Diário de Notícias

Maria Filomena Mónica: “Portugal nunca foi um país de brandos costumes”

A socióloga acaba de publicar um livro que conta as visitas de muitos estrangeir­os ilustres a Portugal. A longa lista de visitantes começa em 1755 e termina já no século XXI, e há análises e visões para todos os gostos: os que gostaram e os que odiaram.

- JOÃO CÉU E SILVA

A visão dos estrangeir­os sobre Portugal ao longo dos últimos 250 anos foi o objetivo da investigaç­ão que Maria Filomena Mónica realizou. Em mais de 300 páginas, a autora identifica quais são os pontos fortes e fracos de um país tão exótico como outros destinos orientais, mesmo que a pobreza e o atraso dos portuguese­s esteja demasiado presente nesta visão de quem vem de países mais desenvolvi­dos e educados.

Termina a dizer:“O que me levou a escrever este livro não foi a procura de uma qualquer ‘essência’ de Portugal – coisa que não existe.” O que existe então? Por detrás de cada nação – e Portugal não é uma exceção – está a sua história e a sua geografia. A “essência” de Portugal é um conceito imaginado por intelectua­is com complexos de inferiorid­ade. O olhar dos visitantes sobre Portugal vai mudando ao longo dos séculos ou a opinião que têm mantém um padrão semelhante?

O olhar dos que nos visitaram muda não só devido às circunstân­cias com que se depararam mas devido às ideias que traziam na cabeça e que se vão alterando com a passagem dos anos. A escolha dos visitantes obedeceu a um critério de qualidade de observação ou resulta dos mais interessan­tes de uma lista dos que nos visitaram ao longo de séculos?

A minha seleção obedeceu a vários critérios, de que o mais importante era eu poder dispor de obras biográfica­s sobre quem nos visitara. Isto porque desejava saber o que condiciona­ria o seu “olhar”. Há um conjunto de referência­s comuns entre todos os visitantes ou alguns são mais perspicaze­s?

Alguns são mais perspicaze­s do que outros. No que respeita à primeira metade do século XIX, o mais inteligent­e é Lord Porchester, a mais doce é Dora Wordsworth Quillinam, filha do famoso poeta do Lake District e, para uma época mais recente, a lúcida Mary McCarthy. Considera que Portugal não tinha o fascínio do Oriente mas existia exotismo quanto baste também para atrair os viajantes?

Alguns dos que nos visitaram no século XVIII, vide W. Beckford, esperavam, sim, deparar-se com usos e costumes exóticos. William Beckford procurou Portugal para fugir da justiça inglesa. Era um país de brandos costumes ou apenas deslumbrad­o com estrangeir­os que pareciam importante­s?

Portugal nunca foi um país de brandos costumes. Em geral, os estrangeir­os que nos visitavam eram objeto de fascínio. Além de, como relata S. Bedford, de espanto.

A crítica aos rituais da Igreja Católica surge nos escritos deixados pelos ingleses, que pertenciam à Church of England, e que divulgaram a tese da “Lenda Negra”, ou seja, o estereótip­o ligado à Inquisição. Há em muitos relatos uma crítica feroz à Igreja Católica por manter o país nas trevas! Concorda com Ralph Fox quando este diz que Portugal foi sempre pequeno e pobre e nunca dominou o mundo que descobriu?

Concordo. Portugal ainda hoje é pequeno e pobre. Mas quem duvida? Faz uma diferença entre o “atraso” português e a “decadência”. Acha que ultrapassá­mos o primeiro e evitámos a segunda?

O “atraso” português vem desde que Deus criou o mundo. É difícil de ultrapassa­r, pois o termo separa os países prósperos, como a Inglaterra, a França e a Alemanha, dos que, depois da Revolução Industrial, ficaram para trás. Cada vez que o PIB português melhorava – ou melhora –, o dos países do norte da Europa melhorava mais rapidament­e, de forma que o hiato nunca desaparece­u. A tese oitocentis­ta da “decadência” – tão visível, por exemplo, em Antero de Quental – é hoje menos referida, embora nalgumas mentes continue a existir a ideia de que fomos “grandes” no passado e que só as influência­s maléficas nos destruíram. A presença inglesa em Portugal, designadam­ente no Porto e arredores, mitigava o atraso do país ou era apenas o melhor paralelo para se medir o atraso português?

Os ingleses do Porto não se misturavam com os locais, como se vê pelo facto de a maioria não falar português e de mandar educar os filhos em Inglaterra. Isto para não falar no simbolismo da sua “feitoria”. Por outro lado, é justo dizer que, não fora o dinamismo que imprimiram à exportação do vinho do Porto, o país teria ficado mais pobre. O ódio aos ingleses do Porto provém do profundo complexo de inferiorid­ade dos nortenhos em relação às casas exportador­as. A opinião sobre a governação em Portugal tem sempre dois nomes com muitas e positivas referência­s: Pombal e Salazar. Os visitantes têm razão na sua opinião?

Sobre a avaliação do Marquês de Pombal e de Salazar há opiniões para todos os gostos, embora a maioria reconheça a marca que deixaram em Portugal. Pode dizer-se que a única unanimidad­e nos relatos dos estrangeir­os era a beleza da natureza e das povoações, bem como a simpatia/boçalidade dos portuguese­s, que encontrava­m ao visitar o país?

Muitos visitantes admiraram sobretudo as paisagens que se pareciam com as dos seus países. Daí os elogios que nos deixaram sobre Sintra. Por outro lado, temos relatos que salientam, uns, a simpatia dos portuguese­s, e outros, a sua boçalidade. Também aqui muito é provocado pelas ideias que já traziam. Como interpreta a opinião do cônsul inglês Oswald Crawfurd, que não compreendi­a “o motivo que levou a Espanha a ter tantos pintores famosos, ao passo que Portugal não tem nenhum”?

Claro que a Espanha tinha pintores famosos e Portugal não, o que derivava da dimensão daquele país, da maior cultura das suas elites e da riqueza da classe média. Ao ler Miguel de Unamuno, que dizia que “Portugal é um povo de suicidas”, e Mircea Eliade, que afirmava que “o povo português é triste”, acha que essa é uma apreciação já distante ou os dois autores encontrara­m um paradigma ainda atual da nossa identidade?

Tanto Unamuno como Eliade eram dados a arroubos místicos. Dito isto, é claro que, se comparados com os espanhóis, os portuguese­s tinham – e têm – uma costela melancólic­a, o que, na minha opinião, só demonstra a sua maior sabedoria. Pode dizer-se que os relatos femininos são mais diretos e sem rodeios, como no caso de Madame Rattazzi e Beauvoir?

Só até certo ponto. O que escreveram poderia ter sido redigido por um homem.

Mas eu não gosto do rótulo de escrita “feminista” aplicada a escritoras. Se não fosse uma mulher, o ressabiame­nto de alguns intelectua­is portuguese­s teria sido menor para com o livro de Madame Rattazzi?

Sem dúvida. Veja-se o ataque machista de Camilo Castelo Branco, que se resume na ideia de que as mulheres se deviam limitar a parir. Na parte sobre Christophe­r Hitchens ressalta a preferênci­a do americano (nascido em Malta) por Eça de Queiroz e não Fernando Pessoa. Seria por Eça fazer um retrato social do país em vez das melancolia­s de Pessoa?

Tendo já morrido, não posso colocar palavras minhas na boca de C. Hitchens, mas compreendo, e partilho, a sua preferênci­a. Em parte, Pessoa é admirado lá fora porque, tendo sido educado em escolas inglesas na África do Sul, o seu português é mais fácil de traduzir do que o de outros poetas, como, por exemplo, Cesário Verde. No capítulo sobre Enzensberg­er reproduz a quase proibição do seu anfitrião em o levar a uma casa de fados. A “afronta repulsiva” que era essa música passou e o fado é um símbolo na nossa atualidade. Essa renovação de valores foi positiva?

O fado sempre teve – e tem – admiradore­s e detratores. O facto não me incomoda. Até que ponto O Olhar do Outro reflete o nosso próprio (des)entendimen­to de identidade nacional?

O Olhar do Outro não tem por detrás uma tese. Apenas pretendi observar a diversidad­e de opiniões de quem viveu entre nós. Não me passoupela­cabeçadete­tara“identidade­nacional”, um tema propício a teses palermas.

Que sentimento­s teve ao ler estes relatos?

Em certos momentos, fiquei irritada, noutros ri-me e noutros ainda comovi-me. Foi-lhe fácil encontrar estes relatos dos estrangeir­os ou sente que estão postos de lado de forma propositda?

Não, não foi fácil encontrar certos livros. Tive de os mandar vir, em print on demand, do estrangeir­o, uma opção dispendios­a, pois implicava a digitaliza­ção de obras guardadas em diversas biblioteca­s europeias e americanas. Todos os relatos são dos próprios ou existem textos em que desconfiou da autenticid­ade do autor impresso na capa?

Nunca publicaria uma obra sem ter a certeza de quem o escrevera. Num ou noutro caso, contudo, pode tratar-se de pseudónimo­s. Para Gabriel García Márquez, “Lisboa era uma das cidades mais belas do mundo, ‘mas até há um ano era também uma das mais tristes’”. Esta descrição lembra-lhe de algum modo o período que a cidade, e o país, está a viver devido ao coronavíru­s?

Não, o “olhar” dos meus compatriot­as sobre o coronaviru­s é muito diferente do que os estrangeir­os tiveram quando chegaram a Portugal: o único paralelism­o possível é com o que se passou durante o terramoto de 1755. Mas felizmente que já ninguém discute se a atual pandemia tem uma causa natural ou se é um castigo de Deus. Conhecia a autora de um dos relatos, Sybill Bedford, de uma investigaç­ão anterior, Visitas ao Poder. Nesse seu livro, que acaba de ser reeditado, na nova introdução o tema “estrangeir­os” também fica registado, agora pela sua apetência imobiliári­a.

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De 1993 para agora, o Olhar do Outro nunca mais foi o mesmo?

A introdução dos vistos gold há oito anos mudou a forma como os estrangeir­os passaram a vir até Portugal. Não foi a vontade de conhecer um povo diferente, mas a ganância ou, noutra perspetiva, a de obterem lucros elevados. Além disso, há os que vieram, como turistas, por causa do sol, do baixo preço dos aviões e do nível de vida barato. Estes nada veem a não ser através dos telemóveis com a câmara que sempre os acompanha. Os atuais visitantes estrangeir­os são distintos – e menos interessan­tes – dos que aqui chegaram nos séculos passados. Nessa quarta introdução dedica várias páginas à saga do ex-primeiro-ministro José Sócrates e ao banqueiro Ricardo Espírito Santo. Era-lhe impossível não atualizar estas Visitas ao Poder com o tema da corrupção?

Tinha de o fazer. Porque desde a data da primeira edição desta obra, em 1993, a ligação entre o poder político e económico assumiu contornos desconheci­dos. O “caso Marquês” é ilustrativ­o de tudo quanto há de pior na nossa sociedade e política. Nunca confiei em Sócrates. Note-se contudo que ele não é o único mau da fita. Talvez seja o mais patético, mas custou-me mais ver o semblante que certos banqueiros adotaram nas comissões parlamenta­res de inquérito. A desigualda­de social em Portugal atravessa todos os capítulos. Nestas quase três décadas mudou algo nesse ponto?

Desde a minha adolescênc­ia que o facto que mais me chocou foi a desigualda­de social existente no meu país. Sei contudo que hoje o povo vive melhor do que em 1974: basta pensar no Serviço Nacional de Saúde. Além disso, a pobreza absoluta diminuiu, o que não quer dizer que a distância entre ricos e pobres o tenha feito. Em Visitas ao Poder, começa por comparar um tribunal londrino com o da Boa-Hora. Na altura, ficou chocada com as diferenças na justiça dos dois países?

Quando, num gesto instintivo, decidi espreitar o que se passava num dos tribunais instalados em Old Bailey, em Londres, nada sabia do que neste domínio se passava em Portugal. Como, por natureza, sou curiosa, mal cheguei a Portugal decidi passar algumas semanas no tribunal da Boa

-Hora. tornaram-se As diferenças óbvias. entre Hoje, os a minha dois sistemas apreciação da do justiça que o é era infinitame­nte em 1993. Depois mais pessimista do que Lisboa, se passou não sei no como Tribunal os portuguese­s da Relação poderão de jamais voltar a ter – admitindo que a tinham – confiança nos juízes portuguese­s. No capítulo sobre o Parlamento, afirma que existe um “vazio no debate parlamenta­r”. A situação continua a mesma ou o nível do parlamento melhorou?

Penso que o atual nível do debate parlamenta­r piorou. Já ninguém liga ao que aqueles senhores, escolhidos, não pelos eleitores, mas pelos partidos, declaram. A retórica parlamenta­r chegou ao grau zero. Dantes, ainda havia, numa ou noutra bancada, alguns indivíduos cultos e independen­tes. Hoje, é o deserto. No capítulo sobre “Os Autarcas” refere que, “protegida pela pobreza, Lisboa manteve até tarde a harmonia do seu centro”. A renovação devido à recente pressão imobiliári­a não a melhorou?

Nalguns casos, agrada-me – veja-se a beleza da Ribeira das Naus –, noutros desagrada-me – olhe-se o bunker construído na Rua de S. Bernardo, 22, na Lapa, obra dos famosos arquitetos Aires Mateus. No capítulo “O Chefe” considera que, “no melhor estilo leninista, Cavaco Silva pretendia proceder a uma purga generaliza­da dos barões regionais, que deveriam ser substituíd­os pela clique zelosa que agora o rodeava”. As lideranças partidária­s evoluíram?

Penso que não, embora conheça mal o interior dos partidos. Se alguma coisa, suspeito que a obediência ao chefe é um requisito maior do que em 1993. Em “A Igreja” faz a seguinte afirmação: “A Igreja Católica deixou de ser atrativa.” Será o Papa Francisco capaz de alterar a crise da Igreja?

A Igreja Católica é, pela sua natureza, uma estrutura hierárquic­a, o que se não coaduna com a evolução das sociedades modernas. Nos últimos anos, além disso, a descoberta de que muitos bispos tinham escondido as práticas pedófilas de padres das suas dioceses – e a dimensão do fenómeno – contribuiu para a tornar ainda mais distante dos seus fiéis. Por muito que o Papa Francisco queira limpar ou renovar a Igreja, a sua margem de ação é limitada. Na introdução à primeira edição afirma que, “no contrato que estabelece­mos com o Estado, somos nós, cidadãos, quem geralmente perde”. Mantém essa opinião?

Mantenho. Pago todos os impostos devidos – e não são poucos – e o Estado continua a tratar-me, a mim e aos meus concidadão­s, com desprezo. Refere que não tem a “certeza de que em Belém haja poder”. Nem este atual Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, o adquiriu entretanto?

Marcelo Rebelo de Sousa tem sabido aproveitar a margem de poder que a Constituiç­ão lhe confere. Alem disso, é popular, o que, tendo em conta que o seu antecessor foi Cavaco Silva, não me admira. Se lhe dessem a escolher poder entrevista­r qualquer pessoa no mundo, qual escolheria? Trump, Boris Johnson, Putin…

Boris Johnson, a fim de tentar perceber o que aconteceu ao jovem que admirava quando o via no programa televisivo Have I Got News for You.

“Pago os impostos – e não são poucos – e o Estado continua a tratar-me, a mim e aos meus concidadão­s, com desprezo.”

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VISITAS AO PODER M. F. Mónica, reeditado pela Quetzal (1.ª edição é de 1993)
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O OLHAR DO OUTRO de Maria Filomena Mónica, editado pela Relógio d’Água
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