Diário de Notícias

Rodrigo Guedes de Carvalho

Rodrigo Guedes de Carvalho. O seu novo livro trata a violência. Entre maridos e mulheres e com crianças, entre outras. Garante que a inspiração não veio dos acontecime­ntos vividos pela sua amiga Bárbara Guimarães e que começa a escrever de forma mais auto

- JOÃO CÉU E SILVA

“Na falta do futebol os portuguese­s transforma­ram-se todos em epidemiolo­gistas”

Intitula-se Margarida Espantada e serão muitos os leitores que assim ficarão como uma das personagen­s do novo romance de Rodrigo Guedes de Carvalho, um livro proibido de ser lido devido ao fecho das livrarias pela pandemia e que só verá a luz do dia na próxima terça-feira. Mesmo assim, o autor não esteve de quarentena como a maioria dos portuguese­s, pois apareceu a apresentar os noticiário­s das 20.00 num dos canais de televisão e lançou o romance em ebook e audiolivro, a que dá voz como costuma fazer em voz alta cada vez que termina um capítulo. Da pandemia que noticiou tem uma opinião menos grave do que costuma deixar passar: “Não foi um rompimento com a realidade assim tão doloroso, como estar a levar com bombas na II Guerra Mundial, e quase nada nos faltou apesar de estarmos fechados em casa .” No caso dos livros, acredita que após meses com as livrarias fechadas os leitores irão voltar: “Será um tempo novo, com as pessoas a regressar a 50%, mas irá voltar-se aos livros que vão agora ver a luz do dia depois de terem sido apanhados no turbilhão da covid-19. Como o meu, que ia ser lançado em abril.”

Este livro tem muita violência sobre crianças e mulheres. Qual foi mais difícil de relatar?

A violência é um valor absoluto, ou seja não a discrimino se é sobre mulheres ou crianças. A violência doméstica mais não é do que a relação do forte com o fraco e a sua maior metáfora; a que está presente nas guerras onde o maior e mais bem equipado exército esmaga o inimigo. Numa casa, se há um homem com força física e ele amedronta a mulher é uma relação de abuso de poder e nem tanto de violência. Sou obcecado pela violência e pelo nojo que tenho da cobardia, e é o que me leva a escrever tanto sobre o assunto. Sempre que faço uma cena violenta é na esperança de que o leitor olhe para aquilo e comungue do absurdo que estamos a assistir. De onde vem o mal humano que impele a agredir o outro? É uma estupefaçã­o recorrente em mim existirem pessoas capazes de ser maldosas e agressoras perante os mais fracos.

Os homens portuguese­s são pais ou maridos mais violentos do que os outros?

Não, a violência doméstica é de uma universali­dade brutal, daí ser tão preocupant­e.

As revistas cor-de-rosa têm dito que este romance é inspirado no caso da sua amiga e colega Bárbara Guimarães. É verdade?

Não, de todo. O que aconteceu com a Bárbara chocou-me naturalmen­te, conheço-a de há muito, mas não é uma situação diferente da de milhares de mulheres. A Bárbara não foi a musa inspirador­a do romance. Infelizmen­te, não preciso de inspiração para o livro e a sensibilid­ade para a questão é muito anterior, mesmo que a pergunta não seja completame­nte descabida.

O livro fará diminuir a violência doméstica?

Não, nem é escrito nesse sentido. O que falta são julgamento­s mais céleres e penas mais pesadas. O castigo deveria assustar.

Disse que “os bons romances são sempre sobre o amor e os melhores são os que fingem que não são”. Não devemos recear livros duros?

Esse texto está na contracapa e é uma resposta a 10% dos meus leitores que, gostando do que escrevo, fazem sempre esse aparte: “O seu livro é muito duro!” Isso enerva-me porque as grandes obras da literatura e do cinema estão inscritas no género drama. O Monte dos Vendavais, O Padrinho, Taxi Driver, não são comédias! Não devemos recear narrativas duras porque não são uma apologia e é essa inteligênc­ia que é pedida ao leitor. Quando utilizo a violência – como outro escritor ou realizador – não estou a fazer a sua defesa, mas a retratar emoções e sentimento­s que reconhecem­os. Quando ponho cá fora a violência é porque a rejeito e quero outra coisa na minha vida. Nesse sentido todos os romances são sobre amor e os melhores serão os que fingem não ser.

Este romance tem um sabor a thriller. Isso não é habitual em si. O que se passa?

“Eu não encosto entrevista­dos à parede, faço é o que a maior parte das pessoas esquece: o jornalismo de entrevista existe para o jornalista fazer perguntas e o entrevista­do dar respostas.”

Há uma componente policial que eu nunca tinha utilizado, é verdade, e outra fantástica que usei pela primeira vez em O Pianista de Hotel de forma muito subtil e que aqui quis acentuar. No entanto, percebe-se que essas técnicas estão presentes na relação com uma única personagem e não ficam coladas à trama. Nesse sentido sim, pode dizer-se que existe um ambiente de thriller.

Nota-se que algumas personagen­s dão mais prazer ao autor. É verdade?

Em todos os meus livros há sacanas, pois a escrita funciona melhor assim ao tornar-se o nosso saco de boxe e para onde atiramos todo o odioso. Cuspimo-la para ali porque nos impression­a e porque há sempre um sacana ou um cabrãozito, que neste caso é o irmão mais velho. Há também o pai, mas este faz o tipo mais clássico, alguém de uma dureza mais contida, mesmo que igualmente bruta. Eu não acredito em personagen­s totalmente más ou boas, não existem.

Sendo tantas as personagen­s foi necessário preparar a sua composição de outra forma?

Não tanto assim. Tenho um processo que me ajuda muito: vou à internet e faço uma busca aleatória até encontrar um rosto que poderia ser o da personagem. Depois, seja um famoso ou um cidadão normal que tem os traços físicos que desejo, imprimo a imagem e penduro-a num quadro em frente aonde escrevo. Não vou fazer descrições físicas que coincidam com a fotografia, mas na minha cabeça é importante saber que aquele rosto é o da Margarida e, a partir daí, a personagem passa do zero para ser uma pessoa. Assim, estou a vê-las em ação. É um jogo que não chega ao leitor. Quanto ao número de personagen­s, não são assim tantas: quatro irmãos e dois pais. Os polícias fazem parte do núcleo secundário. O núcleo duro é o dos irmãos, e acho que nunca tinha escrito sobre irmãos deste modo.

Há uma frase que diz “regressamo­s a um sítio onde as memórias saem do esconderij­o”. Isso aconteceu-lhe neste livro?

Sem dúvida, tal como outra coisa que me está a acontecer: aparecer muito do que li e dos filmes que vi em mais novo. Uma situação que está a tornar-se muito persistent­e. E há também uma casa que é personagem, já acontecia no livro anterior, Jogos de Raiva, da alta burguesia portuense e que tem um papel fundamenta­l. Penso que, agora que me aproximo dos 60, estou finalmente a pagar a importânci­a da casa dos meus avós no Porto, onde basicament­e fui criado, e o que significou. A casa que estava cheia de segredos que não percebíamo­s.

O livro reflete em muito as relações entre pais e filhos. Deve-se, então, à idade?

O estrato social onde se passa o livro também começa a ser cada vez mais autobiográ­fico. Nunca fiz nada disto, nunca desenhei o meu pai ou os avós, mas eles começam a aparecer. A questão dos pais e dos filhos começou quando estava a crescer e observava muito a relação do meu pai com o seu pai. O meu avô nasceu em 1917, era um self made man e um esteta que adorava poesia, contudo era um homem contido e duro. Isso pesou na relação deles. O meu pai é outra geração, a que fez a Guerra Colonial e ainda traz resquícios da educação que teve e que tornam a comunicaçã­o pouco íntima. Ou seja, a questão dos pais e dos filhos sempre me fascinou, mas comecei nela como filho e neto e não por ter filhos.

A guerra intrometeu-se entre os dois?

Não se intrometeu porque ele fez a guerra como médico alferes miliciano, exatamente como o Lobo Antunes, mas o meu pai nunca gostou de falar sobre isso além de uma ou outra coisa boa. O folclore positivo daquilo, do negativo nunca quis falar.

Os autores não estão a maltratar o leitor devido à baixa qualidade da nossa literatura?

Não conheço a literatura portuguesa contemporâ­nea a esse ponto, mas percebo a ideia. Sim, acho que as pessoas são habituadas a pouco e contentam-se por não serem confrontad­as com a força da narrativa.

A pandemia vai inspirar-lhe um romance?

A pandemia só veio confirmar muitas coisas e não me ensinou por aí além. Exacerba caracterís­ticas que um escritor observa normalment­e: medo, cobardia, egoísmo.

Sempre estiveram na história da humanidade e desta vez aparecem numa sociedade ultratecno­lógica. O que assisti e continuo a assistir não é surpresa e, infelizmen­te, não acho que vamos ficar melhores.

Isso não se deve a estar no caminho de uma enxurrada de notícias sobre a covid-19...

Todo o comportame­nto humano é um tema literário, portanto é como observar uma família onde estava tudo bem e de repente tem de viver com o cancro do patriarca. No caso da pandemia, o que aconteceu é estarmos a viver pela primeira vez um fenómeno global e ser uma experiênci­a coletiva muito forte. Há muita gente com os nervos à flor da pele e que reage de um certo modo porque ainda não se apercebeu de que teremos de deixar passar um ou dois anos para compreende­r exatamente o que estamos a viver. A começar pelas autoridade­s, coitadas, com o que lhes caiu no colo: à nossa ministra da Saúde, ao primeiro-ministro e aos presidente­s todos; uma situação inédita para a qual não estavam preparados – como se percebeu. Não foi só o nosso governo, foram todos. Acho que toda a gente está muito nervosa porque mexeram com o que têm de mais sagrado: o conforto.

Enquanto apresentad­or do noticiário exige-se-lhe fazer perguntas, como se viu na entrevista a Marta Temido. Pode facilitar-se a vida aos governante­s ou deve-se encostá-los à parede?

Eu não encosto entrevista­dos à parede, faço é o que a maior parte das pessoas esquece: o jornalismo de entrevista existe para o jornalista fazer perguntas e o entrevista­do dar respostas. O entrevista­do, sobretudo num direto, é livre de dar a resposta que lhe apetece. Até pode não querer responder a uma pergunta ou dizer que a questão é parva. O que aconteceu com essa entrevista foi uma coisa muito simples: ser a 2 de maio que é o dia a seguir à manifestaç­ão da CGTP. Eu seria mau jornalista se não tivesse perguntado sobre a atualidade 24 horas depois relativame­nte a uma questão de saúde pública importante. Se o rácio do ajuntament­o de pessoas por metro quadrado na Alameda foi ou não perigoso. E quando faço a ponte para Fátima não tem que ver com crentes e não crentes, mas porque era o próximo grande acontecime­nto. A leitura transviada que se seguiu foi PCP vs. católicos, porque neste momento leva-se tudo para a discussão ideológica. Como acontecerá com a Festa do Avante! Se houver decência de olhar para a entrevista percebe-se que era um caso de saúde pública e quem eu tinha à minha frente era a ministra da Saúde. Se fosse António Costa, poderia haver perguntas de cariz mais político, como “há quem diga que o senhor está dar esta benesse ao PCP para que tudo corra bem”. É preciso não esquecer que a ministra veio ao Jornal da Noite no dia a seguir ao 1.º de Maio, se viesse 48 horas antes, seria diferente. É assim a vida.

Há alguém que ainda não foi ao noticiário e que fosse importante marcar presença?

Não, por mim até tenho ouvido demasiados depoimento­s. Acho que na falta do futebol os portuguese­s se transforma­ram todos em epidemiolo­gistas e com uma opinião sobre a saúde. No entanto, o que querem é pegar em qualquer matéria para fazer um confronto entre “nós” e “eles” e aumentar a quantidade de insultos entre os que defendem uma ou outra opinião nas redes sociais. Isso é que me preocupa.

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MARGARIDA ESPANTADA de Rodrigo Guedes de Carvalho. Ed. D. Quixote. Sai na terça-feira.

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