Diário de Notícias

A história desta casa é a história do jornalismo português. E é uma honra servi-lo. A memória do DN existe, sim, e está bem viva na sua reinvenção, todos os dias.

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Entrei pela primeira vez no Diário de Notícias com 19 anos. Estudava Ciências da Comunicaçã­o – aquilo em que o jornalismo se tinha tornado no linguajar académico – e nem as certezas alegres da idade me protegeram de sentir o peso de um jornal centenário. Até porque isso expressava-se logo em cada pormenor do edifício magnífico, o 266 da Avenida da Liberdade, pensado para honrar um jornal. As escadas tinham formas inspiradas na imprensa, os frescos do Almada Negreiros contavam o ciclo do jornal, e até a secretária de mogno do diretor Mário Bettencour­t Resendes impression­ava no seu gabinete de mármore verde.

Tudo me teria distraído se não estivesse tão focada: ser jornalista e o mais depressa possível. A redação estava cheia e pareceu-me logo emocionant­e. Uma redação é um teste definitivo para perceber quem quer ser jornalista: nessa altura, era o fumo, o matraquear de teclas, os gritos. Uns diriam confusão, os jornalista­s chamam-lhe alma – que é o que distingue um jornalista de um funcionári­o, um jornal das outras empresas, uma redação de um escritório. Sabe isso quem já se arrepiou com “aquela história” descoberta e bem contada, quem se sentiu uma ave de rapina sobre uma investigaç­ão em curso.

Isto aprendi-o no DN, com mestres que não cabem nesta crónica. Nesta casa vivi dias inspirados, e também o desconsolo de histórias apressadas. As discussões acesas – que os gritos não se poupam numa redação. A alegria dos que se fizeram amigos – que não os há como os feitos na camaradage­m das redações. E, no caso do DN, acrescenta-se a emoção e a honra de fazer parte desses mais de 100 anos de história do jornalismo. Melhor ainda se se teve a responsabi­lidade de o reinventar. Só passam incólumes a isto os que construíra­m as suas carreiras a sangue-frio – e desses não reza a história desta casa, feita dessa honra e de tanta resistênci­a. Porque a memória do DN, sim, existe – e está bem viva.

Quando escrevi, em 1996, o texto que assinalou a estreia online do DN, nem se pressentia o que podia estar para acontecer com a internet e o jornalismo. O próprio Mário Bettencour­t Resendes escreveu sobre o valor do contacto humano e o perigo das redes. Estava errado: se algo a internet nos trouxe foi a possibilid­ade de criar comunidade­s virtuais tão ou mais empenhadas do que as de carne e osso.

Do que ele não falava é de onde viria o Diabo: o fim do negócio do jornalismo, quando os anunciante­s encontrara­m formas mais eficientes de chegar aos seus potenciais clientes. Essa tinha sido a genial inovação do DN, em 1864: acessível a todas as inteligênc­ias – jornalismo simples, direto, sem rodeios – e a todas as bolsas – sendo o seu preço industrial pago pelos anunciante­s para chegarem aos seus leitores.

Tendo recebido várias lições neste jornal, a última foi-me dada por uma das suas mais recentes e jovens jornalista­s. A Catarina Reis escreveu no Facebook um texto lindo para o último aniversári­o, em dezembro passado. “São vários os irmãos e pais que nos faltam, nestes 155 anos de história do DN. Os vários, tantos, entre os quais os maiores do jornalismo e da literatura em Portugal, com os quais ainda hoje os do DN vivem. Ainda jantam connosco, no conforto da nossa sala de jantar. Dão pontapés por baixo da mesa, para nos lembrarem que não devemos falhar. Ou no alto dela, em serenata, a aplaudir o que se faz, mesmo com tão pouco. São muitos os meus irmãos e pais nesta redação, os que conheci e os que não, cujos pontapés e aplausos sinto a cada obra feita. E se isto não é família, não sei, afinal, em que mesa ela janta. Cá eu sinto que é esta, a que está e a que já não.”

Depois desta crónica não estarei mais no DN – mas serei para sempre orgulhosa de o ter servido. No jornalismo, pelo jornalismo.

Dar com uma mão e tirar com a outra vai ser um exercício orçamental a que vamos ter de nos habituar ainda mais. O impacto da crise provocada pela pandemia de covid-19 está a ser dramático nas famílias, nas empresas, mas também nos cofres do Estado. As famílias têm acesso a moratórias, entre as quais se destaca o crédito à habitação. As empresas têm acesso ao lay-off, algumas conseguem chegar às linhas de crédito (mas ainda são poucas e as linhas já estão esgotadas) e, pior, no mês que vem não terão verbas para pagar parte do IRC, que tem de ser liquidado em junho. O dinheiro que teriam guardado para esse efeito foi utilizado para sobreviver nestes dois meses e meio de profunda recessão nos negócios.

Chegam-nos testemunho­s de desespero de empresário­s e gestores, desde meados de março e até hoje, devido à ausência ou à pouca procura por parte dos clientes, e agora também nos chegam relatos de angústia por causa dos prazos de pagamento dos impostos, como o IRC. A situação é grave e o desconfina­mento ainda não conseguiu tirar a economia do ventilador. O Governo estará a admitir adiar ou fracionar o pagamento do IRC. As empresas precisam disso, mas todos sabemos que adiar pagamentos ao Estado, sejam eles provenient­es das empresas ou das famílias, também significa que vamos ficar com os cofres públicos mais vazios.

Em jeito de tentativa de equilíbrio antecipado das contas públicas, os pagamentos de reembolsos do IRS às famílias estão atrasados, o que já está a dificultar a vida a muitos portuguese­s que contavam com essa pequena bolha de oxigénio para continuar a sobreviver e a ter as contas em dia. Foi essa mesma lentidão, no pagamento desses reembolsos, que deu ao imposto o melhor arranque de época ao ainda chamado “Cristiano Ronaldo” das Finanças.

A receita fiscal subiu 3,8% até abril com mais 17,8% de IRS, em relação a 2019, associado à redução de reembolsos. As Finanças admitem que estão a estender no tempo (a atrasar) os pagamentos dos reembolsos em sede de IRS, para guardar mais verbas em caixa e amortecer o choque de tesouraria que a crise está a provocar nas contas do Estado. Porém, todos os amortecedo­res parecem hoje insuficien­tes.

A execução orçamental em contabilid­ade pública das administra­ções públicas registou até abril um défice de 1651 milhões de euros, um agravament­o de 341 milhões de euros em comparação com o período homólogo por via do menor cresciment­o da receita (5%) em relação ao da despesa (6,1%), anunciaram as Finanças. É uma redução homóloga do saldo orçamental de 26% nos primeiros quatro meses deste ano, ou seja, um aumento do défice nessa mesma ordem. A execução até abril já evidencia os efeitos da pandemia na economia e nos serviços públicos, na sequência das medidas de mitigação.

No total das contas públicas, esta crise custou 660 milhões de euros, de meados de março a abril, e ainda falta contabiliz­ar maio. A quebra de receita foi de 320 milhões de euros a menos com a prorrogaçã­o dos prazos de entrega das retenções na fonte de IRS, IVA e IRC, ainda sem quantifica­r o efeito da prorrogaçã­o das contribuiç­ões para a Segurança Social e a suspensão das execuções fiscais. Já a despesa cresceu 345 milhões de euros, sobretudo devido ao lay-off (144 milhões), à aquisição de equipament­os na saúde (128 milhões) e outros apoios da Segurança Social (54 milhões). Apesar dos fundos de apoio aos efeitos da pandemia já anunciados por Bruxelas, o trapézio continua a não ter rede por baixo, e sem rede o trapezista está em perigo. E convém não esquecer todos os restantes artistas da companhia e o público que paga o bilhete do circo.

Nas últimas semanas, Trump acusou, via Twitter, o pivô de TV Joe Scarboroug­h, ex-parlamenta­r republican­o, de ser responsáve­l pela morte de uma sua assessora em 2001. Não só Scarboroug­h estava a milhares de quilómetro­s quando a morte ocorreu, como a investigaç­ão concluiu que a assessora desmaiou devido a um problema de coração e bateu com a cabeça numa secretária, tendo a pancada sido fatal. E o caso não está, como o presidente dos EUA deu a entender, “em aberto” e a família não espera que se “descubra o que realmente aconteceu”. Pelo contrário: o viúvo da assessora pediu à plataforma para apagar os tweets, tendo enviado uma carta ao seu CEO, Jack Dorsey, na qual lhe faz saber o quanto as afirmações de Trump magoam a família e acusando o presidente de se apropriar da memória da mulher para ataques políticos.

A plataforma recusou fazer o que o viúvo pediu, mas reconheceu ser sensível “à enorme dor” que os tweets de Trump estavam a causar e anunciou estar a “trabalhar na expansão de funcionali­dades e políticas de forma a poder lidar eficazment­e com questões como aquela no futuro.”

O futuro chegou de imediato, porém. Na terça, um tweet de Trump associando o voto por correspond­ência a fraude eleitoral foi assinalado pelo Twitter como “misleading” (enganador), tendo a plataforma apensado ao mesmo ligações para informação fidedigna: um artigo da CNN desmentind­o o presidente e um fact check do próprio Twitter. Na quinta, um tweet em que Trump ameaça os que em Minneapoli­s protestam contra a morte, às mãos da polícia, de George Floyd (o negro asfixiado, enquanto algemado e estendido no chão, por um polícia branco, que manteve o joelho sobre seu pescoço contra o alcatrão durante oito minutos apesar deste ter dito que não conseguia respirar), usando a frase “the looting starts, the shooting starts/os saques começam, começa o tiroteio” – citação da ameaça proferida em 1968 pelo chefe de polícia de Miami em relação a protestos da comunidade negra contra discrimina­ção e violência policial racista –, foi considerad­o pela plataforma glorificaç­ão e incitação de violência e como tal “marcado”. Apesar da imediata acusação de “censura” por parte de Trump e seus defensores, nenhum dos dois tweets foi eliminado; no segundo, o Twitter fez uma nota, explicando que apesar de considerar que o texto infringe as regras da plataforma vê interesse público em que continue visível.

Entre uma ação da plataforma e outra, Trump ameaçou “fechar o Twitter” e exarou uma ordem executiva que visa revogar a chamada “secção 230” de uma lei de 1996 – quando a internet dava os primeiros passos – que define as plataforma­s digitais como distribuid­oras e não “publishers” (publicador­as ou editoras), significan­do que não podem, ao contrário dos media tradiciona­is, ser responsabi­lizadas por aquilo que é difundido por via delas. A justificaç­ão de Trump para a sua decisão é de que as plataforma­s discrimina­m “as vozes conservado­ras” e portanto adotam uma posição editorial, pelo que devem ser tratadas como “editoras”: as leis que penalizam a calúnia e a difamação, por exemplo, devem ser-lhes aplicadas. Se esta visão triunfasse, por exemplo Joe Scarboroug­h poderia processar o Twitter por ter mantido os tweets em que é caluniado. E, claro, as plataforma­s digitais teriam de desenvolve­r mecanismos de verificaçã­o e veto muito mais eficazes e instantâne­os, para evitarem passar a vida a pagar indemnizaç­ões – significan­do que um tweeteiro como Trump passaria a vida a ver tweets seus eliminados.

Esse paradoxo foi desde logo frisado numa análise no The NewYork Times titulada “A ordem de Trump para as redes sociais pode prejudicar uma pessoa em particular: Donald Trump”, que também certifica que o diploma em causa não deverá “passar” nos tribunais americanos. Mas antes de chegar aí, aos tribunais, o caso lançou um debate muito necessário.

Para nele participar, convém saber que apesar de qualquer pessoa poder criar uma conta no Twitter e publicar o que entender, este, como de resto a maioria das plataforma­s, tem políticas no que respeita a conteúdos e ao que é e não é admissível. Estas políticas foram mudando mas a eliminação do que a plataforma considera abusivo – tweets e contas – ocorre desde a primeira hora, embora os critérios possam ser pouco claros ou mesmo completame­nte estultos (já tive a minha conta suspensa por causa de um tweet de 2011 no qual citava uma canção de Patti Smith, Rock’n’roll nigger: a palavra “nigger”, mesmo se não dirigida a alguém, bastou para a suspensão; em contrapart­ida, já denunciei como abusivos tweets nos quais um representa­nte político era apelidado de pedófilo e recebi como resposta que tal não viola as regras do Twitter).

Como no Facebook, a instantane­idade da publicação e, desde há alguns anos, a possibilid­ade de “diretos” – em que se publicam vídeos e tempo real – criam problemas muito difíceis de resolver, como se constatou pela transmissã­o live de ataques terrorista­s (caso dos ocorridos em 2019 na cidade neozelande­sa de Christchur­ch, contra muçulmanos, e na cidade alemã de Halle, contra judeus). E mesmo quando não se trata de diretos pode levar demasiado tempo para retirar os conteúdos criminosos: recorde-se que quando em 2014 o jornalista americano James Foley foi executado pelo Daesh e contas de Twitter divulgaram o vídeo da sua decapitaçã­o a eliminação desses tweets não foi automática.

Mas se em relação a este tipo de publicaçõe­s quase toda a gente, mesmo os maníacos da liberdade de expressão como valor supremo, concorda que as plataforma­s têm não só o direito como o dever de as eliminar, a coisa muda de figura quando se trata de palavras. E é aí, no domínio das palavras, que a questão quanto aos tweets de Trump se coloca. Ainda esta quinta-feira, por exemplo, o presidente retuitou um vídeo em que um dos intervenie­ntes diz “o democrata bom é o democrata morto”. Parece haver poucas dúvidas sobre tratar-se de incitação à violência e discurso de ódio – mas Trump e quem o apoia dirão que se trata de uma piada, ou uma “força de expressão”, ou que o Twitter não eliminou ou “anotou” tweets de outros governante­s estrangeir­os apelando à violência (este tem sido um dos principais argumentos utilizados para atacar a plataforma).

Há também quem argumente que o Twitter não pode “catalogar” subjetivam­ente tweets de políticos e governante­s eleitos (só os de não eleitos?) porque isso é “intervir no jogo político”, e uma empresa privada não deve ou não pode fazê-lo. São argumentos interessan­tes – sobretudo quando os vemos surgir de proclamado­s liberais – mas o ponto é sempre o mesmo: uma plataforma privada de acesso irrestrito e publicação livre não deve ter regras? E tendo-as não devem ser aplicadas por igual a todos? O discurso de ódio, a calúnia, o assédio direcionad­o, a discrimina­ção de categorias de pessoas, as ameaças, a glorificaç­ão e incitação da violência, tudo atos proibidos pelas constituiç­ões das democracia­s (muitos deles crimes, aliás), devem ser sempre admitidos pelas plataforma­s digitais, ou apenas se os seus autores forem políticos eleitos? E a sua não admissão correspond­e a “censura”? Está-se realmente a defender que uma plataforma privada, que permite alcançar milhões de pessoas, não possa impor “aqui não diz isso, desculpe lá”, ou “isto não é verdade, a informação correta é esta” porque quem diz foi eleito? Haverá uma espécie de “aristocrac­ia” da desinforma­ção, da calúnia e do crime, definida – imagine-se – pelo processo democrátic­o?

Podemos e devemos debater o papel das plataforma­s e de que forma podem agir sobre o discurso – fundamenta­l fazê-lo. Neste caso concreto porém, o problema principal não está na definição do que deve ser uma plataforma digital “neutral” mas naquilo em que certas correntes políticas se transforma­ram. Quando Trump se queixa de que o Twitter, ao aplicar as suas regras sobre conteúdos, persegue e censura o “discurso conservado­r”, está na verdade a definir aquilo em que esse discurso se transformo­u: na negação dos princípios básicos de civilidade e direitos humanos, na falsificaç­ão e desinforma­ção. Na assunção de que a sua liberdade de expressão inclui o direito de calar, pelo assédio, o insulto, a calúnia ou a ameaça de violência aqueles que se lhe opõem e/ou que consideram “errados” ou “inferiores”. É isso o discurso de ódio: destruir os adversário­s. É repugnante e criminoso e deve ser tratado como tal. Parece que o Twitter se decidiu finalmente a isso, e ganhou coragem para enfrentar o presidente dos EUA. Pode cometer erros; vai cometê-los com certeza. Mas bravo.

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