Diário de Notícias

Evelyn Waugh levou o seu propósito de distanciam­ento longe de mais, até aos confins da Amazónia. E, uma vez aí, sentiu-se imensament­e triste e só.

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Após abandonar Oxford com poucas ou nenhumas perspectiv­as de futuro, Evelyn Waugh encontrou-se no limiar do infortúnio. Tinham passado os doces tempos da juventude e da boémia, não chegara sequer a terminar o curso. Para fintar o destino, arranjou emprego como professor e, durante uns tempos, foi moderadame­nte feliz. Entregou-se à escrita e, num golpe de sorte, obteve sucesso logo na sua obra de estreia, intitulada, não por acaso, Decline and Fall, de 1928. O maior êxito viria a seguir, em 1930, com Vile Bodies, de 1930, que satirizava a frivolidad­e da vida mundana de Londres a seguir à Guerra, os meninos ricos atordoados por um frenesi de festas, a imprensa cor-de-rosa oca e vazia.

Evelyn tornara-se um cavalheiro respeitáve­l, que se aproximara do catolicism­o e deixara para trás os excessos de juventude, os anos loucos em que, na sua primeira viagem ao estrangeir­o, a Paris, na quadra de Natal, se afundou num bordel de petits enfants, onde pagou para ver uma estranha cena de sexo, “a tableau by which my boy should be enjoyed by a large negro”. Noutra viagem, foi com o seu amante da altura, Alasdair Graham, até à Escócia, onde ficou deslumbrad­o com Edimburgo. Alasdair levou-o a conhecer a sua velha nanny, exactament­e como Sebastian fará com Charles na primeira vez em que este visita Brideshead para ser apresentad­o à bondosa Nanny Hawkins. Mais tarde, tendo Alasdair obtido o posto de adido honorário na legação britânica em Atenas, Evelyn viajará até à Grécia durante outras férias de Natal. A atmosfera degradante que encontra no apartament­o de Alasdair em Atenas, constantem­ente percorrido por prostituto­s de baixo nível, iria horrorizá-lo, mas serviu de inspiração para a descrição, em Brideshead Revisited/Reviver o Passado em Brideshead, do declínio levantino de Sebastian Flyte, na companhia sórdida de um alemão estranhíss­imo de nome Kurt.

Fugindo apavorado de Atenas, Evelyn viajou até Roma, capital do seu novo credo, que irá abraçar com fervor militante. Desapontou-se com a Capela Sistina, ficou fascinado com San Sebastiano fuori le mura, em especial com a escultura barroca de Antonio Giorgetti que mostra o santo-mártir jazendo deitado, com o corpo nu trespassad­o por setas, numa representa­ção impregnada de erotismo ou, mais precisamen­te, de homoerotis­mo. Será por isso que Sebastian Flyte se chama Sebastian? Ou que o pintor e esteta Charles Ryder converter-se-á ao estilo barroco?

Mais ou menos por essa altura, Waugh iniciou uma amizade íntima, que passará a namoro, com uma mulher de aparência andrógina, Evelyn Gardner, sendo o par conhecido entre os amigos como He-Evelyn e She-Evelyn. Ela era filha de Lord Burghclere, um destacado membro do Partido Liberal, que morrera prematuram­ente. A mãe, Lady Burghclere, opôs-se ferozmente ao namoro da sua filha com aquele jovem pouco promissor de classe média. Deslocou-se pessoalmen­te a Oxford (como, recorde-se, Lady Marchmain fará em Brideshead) em busca de histórias pouco recomendáv­eis sobre o seu futuro genro. Além do gosto de Waugh pela vodca e pelo absinto, ouviu rumores escabrosos, aqui indizíveis, que a levaram a avisar a filha de que, caso se casasse com aquele homem, iria “mergulhar nas profundeza­s de Sodoma e Gomorra”.

Vã advertênci­a: Evelyn & Evelyn casaram-se quase em segredo, em Junho de 1928. E, como a mãe dela também previra, entraram de cabeça num ambiente de festas sobre festas, devorando-se mutuamente numa espiral de hedonismo. Pelo chão do pequeno apartament­o onde moravam acumulavam-se os vestidos e as máscaras que ambos usavam em bailes sucessivos, dedicados à Grécia antiga, ao Velho Oeste americano, aos tempos da rainha Vitória, ao que mais que a sua imaginação inventasse.

Ao fim de um ano de casamento, She-Evelyn encontrou outro homem e pediu o divórcio. He-Evelyn, ficou destroçado. Desde então, passou a menospreza­r os laços matrimonia­is em favor da amizade leal e sincera, que se tornou para ele um valor sagrado, único e insubstitu­ível. Waugh escreveu aos pais dizendo que ele e a mulher eram “serenament­e felizes” e confessou o seu desalento profundo pelo desfecho cruciante daquele casamento. Para mais, um desfecho consumado pela intrusão de um amigo, John Heygate, um belo homem que trabalhava para a BBC e que, ao contrário de Waugh, era um aristocrat­a autêntico e, mais grave ainda, estudara em Eton. Anos depois, Heygate escreveu-lhe pedindo perdão pelo golpe traiçoeiro, tendo recebido do escritor a mais concisa e a mais telegráfic­a das respostas: “OK, E.W..” She-Evelyn casar-se-ia mais vezes. John Heygate, não sabemos se trucidado pela culpa, suicidou-se em 1976.

Na ressaca do divórcio, Waugh contou com o apoio de uma grande amiga, Diana Guinness, aristocrat­a de uma beleza glacial e nórdica, quase metafísica. Diana era casada com um herdeiro da fortuna Guinness e o seu primogénit­o teve por padrinhos Randolph Churchill, filho do futuro primeiro-ministro, e o próprio Evelyn Waugh. Foi através dela que Waugh conheceu Lady Mary Lygon (Maimie), filha de Lord “Boom” Beauchamp, senhor de Madresfiel­d Court, e irmã de Hugh Lygon, seu colega em Oxford, que lhe servirá de modelo para a personagem de Sebastian Flyte de Brideshead Revisited. Waugh, que, passada a turbulênci­a pós-nupcial, não apreciava particular­mente o ruído das festas sociais, preferindo a conversa e o humor numa roda de amigos íntimos, conheceu Maimie numa Christmas party de finais de 1929, o memorável ano de todos os excessos, da opulência e da crise.

Em Janeiro do ano seguinte, Evelyn terá um sucesso estrondoso com a novela Vile Bodies, a qual, como sempre sucederá na sua obra, está eivada de alusões crípticas e private jokes (aliás, a sua correspond­ência com as irmãs Lygon processava-se num dialecto próprio, uma novilíngua cheia de termos e expressões que só eles conheciam).

Diana Guinness considerá-lo-ia sempre “a perfect friend”, ainda que, por essa altura, se tenham distanciad­o, Evelyn rumo à Igreja Católica, Diana a caminho do divórcio e dos aracnídeos braços de Oswald Mosley, o líder fascista inglês. Mosley levou-a à Alemanha hitleriana, onde se casaram no ateliê de desenho de Goebbels, na presença do próprio Führer. Depois, regressara­m a Inglaterra – e, como era de prever, Diana acabou por passar uma temporada na prisão devido às suas simpatias pelo Eixo. Morreria com 93 anos, mantendo até ao fim o olhar magnético da sua juventude poderosa.

Entretanto, Evelyn apaixonara-se por Teresa “Baby” Jungman, uma jovem católica e presença assídua nas revistas sociais. Perfeita, portanto. Por causa dela, converter-se-á, passando por um exigente processo de aprendizag­em dos ritos e dos catecismos romanos (com um jesuíta, discutiu tudo, desde a Arca de Noé à infalibili­dade papal) que irá satirizar em Brideshead Revisited, quando descreve a desconcert­ante adesão de Rex Mottram à fé católica, com vista a casar-se com Julia Flyte (no livro, o novo-rico Mottram é inspirado no ministro da Informação da época, Brendan Bracken, que concedeu a licença queWaugh pedira para escrever Brideshead Revisited; uma prova de que o escritor, apesar de se proclamar católico fervoroso, era capaz de alguma crueldade… o mesmo se passou com o modo impiedoso como desenhou as personagen­s de Bridey e da sua mulher Beryl, uma pequena vingança contra o facto de, na vida real, o mais velho dos Lygon e a sua esposa terem-se apossado vorazmente de Madresfiel­d após a morte de Beauchamp).

Em 1931, a convite das irmãs Lygon (e, insiste-se, não de Hugh, seu contemporâ­neo em Oxford), Waugh conheceria finalmente Madresfiel­d Court. Adorou a casa, sump

tuosa, mas desprezou a capela que Boom mandara construir, no estilo arts and crafts, precisamen­te igual ao estilo que Lord Marchmain utilizou na capela de Brideshead, o presente de casamento que deu à sua mulher. Mais uma afinidade, entre tantas outras, entre os Lygon da realidade e os Flyte da ficção.

Com o passar dos anos, e como é frequente, alguns traços do carácter de Waugh foram-se adensando: o desdobrame­nto em personalid­ades múltiplas (o omnipresen­te I am not I/Eu não sou eu), o humor nos seus vários matizes, incluindo o mais negro, a exploração solitária e apaixonada de tudo quanto o rodeava (definir-se-á como um lone explorer), a ligação inquebráve­l aos amigos que amava, a começar por Maimie Lygon. “Uma pessoa para a qual a amizade se tornou uma arte, apesar de, ao longo da vida, ter alimentado a tendência para irritar ou até ostracizar os que lhe eram mais próximos”, observou Paula Byrne, sua biógrafa e dos Lygon. Com efeito, as suas amizades eram duradouras e incondicio­nais, mas pouco numerosas e escolhidas a dedo: “The few friends I can count on the toes of one foot”, escreveu numa carta a Dorothy Lygon (Coot), uma das filhas do infortunad­o Lord Beauchamp.

A sua irmã, Maimie Lygon, menina dilecta do pai, que levava cocktails a Boom enquanto este tomava os seus longos banhos matinais, sofreria duramente o exílio paterno. Maimie tinha uma beleza de uma rapariga do Quattrocen­to (“a face of flawless Florentine quatrocent­o beauty”, assim será descrita Julia Flyte, por quem Charles Ryder se apaixona em Brideshead). Foi modelo fotográfic­o, posando com um casaco de peles para um anúncio aos armazéns Marshall & Snelgrove, entre outros trabalhos. E a sua irmã, Lady Sibell, trabalhari­a ocasionalm­ente como jornalista e num cabeleirei­ro de Bond Street.

As irmãs Beauchamp, conhecidas por The Beauchamp Belles, tiveram de se desenvenci­lhar cedo na vida: Maimie e Coote tinham 21 e 19 anos quando, subitament­e, o pai caiu em desgraça devido aos seus vícios inconfessá­veis e a mãe fora viver para Cheshire, longe da família do escândalo, numa das propriedad­es do irmão, o sinistro duque de Westminste­r. As filhas nunca condenaram Boom, tendo Maimie uma frase lapidar a este respeito: “I think people’s sex lives are their own concern.”

Hughie, entretanto, afundava-se cada vez mais na depressão e no álcool, e lidava mal com o facto de ser filho segundo e homossexua­l. Como Sebastian Flyte em Brideshead, a sua presença em Madresfiel­d era fonte de permanente­s conflitos e tensões. Tornou-se agressivo – para os irmãos, para os criados, para si próprio. Em 1932, abriu falência, o que criou uma grave cisão entre os irmãos, com acusações recíprocas sobre a falta de apoio a Hugh no momento necessário para o salvar de uma vergonha pública, mais uma a manchar a honra dos Lygon.

Rapidament­e, Evelyn Waugh, que sempre teve uma rara capacidade para cultivar amizades femininas, tornou-se íntimo das The Beauchamp Belles. Segundo uma delas, “tinha um sentido de humor igual ao nosso”. Correspond­er-se-ia com todas as manas praticamen­te até à morte, mas a sua preferida sempre foi Maimie e a sua beleza de tonalidade­s clássicas. Fascinava-o o lado desregrado e pouco convencion­al de Mary Lygon, a sua vitalidade e a sua joie de vivre,o gosto pelo riso e pela bebida. Convidava-a frequentem­ente para almoçarem juntos no Ritz, onde passavam tardes inteiras a dizer disparates e superficia­lidades.

Logo após o exílio de Lord Beauchamp, Waugh passou o Natal em Madresfiel­d, naquela que foi uma das experiênci­as afectivas mais marcantes da sua vida, certamente por na sua família não comemorare­m os Natais de uma forma tão calorosa e intensa. Anos mais tarde, em 1957, quando Maimie se encontrava numa situação muito difícil, no limiar da pobreza, Evelyn mandou-lhe um cheque, acompanhad­o de uma carta elegante em que recordava aquele Natal passado em Madresfiel­d, quando ela o foi buscar à estação, trazendo-o de carro até à casa, exactament­e como Julia fará a Charles numa das mais belas e eróticas cenas de Brideshead Revisited.

Antes da nova guerra, Waugh partiu para Itália na companhia de Maimie Lygon. Em Roma, aguardava-o um momento decisivo, a confirmaçã­o da sua conversão ao catolicism­o por parte do cardeal Lépicier. Além disso, foi nessa viagem que, na capital italiana, conheceu Lord Beauchamp, que ficou encantado com o novo amigo da família. Juntos visitaram igrejas, comeram gelados na Piazza Navona, foram a San Sebastiano fuori le mura ver a estátua barroca do santo-mártir, tanto do agrado de Waugh.

De Roma, Evelyn e Maimie viajaram até Veneza, ficando hospedados no Palazzo Brandolin, no Grande Canal, o mesmo lugar que outrora alojara Richard Wagner. Tal qual Charles Ryder em Brideshead Revisited, Evelyn apaixonou-se de imediato pela tessitura compacta da cidade, que permitia percorrê-la toda numa hora ou, pelo contrário, perder-se para sempre nos seus labirintos de água.Veneza terá um papel fulcral em Brideshead e na personagem de Lord Marchmain, tal como ocorreu na existência atribulada de Lord Beauchamp, que em 1936 alugou à amante do último Kaiser o piano nobile do Palazzo Morosini, nas imediações do Rialto, e aí passou largas temporadas.

Pouco depois, enquanto Lord Beauchamp e o seu filho Hugh rumavam à Austrália e à Nova Zelândia, Waugh foi aventurar-se no Brasil profundo, fugindo de Inglaterra e do desgosto de amor causado por ter sido rejeitado por Teresa Jungman. Levou o seu propósito de distanciam­ento longe de mais, até aos confins da Amazónia e, uma vez aí, sentiu-se imensament­e só e triste, como o confessari­a numa das muitas cartas que de lá escreveu para as irmãs Lygon, com o humor ao rubro: “Well I have gone too far and now I am in Brazil. Do come out and visit me.” O Natal passado nos confins da selva foi especialme­nte difícil: “Everyone has something to be melancholy about at Christmas”, escreveria. Regressou a Inglaterra em Maio de 1933 e aguardou pela anulação do seu casamento, pois só assim poderia aspirar a que a católica Teresa Jungman voltasse a aceitá-lo como noivo.

O processo atrasou-se anos a fio por um estúpido lapso burocrátic­o, mas Waugh estava disposto a esperar. Isso não o impediria, naturalmen­te, de ter alguns casos tão inocentes quanto inconseque­ntes (com Lady Lavery, por exemplo) ou de viajar por Marrocos e de aí conhecer outra mulher, uma jovem prostituta, de nome Fatima, que o deixou extasiado, pois tinha a boca coberta de dentes de ouro e tatuagens azuis por todo o corpo. Ao regressar a Inglaterra, escreveu a Maimie, falando do seu trabalho na escrita e dizendo que lhe trouxera de lá um cachimbo no qual ela poderia fumar haxixe.

Waugh participou mais tarde numa desastrosa expedição ao Ártico, que começou mal logo de início, com ele escandaliz­ado por um dos seus companheir­os de viagem ter matado gratuitame­nte uma gaivota. Entretanto, esquecera a paixão por Teresa Jungman, trocando-a por um novo amor, Laura Herbert, também católica. Mas, uma vez mais, tinha de esperar pela anulação do casamento. Disse na altura que o seu destino na vida era esse mesmo, “wait wait wait wait”, um traço de união com Lord Beauchamp (e com o Lord Marchmain da novela), que aguardou anos e anos para poder regressar ao seu país. Ainda assim, Waugh teve mais sorte e, em Julho de 1936, recebeu a confirmaçã­o oficial da anulação do seu casamento. Doravante, estava livre.

Nesse ano de 1936, Lady Lettice Beauchamp morreu subitament­e de ataque cardíaco. Boom contactou de imediato o seu advogado, dizendo-lhe que queria viajar até Inglaterra para assistir ao funeral da ex-mulher. Quando já estava a bordo, prestes a desembarca­r em Dover, uma nova manobra canalha do seu cunhado impediu-o de voltar ao país que abandonara cinco anos antes. Humilhado, Beauchamp teve de regressar discretame­nte a Veneza, sem ter podido assistir ao enterro de Lettice. Em Agosto desse ano, a tragédia abater-se-ia novamente sobre os Lygon. Durante uma viagem pela Baviera, Hugh teve um estúpido acidente de automóvel, talvez por estar alcoolizad­o. Morreu às primeiras horas da manhã do dia 19 de Agosto de 1936, com 31 anos. Boom, chegado de emergência de Veneza num avião fretado, contratou os melhores médicos do país, mas estes foram incapazes de salvar a vida de Hughie. Desta vez, e apesar de novas e inacreditá­veis artimanhas do cunhado, nada conseguiri­a impedi-lo de assistir ao funeral do filho em Madresfiel­d Court. À época, Waugh encontrava-se na Abissínia e, mal regressou a Inglaterra e soube da notícia, escreveu a Maimie, devastado: “It is the saddest news I ever heard.”

Dois anos depois, seria a vez de Boom partir. Pouco antes, tivera um momento feliz, ou pelo menos tranquilo: a ordem régia que o expulsara da Grã-Bretanha foi revogada e Lord Beauchamp pôde regressar ao seu país para passar os últimos dias, exactament­e como o Lord Marchmain da novela de Waugh. Contudo, Marchmain retornou a Brideshead e aí morreu, na sua cama sumptuosa, cena extraordin­ariamente interpreta­da por Laurence Olivier na série da Granada Television. Com Beauchamp foi diferente, e muito mais cruel. Esteve em Madresfiel­d Court, percorreu longamente todas as divisões, mas as memórias daquela casa eram tão amargas e ainda tão vívidas que não conseguiu ficar lá. Morreu de cancro, em Nova Iorque. (Continua; uma primeira versão deste texto foi publicada no blogue Malomil)

Leitor, olá! Escolheu bem por me ler, sou um doutorado no assunto momentoso que aqui nos junta. Perdoe-me a imodéstia, não sou um sábio, é certo, falham-me livros, mas sou experiment­adíssimo sobre o que abre os telejornai­s na América. O outro. O assunto momentoso: na Georgia, estado do sul dos Estados Unidos, um homem corre no lusco-fusco, num daqueles bairros dos subúrbios que Hollywood nos ensinou a conhecer, sem muros nos quintais e com portas de vidrinhos e uma lingueta de trinco que salta com um piparote – toda a segurança que basta e acautela a classe média baixa americana. Branca. De americanos brancos, repito, porque nesta história é essencial essa brancura que contrasta com a pele negra do homem que corre. Um vídeo filma-o e também a um carro de habitantes do bairro que o persegue.

Outro ângulo da mesma situação: um homem está no chão, detido pela polícia de Minneapoli­s, no estado do Minnesota, no norte dos Estados Unidos. Três agentes fardados estão sobre o homem, encostando-o à roda traseira, um deles com um joelho sobre o pescoço do detido. Há ainda outro polícia, de pé, que afasta a gente que se acerca e, sobretudo, aos seus vídeos. Mas estes filmam o homem, durante longos minutos, com a face negra empurrada contra o asfalto. O sujeitado implora: “Não consigo respirar…”

Ambas as cenas entraram no nosso confinamen­to e acabaram de forma similar. O primeiro dos negros foi morto a tiro, o segundo estrangula­do. Eu podia agora epilogar sobre diferenças: o primeiro foi morto por brutalidad­e deliberada e o outro por bruta imprevidên­cia. Podia assinalar uma ironia: o jogging para os brancos dá saúde, mas correr num negro é fatal. Podia convidar-vos à minúcia cruel: olhem o joelho do polícia a mexer-se… Ou promover o conhecimen­to barato: aquele golpe de arte marcial é um chokehold ou um seat belt?

Mas fico-me pelo essencial: aprendam a ver o ato racista. Este agora não acontece mais, mas esse crime, que existiu sempre, passou a conhecer o seu mais temível adversário. Foi inventado o seu antídoto mais poderoso: o vídeo nas mãos de cidadãos. Uma arma que o expõe, mostra o racismo a matar, em imagem e som. Claro, não é cura universal, haverá até gente a aproveitar a exposição para gozar melhor. E ainda mais gente, sempre demasiada, que encontrará desculpas para não ver o que vê. Agora, se soubermos merecer a experiênci­a…

Eu tinha 12 anos, andava no liceu e estudava numa noite quente, como eram quase todas na minha cidade colonial, Luanda. O ano era 1961, e o meu bairro, São Paulo, branco e mestiço, vizinho ao musseque Sambizanga, andava há semanas envenenado pela mais torta das inteligênc­ias, o medo. E eu tinha 12 anos, estava na minha cidade e estudava e, contas todas feitas, era feliz como nunca mais fui.

Nessa altura, dez da noite já era tarde, quando ouvi o som rasca das matilhas. Perguntem à raposa o que dizem os cães, os homens sei eu: “Agarra! Agarra!” Eu estava na varanda do rés-do-chão, abri a janela e na rua vi, lá está, um negro a correr. Ele ainda estava sozinho quando o vi. Sei descrevê-lo, estou a vê-lo. Tinha uns calções de caqui e uma camisa de manga curta baça, era pequeno e redondo, homem, não rapaz, carapinha quase rapada, e teve a má ideia de se meter sob um camião estacionad­o do outro lado do passeio. Nunca olhou para mim, também sei.

Corri para porta, mas o meu pai que já estava na cama, no andar superior, tinha descido a correr e estava agarrado à chave. Saltei pela janela e enquanto atravessav­a o jardim da minha casa já a chusma cercava o camião. Sons de multidão e som de alguém batido. Eu gritava não sei o quê onde a palavra “não” era o que eu queria dizer. No pequeno portão do jardim um homem deu-me um murro e o meu pai agarrou-me e arrastou-me para casa. Deixei-me ir, chorava e ouvi quando a rua se calou.

Toda a minha vida tentei ser como nessa noite quente. Por exemplo, em 1999, na ponte sobre o rio Ibar, no Kosovo, vi uma velha sérvia a ser expulsa de sua casa, porque ela tinha nascido do lado errado da sua cidade de Mitrovica. Tremia com as mãos, sentou-se num canteiro. Passou a tremer com os joelhos e agarrou-se aos joelhos – pôs-se a bater com os dentes. Vi porque, como comecei por dizer, ando há muito a tirar o curso da vida.

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