clientela vai desaparece­ndo.”

A loja não tem nome, muitos televisore­s e rádios antigos na montra e no interior, mas só entrando se percebe bem o que vende e os serviços que oferece. A empresa está registada como Ferreira & Campos, os primeiros proprietár­ios, há mais de 50 anos.

Há 37 anos , quando José Mendes comprou a loja com o sócio, o negócio florescia. Fizeram tantos cartões que ainda hoje os entregam. E que diz: “TV reparações. Cor, vídeo, preto e branco. Rádios, gravadores, eletrodomé­sticos, assistênci­a ao domicílio. Reparações e instalaçõe­s elétricas. Antenas, montagem, reparações e venda. Material elétrico, eletrodomé­sticos”. Mas já pouco material elétrico vendem. Restam as lâmpadas e pouco mais.

Jorge Mendes, 89 anos, não mora perto, mas trabalhou na zona (na Emissora Nacional e na RDP) e conhece bem a casa. Voltou para fazer uma encomenda: seis lâmpadas que não encontrou em mais lado nenhum e que Ana Mendes lhe indicou para manter o seu candeeiro de pé, “lindíssimo”, a funcionar.

“Tem um candeeiro muito antigo e só funciona com uma lâmpada LED com regulador. Veio aqui, eu não tinha essas lâmpadas mas resolvi-lhe o problema com lâmpadas de halogéneo”, explica Ana.

“Aquele candeeiro é especial, toca-se e acende; toca-se e apaga-se. Deixou de funcionar eu fui à procura de lâmpadas à Rua da Madalena, onde compro estes materiais, disseram-me que deixaram de ser vendidas há quatro anos. Fiquei apavorado, o candeeiro é antigo, lindíssimo. Depois, pensei, mas há menos de quatro anos comprei uma lâmpada na Rua do Poço dos Negros.” Já aqui tinha trazido o candeeiro e a senhora vendeu-me outro tipo de lâmpada, por questões de segurança”, conta Jorge Mendes.

“Éramos cinco aqui à volta a fazer estas reparações, só resto eu, desaparece­u tudo. Não fecho porque a loja é minha, senão fosse também tinha sido corrido.”

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 ??  ?? Jorge Mendes procurou em todo o lado lâmpadas para um candeeiro. Ouviu que não se vendiam há quatro anos. Lembrou-se de uma que comprara há menos tempo na Rua do Poço dos Negros.
Jorge Mendes procurou em todo o lado lâmpadas para um candeeiro. Ouviu que não se vendiam há quatro anos. Lembrou-se de uma que comprara há menos tempo na Rua do Poço dos Negros.
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Ana Mendes está todo o dia à frente da loja, recebe os aparelhos, vende lâmpadas, pequenos eletrodomé­sticos, velharias, etc. E conserta os candeeiros. Insiste em manter a porta aberta. Os filhos querem modernizar.
José Mendes comprou a loja há 37 anos com um sócio. Ele arranja os televisore­s e o sócio os rádios. O sócio continua a consertar os aparelhos, mas acabou por vender a sua parte aos Mendes. Ana Mendes está todo o dia à frente da loja, recebe os aparelhos, vende lâmpadas, pequenos eletrodomé­sticos, velharias, etc. E conserta os candeeiros. Insiste em manter a porta aberta. Os filhos querem modernizar.
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