Ricardo Mexia “O facto de as pessoas acharem que não correm riscos faz que corram ainda mais riscos”
Ricardo Mexia. Tem 41 anos, é médico e presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública. Acompanha a pandemia da covid-19 desde o início. Ao DN assume já ter mudado várias vezes de opinião em relação à doença – mas os vírus têm essa imprevisibilidade.
Nasceu em Lisboa, cresceu na Amadora e agora vive numa das freguesias mais antigas da capital, Lumiar, mas, no entretanto, também viveu em África com a mãe, médica, e o pai, engenheiro químico. É dos profissionais de saúde que, desde o início da pandemia, os portugueses se habituaram a ver e ouvir falar sobre o que há de novo, as dúvidas, o que deve ser feito, o que cada um de nós, a comunidade e as autoridades deve fazer. Assume que a sua vida nestes meses não tem sido fácil, como a de tantos portugueses, ao tentar conciliar teletrabalho, telescola e outras atividades. Mas, como diz,“a atitude de um técnico tem de ser coerente com o que defende”. Portanto,“se peço às pessoas distanciamento social, também tenho de o cumprir, se peço para usarem máscara, também tenho de a usar”. Sabe que quem dá a cara está a transmitir mensagens e que estas não podem ser contraditórias. Antes da pandemia, já era habitual assumir posições enquanto dirigente sindical, através dos cargos no Sindicato Independente dos Médicos e na Ordem dos Médicos, como presidente de associações de estudantes e até como de militante do PSD. O associativismo e a política entraram na sua vida, diz, quando percebeu que era possível mudar a vida das pessoas através destes meios. Por isso, assegura, nunca confundir os papéis que desempenha como médico, como presidente de uma associação ou como político. Para ele, a política não é uma profissão, mas uma opção, um meio e não um fim. Na semana em que Lisboa se tornou um dos focos mais preocupantes da doença, Ricardo Mexia fala sobre o que deve ser feito em relação à doença.
Lisboa registou mais de 90% de novos casos de covid-19 na última semana. Como olha para a situação em relação ao resto do país?
É uma questão multifatorial, mais população, mais mobilidade, etc. As regiões onde houve menos incidência são as que estão mais isoladas, onde há menor mobilidade social e menor densidade populacional. A situação das ilhas é clara, se encerram as fronteiras, e existindo um forte controlo nesse sentido, é difícil que surjam novos casos. Mas temos de esperar para ver o que vai acontecer nos próximos dias e nas próximas semanas.
Os focos de infeção parecem estar em bairros sociais e em zonas de trabalho, devido à sobrelotação de transportes. Quer dizer que o aumento de casos pode não ter que ver só com o desconfinamento?
Mais uma vez, penso que seja multifatorial. Por um lado, pode ter que ver com o contexto em que as pessoas trabalham e se deslocam e, por outro, com o meio em que vivem. A desigualdade social tem um impacto importante neste surto, é preciso não o esquecer. Pessoas com casas pequenas, onde têm de coabitar com outras e onde há maior dificuldade em fazer o distanciamento físico dos casos infetados e dos que têm de cumprir quarentena, não têm condições para serem tratadas. E, se calhar, deveriam ser encontradas respostas do ponto de vista social mais consentâneas para estes casos, até para se fazer um controlo mais eficaz da doença.
Que respostas concretamente?
Se começarmos a identificar que é difícil para as pessoas cumprir o isolamento no seu domicílio, temos de encontrar alterna
tivas para as manter num espaço onde façam a sua convalescença. Os hospitais de campanha poderiam ajudar a conter o problema. É importante uma solução que reduza a disseminação da doença.
O foco da Azambuja, que atingiu até agora mais de 170 trabalhadores, pensa-se que surgiu precisamente nos transportes públicos. O que fazer numa situação destas?
A lotação é um problema no contexto de uma pandemia. Se antes, com uma lotação normal, provavelmente não conseguiríamos assegurar uma redução do risco que fosse compatível com o controlo do surto, agora há mesmo que a reduzir, para se diminuir o risco também. Nesta questão específica, a solução passaria pelo reforço de comboios e autocarros, de forma a cumprir o distanciamento. Por outro lado, é preciso identificar o mais rapidamente possível os casos e afastá-los do resto da população.
Se tal não for feito, o que pode acontecer?
Sabíamos que com a redução das medidas restritivas era possível que houvesse um aumento de casos. Nesta semana percebeu-se que tal não foi generalizado no país e que acabou por se concentrar numa zona. Agora importa perceber se estes novos casos correspondem a uma via de transmissão conhecida, como parece ser o caso da Azambuja, ou se são casos de contaminação comunitária – em que não se sabe qual foi a via pela qual a pessoa se infetou. Isto vai implicar respostas diferentes, umas mais pontuais e dirigidas para os pontos vulneráveis já identificados, outras mais abrangentes, se forem casos de disseminação comunitária. E se for assim, é possível que se tenha de voltar a reforçar as restrições.
Só nestas zonas? Por exemplo, nesta sexta-feira, o Governo decidiu q ue apenas adiava a abertura dos centros comerciais de dia 1 para dia 5, anunciando que a doença não está fora de controlo. Isto chega?
Ainda bem se é assim. Temos de esperar para ver o que acontece, mas se há regiões em que a situação está a evoluir de forma negativa, permitir maiores concentrações de pessoas em espaços públicos, como nos centros comerciais e outros, não faz sentido do ponto de vista epidemiológico. Compreendo que haja pressões económicas, mas já temos a economia a circular em várias regiões, e há que ter em conta que a economia pode voltar a ser travada se a situação evoluir negativamente. O doseamento das medidas tem de ser gradual e em função da evolução da doença e dos locais.
Neste momento, há cinco bairros sociais da Grande Lisboa mais afetados. Há moradores que pedem até o encerramento de cafés e restaurantes. Justificar-se-ia, como se fez em Ovar, cerco sanitário nestas zonas?
Tudo depende da avaliação da situação. Em Ovar, a situação estava mais ao menos circunscrita ao concelho. Adotar esta medida nas áreas metropolitanas de uma grande cidade poderá ser mais difícil, porque as pessoas vivem em locais diferentes de onde trabalham, tendo, muitas vezes, de percorrer grandes distâncias. Depois há questões de maior complexidade. Quem tem contrato de trabalho pode ficar de baixa ou de quarentena, que este tempo é-lhe pago, mas quem tem uma condição laboral precária, os seus rendimentos já dependem de trabalhar ou não. Há quem não possa ficar em casa, é preciso uma solução para estas situações, pois estamos a proteger estas pessoas e o resto da comunidade.
Como olha também para situações como a Festa do Avante!, casamentos, batizados, reuniões de família, para as quais se procura justificações de excecionalidade?
Os vírus são democráticos e igualitários, afetam as pessoas de forma indistinta. Não têm em atenção o contexto em que estão concentradas, seja por opção ideológica, fé ou outros. Portanto, tudo depende da evolução da doença, mas se houver grandes concentrações de pessoas, o risco de disseminação da doença aumenta. É difícil perceber algumas excecionalidades, porque o risco é igual, não muda em função da razão que leva as pessoas a concentrar-se. E tem de haver coerência nas medidas aplicadas.
Outra preocupação diz respeito à mudança do perfil do infetado, agora na faixa etária dos 20 aos 29. Porquê este novo padrão?
É difícil fazer essa análise, poderá ter que ver com comportamentos de risco. É preciso saber se a contaminação se deve a exposição ocupacional ou a exposição de convívio social. Só sabendo isto é que poderemos afiançar com maior certeza o que pode estar a levar à mudança deste perfil. Mas há que ter em conta os comportamentos, avaliar e tomar medidas. Até agora, os mais jovens têm tido menos riscos em desenvolver a doença, ou de a desenvolver nas formas mais graves, mas não estão isentos de a poder ter e de a passar a outras pessoas vulneráveis. O facto de as pessoas acharem que não correm riscos faz que corram ainda mais riscos. E isto é um problema grave.
Tem sido referido também que Portugal tem uma taxa de letalidade reduzida relativamente a outros países, nesta semana era da ordem dos 4%. Qual a sua opinião?
Não creio que a nossa taxa de letalidade seja particularmente baixa. Aliás, atendendo ao facto de que agora Portugal está a testar muito mais pessoas, deveríamos ter uma taxa de letalidade mais baixa. É importante que se olhe para esta situação e que se encontre explicações.
Como médico de saúde pública já tinha vivido uma situação com esta dimensão?
É uma situação ímpar pela sua magnitude e pelo impacto, mas na saúde pública estamos habituados a lidar com cenários de incerteza com muita regularidade. Por exemplo, há uns anos tivemos de lidar com o surto de legionela emVila Franca de Xira, foi o segundo maior do mundo, mas não teve esta dimensão. Os surtos já têm por definição a imprevisibilidade, mas a esta escala é anormal. Ao mesmo tempo, é muito desafiante.
Já mudou várias vezes o seu pensamento sobre a doença?
Sem dúvida. À medida que vamos tendo mais casos – e neste momento já temos quase seis milhões diagnosticados por todo o mundo, fora os que não conseguimos diagnosticar –, vamos tendo também mais dados e informação para evoluir na maneira de abordar o problema e de corrigir até as recomendações definidas. A questão das máscaras é um exemplo claro. Numa fase inicial não havia recomendação para serem utilizadas de forma genérica, entretanto tal foi mudado. Eu próprio infleti a minha posição. Quem trabalha nestas áreas sabe que tudo pode mudar, que a própria doença pode mudar, o que, até agora, e aparentemente, não é o caso, mas pode acontecer.
Nesta semana, dois dirigentes da OMS vieram dizer, no mesmo dia, ser “pouco provável uma segunda vaga” e “ser provável que ocorra uma segunda vaga”. Justifica-se?
Tenho muita estima pela Maria Neira e pelo Mike Ryan, são os dirigentes a que se refere. Imagino que eles tenham acesso a múltiplos dados que possam apontar para sentidos diferentes. Neste momento, há estudos que indicam um e outro sentido, mas, relativamente a uma segunda vaga, a resposta certa é: não sabemos. Podemos ter projeções e modelos, mas a verdade é que não sabemos. Poderá acontecer ou não, poderá acontecer em alguns locais e noutros não, tal como aconteceu neste primeiro embate, pois houve países que passaram pela situação com um impacto relativo e outros em que a situação está a ser devastadora.
Mas uma segunda vaga pode ser mais letal e, por isso, mais preocupante...
Sim, em relação a outras doenças, o segundo surto acabou por ser mais letal do que o primeiro, mas hoje também estamos mais alerta e preparados para responder de forma adequada a uma eventual ameaça nas próximas semanas ou nos próximos meses.
Quando se fala na segunda vaga aponta-se para o outono-inverno, mas não há qualquer relação de causa e efeito com o clima...
Ainda não se sabe se o impacto do clima é muito relevante. Nesta fase, quando olhamos para África ou para a América Latina, vemos que, apesar de terem temperaturas mais amenas, a situação não está propriamente fácil. Tipicamente os vírus respiratórios circulam mais no inverno do que no verão. Temos épocas de gripe, resta saber se este coronavírus vai adotar esse comportamento. O importante, e em relação à resposta do nosso Serviço Nacional de Saúde, é estarmos preparados para um cenário mais benigno e para outro mais complexo.
O que deve ser feito?
Há diversos níveis de preparação. E devemos começar desde logo por nós próprios, cidadãos. Todos temos de tomar medidas para reduzir a disseminação da doença, como manter o distanciamento social e a higienização das mãos. São hábitos que devemos manter para outras doenças. Depois, temos outro nível que tem que ver com cada atividade. E, aqui, as repostas terão de continuar a ser dadas de acordo com a evolução epidemiológica, os riscos e as ameaças inerentes. Quanto à resposta das estruturas nacionais, a preparação do país, o Governo tem de dotar os serviços dos recursos necessários. E isto passa por ter equipas que consigam dar resposta rápida, com capacidade para diagnosticar, para identificar os casos e colocá-los em isolamento e os respetivos contactos em quarentena.
Para finalizar, e que que toca a saúde pública, que lição já se apreendeu?
Que os recursos têm de ser repensados. Percebeu-se que ainda há muita dificuldade em gerir a procura, fazer monitorização dos casos e vigilância ativa. A inexistência de um sistema de informação também foi notória. Portanto, é fundamental investir na saúde pública e resolver estas lacunas, de forma que, quando for necessário, e vai ser novamente, estejamos mais bem preparados para dar uma resposta.
Como médico e como cidadão, qual a sua preocupação nesta fase?
A comunicação. Temos recebido mensagens conflituantes, com algumas incoerências, na medida em que é permitido fazer algumas coisas num dado contexto, mas depois já não é noutros. Isto gera muita confusão nas pessoas, podendo levá-las a achar que, afinal, as regras não são assim tão importantes e adotam comportamentos de risco, que não são os mais corretos.
“Relativamente a uma segunda vaga, a resposta certa é: não sabemos. Podemos ter projeções e modelos, mas a verdade é que não sabemos. E pode acontecer nuns locais e noutros não.”