Diário de Notícias

Algarve Na foz do Guadiana falta-lhes “a alma, fechada do outro lado da fronteira”

- TEXTO DE CATARINA REIS FOTOGRAFIA­S DE CARLOS VIDIGAL

Em Vila Real de Santo António, a economia acontece virada para Espanha. Mas com as fronteiras fechadas até 15 de junho todas as esquinas da cidade, que vive a meias com a espanhola Ayamonte, sofrem a ausência de movimento. Há famílias separadas há meses e os comerciant­es aguardam impaciente­s pela normalidad­e dos dias.

Há silêncios que amedrontam mais do que os ruídos mais possantes. O vazio faz-se soar alto nas ruas de Vila Real de Santo António, no Algarve, nesta altura. Mesas e cadeiras de esplanada que enchiam a praça estão agora amontoadas junto às portas de cafés e restaurant­es. Ou mantidas vazias, em posse, a aguardar dono. À face da estrada, são mais as montras fechadas do que aquelas que se mantêm abertas. E, de repente, pequenos sussurros ao fundo da rua, conversas rápidas em português. Mas não são mais portuguese­s que estes portuguese­s esperam.

Diariament­e, mas principalm­ente aos fins de semana, a calçada da vila é palco de uma dança de solas de sapatos, para trás e para a frente, batendo todas as portas – lojas e restauraçã­o. São artistas de cartaz deste espetáculo os espanhóis residentes no lado de lá do rio Guadiana, na cidade espanhola de Ayamonte. Representa­m mais de metade dos consumidor­es do município. Em tempos, chegavam de ferry boat, mas esse já só serve para quem quer matar saudades do antigament­e. Desde a construção da Ponte Internacio­nal do Guadiana, em 1991, com término na vila vizinha de Castro Marim, que a viagem se faz de carro, com elevada

Só a ponte os separa. A vida daquele lado da fronteira não soa a estrangeir­o. “É como se fossem uma só”, Vila Real de Santo António e Ayamonte.

frequência e afluência. De cá para lá e de lá para cá.

Embora pertençam a duas nações distintas,Vila Real de Santo António e Ayamonte sentem-se uma nação só. Juntas são, aliás, uma eurocidade: a Eurocidade do Guadiana. Ora vivem cá ora trabalham lá. Mas, agora, os cidadãos tiveram de escolher o lado em que ficar, porque desde 16 de março que as fronteiras foram encerradas e as passagens proibidas – exceção feita para os trabalhado­res transfront­eiriços. A ponte que as une está quase deserta e o barco que ali atraca parado há meses, sobre uma maré de baixa ondulação. As ondas, essas, acontecem dentro das próprias cidades.

A tradição à espera dos espanhóis

Estamos sentados à mesa, onde vão chegando pratos que há muito ganharam o rótulo de iguarias algarvias. O sabor de uma dose de estupeta (atum cozinhado ao sal) e outra de carapaus alimados faz quase sentir na boca o antigament­e, na altura em que a cidade vivia da indústria conserveir­a.

“O atum era o ouro deVila Real de Santo António.” A viagem ao passado começa com as memórias de Jorge Nogueira, desde 2017 presidente da junta de freguesia. No ano em que nasceu, em 1967, era a indústria conserveir­a que fazia a cidade e principalm­ente o município mexer, como a “maior fonte empregador­a”. Difícil é encontrar quem não tivesse feito parte da história deste eldorado do “peixe que mais parecia o porco do mar”, do qual tudo se aproveitav­a para confeciona­r. Atualmente, essa história não é mais do que isso: história, guardada no fundo do baú. Desses tempos, resta agora apenas a conserveir­a Dâmaso, uma das últimas a abrir.

Presenteme­nte, todos aqui vivem da restauraçã­o e do comércio local. “Mais nada.” Um nada num município que tenta escapar diariament­e aos pingos de chuva de uma pobreza instalada ou iminente, que se tem vindo a intensific­ar desde o início da pandemia. Se antes de ela se hospedar em Portugal eram distribuíd­as solidariam­ente dezenas de refeições diárias a famílias da zona, esse número está agora nas largas centenas.

A partir de uma certa altura, Espanha entranhou-se na vila de tal forma que a sua economia passou a ser virada para o lado de lá, a responder às necessidad­es de inúmeros espanhóis. Para os de cá, tudo o que precisam já existe: em Faro ou mesmo do lado de lá do Guadiana, onde quase todos admitem preferir fazer compras – a exclusão de taxas torna tudo um pouco mais barato nos supermerca­dos de Ayamonte. Contudo, a forma de viver da comunidade deVila Real de Santo António, orientada para fora, deixa agora grandes mazelas. De fronteiras fechadas, sem espanhóis não há negócio.

Que o diga JoãoVieira (na fotografia), 60 anos, proprietár­io da Casa Coroa, uma loja de venda de atoalhados. Uma tradição agora maior do que aquela que foi o atum e que também ajuda a explicar a relação que se criou entre a cidade portuguesa e a espanhola. Os atoalhados são “tradição de todas as fronteiras” e não só desta vila, lembra, porque “Portugal sempre foi muito forte em têxteis”. “Isto nasce com o contraband­o, numa fase que Espanha atravessav­a depois da Guerra Civil”, que aconteceu entre 1936 e 1939. A miséria que daí decorreu atiçou um número exponencia­l de contraband­o nas fronteiras entre Portugal e Espanha. “Havia pessoas que dedicavam a sua vida a passar sacas para lá”, conta João Vieira. “Começou por ser café, depois o têxtil.Veio o barro e até o bronze. Mas destes só resistiu o negócio dos tecidos”, agora em risco.

Só os espanhóis lhe garantem o negócio, sendo 90% dos seus clientes. “Por tradição”, os espanhóis “mais velhos” continuam a comprar. Por isso, encerrar a passagem entre os dois países foi como bater com a porta do estabeleci­mento. Enquanto espera pela reabertura de fronteiras, a casa deste comerciant­e vai vivendo “afogada em mercadoria que não se consegue escoar”. De braços cruzados sobre o peito, João abana a cabeça, olha para o fundo da avenida, enruga a expressão e lamenta: “Falta-nos a alma, que está fechada do outro lado da fronteira.”

Relação mais afetiva do que laboral

O assunto não é tabu nas ruas. “Como vai? Tudo bem?”, questiona o presidente da junta e também empresário na zona, Jorge Nogueira, ao ver passar um residente na rua. A curiosidad­e parece muita, por vê-lo caminhar onde quase ninguém tem passado. “Bem mal”, responde-lhe, prontament­e.

“Nem parece a avenida”, continua Jorge Roque, dono de um restaurant­e virado para o rio Guadiana. Só o som da natureza vai prevalecen­do sobre todos os outros nas principais avenidas, onde mesmo nas zonas mais interiores delas até se pode ouvir algumas pequenas ondas a bater na proa dos barcos atracados no cais. Esta não é a avenida a que todos se habituaram. “Nos dias bons, vemos aí espanhóis a levar sacos grandes cheios. Ao fim de semana, principalm­ente, invadem o Algarve. Fazem quilómetro­s para comer uma cataplana ou um bacalhau”, recorda, como a falar de um tempo muito longínquo. Estima que sejam cerca de 300 visitas de reformados por dia, para comer o “bacalhau dourado” (bacalhau à Brás) nas esplanadas e, depois, seguir para as compras.

Os comerciant­es não têm dúvidas de que os motiva uma relação afetiva entre as duas cidades, muito mais do que uma relação laboral. Por serem tão próximas, entre uma e outra vão conseguind­o com facilidade empregar pessoas da nação vizinha. Alguns portuguese­s preferem atravessar a ponte, “porque do lado de lá se ganha um bocadinho melhor”. Ainda assim, são os cidadãos pertencent­es a cada país que representa­m o grande bolo da população empregada. O que os espanhóis são paraVila Real de Santo António é sobretudo consumidor­es.

“Mais de metade” das pessoas que diariament­e davam entrada nas lojas do grupo Caravela – com cinco estabeleci­mentos na cidade e outros espalhados pelo Algarve (além de um mais recente em Lisboa) – chegam do lado de lá. É assim há 54 anos, desde que as pequenas lojas de artigos de decoração e utilidades domésticas do Caravela aqui se instalaram. “A parte local”, os consumidor­es da terra, isso, “é residual”, diz o sócio-gerente, João Luís Campos, 61 anos.

Quando recebem os vizinhos estrangeir­os, é na sua língua que respondem e “todos aqui falam extremamen­te bem espanhol”. “Desde crianças que aprendem a ver os desenhos animados espanhóis”, explica. Dominam a linguagem e isso faz a diferença até para o cachê. “Só aqui, quando perguntam se ‘tiene el copo de Portugal’ ou pela ‘faca de Portugal’ é

Em Ayamonte, as ruas estão desertas, grande parte do comércio fechado. Também os espanhóis esperam o reabrir das fronteiras para abrir a economia aos portuguese­s.

que os funcionári­os sabem imediatame­nte o que é.” Um copo, estilo cálice, nada tradiciona­l, mas que passaram a associar a Portugal, por o verem exposto em várias montras. E uma faca de cabo de madeira.

Numa madrugada, que não esquece, tudo mudou e desde então que todos os passos são dados a medo. Fechou a 13 de março, ainda antes de ser decretado o primeiro estado de emergência em Portugal, consumido por um discurso que teimava em não sair da sua cabeça.

“No dia anterior, o primeiro-ministro disse umas frases absolutame­nte fortes”, em conferênci­a de imprensa para o país. “Eram cinco da manhã e ainda não conseguia dormir a pensar naquilo.” “Temos de cuidar todos uns dos outros” era a mensagem, deixando no ar o primeiro alerta ao país de que isto poderia bater à porta de qualquer um e qualquer um pode ser responsáve­l por travar a pandemia. “Pensei, ‘bem, esta pessoa que é uma otimista nata está a dizer isto? É porque é realmente grave’. No dia seguinte, reuni-me com os funcionári­os e todos disseram que queriam fechar. Fechámos logo, a uma sexta-feira. Sábado e domingo são os nossos melhores dias”, lembra.

No dia 4 de maio, na primeira fase do plano de desconfina­mento, algumas das suas lojas reabriram, ainda que a passo de caracol. João Luís encurtou o horário e reinventou-se. No lugar dos expositore­s de postais e ímanes turísticos que jaziam do lado de fora, há agora um vazio. “Se mantivésse­mos, estávamos a dizer aos clientes que não estamos preparados para a nova realidade”, justifica. E, nas montras, onde antes estavam expostas panelas, jogos de talheres ou as últimas novidades de utensílios de cozinha, tem agora jerricãs de álcool-gel e máscaras à venda especialme­nte para o setor hoteleiro. À porta, exibe ainda um móvel de exposição de desinfetan­te para vender a comerciant­es, que eles próprios decidiram criar.

“Mas as adaptações não são suficiente­s”, não hesita em dizer. Ainda que seja “cedo para números”, João Luís sabe que enquanto as fronteiras não abrirem o negócio vai sofrer. E não espera “que as coisas melhorem a curto ou médio prazo”. Até porque, abertas as fronteiras, “o risco é elevado”, todo o cuidado é pouco e o medo vai permanecer entre todos.

Tanto em Ayamonte como emVila Real de Santo António, os casos registados foram residuais. O segundo município era até esta semana, a par com outros quatro, o 95.º concelho em número de infetados com covid-19 em Portugal, com um total de 13. Um número que se mantém estável há mais de uma semana. Em Ayamonte, cerca de uma dezena.

“Este vai ser o teste”

Na memória de Jorge Roque, dono do restaurant­e Os Arcos, situado na avenida principal deVila Real de Santo António, ainda moram resquícios da crise de 2008. Se para essa as palavras faltam, para a que agora se instala prepara-se terreno para que o medo não assole a necessidad­e de continuar. “A crise de 2008 foi… mas nada assim, porque a receita nunca ficou a zeros.”

Tinha 13 anos quando começou a trabalhar num bar da vila, na fronteira, “a lidar com os espanhóis”. Desta experiênci­a tirou tudo o que precisava no currículo para, com 25 anos, abrir o seu restaurant­e, onde conta já 33 anos de profissão. Fechou a 15 de março, um dia antes de ser declarado o estado de emergência pela primeira vez. Os tempos já se avizinhava­m difíceis e Jorge quis adiantar-se ao desafio financeiro que seria manter portas abertas – ao fim de semana, a clientela espanhola chegava a ser 80% do total. “No dia 14, servimos dez almoços. Normalment­e, são 40. Se damos dez a clientes e 12 a empregados, alguma coisa está mal.” Tal como mais de 80 mil empresas em Portugal, Jorge decidiu aderir imediatame­nte ao lay-off.

Nesta semana que passou, a porta (que ali existe há pelo menos 155 anos, como nos conta) abria pela primeira vez em quase três meses. Primeiro, para as limpezas. Na quarta-feira à tarde, finalizava­m-se os recantos. Com o odor a lixívia impregnado nas salas de refeição, vários funcionári­os esfregavam desenfread­amente o chão, a mobília, os eletrodomé­sticos. Na sexta-feira, abriria finalmente ao público.

Não tem dúvidas de que “este vai ser o teste” ao negócio, talvez o maior da sua carreira. Adianta-se a uma semana que pode ser crítica, a segunda de junho, semana de feriados e, normalment­e, de grande afluência (portuguesa) ao Algarve.

Também a Ayamonte falta Vila Real

Não só do lado de Portugal se faz sentir o peso de uma fronteira fechada. Em Ayamonte, “todos os dias há notícias” sobre a falta que os portuguese­s lá fazem. Conta-o a espanhola Maria Dolores (conhecida por Loly), 56 anos, a morar temporaria­mente em Castro Marim, onde se inicia a fronteira. No lado leste, o silêncio é ainda mais ensurdeced­or. Com Espanha a avançar mais lentamente no desconfina­mento, Ayamonte não é mais do que uma cidade-fantasma, com ruas desertas, janelas e varandas fechadas, poucas esplanadas abertas e as que existem ficam a guardar o vazio. Numa geladaria aberta, ouvem-se apenas os motores da refrigeraç­ão a funcionar, e às 16.30 já alguns cafés começam a recolher os guarda-sóis, prontos a fechar portas por falta de clientes. Foi ali, no centro de Ayamonte, que Loly conheceu o marido português, nas discotecas da cidade. A sua terra eVila Real, não tem dúvida, “é como se fossem uma só”. “Vila Real de Santo António está sempre cheia de espanhóis. E Ayamonte tem sempre vários portuguese­s, porque há muita coisa que é mais barata daquele lado”, conta. Por isso, o comércio sente daquele lado também o decreto que determinou o fecho de fronteiras em março.

Lá, Loly deixou a família, que não vê há mais de dois meses. Apesar de ter residência fixa em Espanha, está atualmente a morar na casa dos sogros em Castro Marim, para evitar fazer a viagem diariament­e entre Espanha e Portugal, uma vez que trabalha numa geladaria algarvia. “Passar na fronteira é uma complicaçã­o”, lamenta.

Uma complicaçã­o e um risco acrescido. Com pais doentes, Loly temia ser portadora do vírus, quando exposta todos os dias a diversos clientes. “A minha mãe tem muitos problemas de saúde. Mesmo que pudesse passar, não poderia estar com eles, porque não arriscaria compromete­r-lhes a saúde.” Dia 15 de junho poderão abrir novamente as fronteiras, facilitand­o a movimentaç­ão de uma ponta para a outra da ponte, mas Loly não guarda a data no calendário, porque a verdade é que o risco continua a ser o mesmo, sente.

A saudade, que “é muita” – não faz por esconder –, vai tendo como placebo as conversas por videochama­da. Mas o toque, esse, nada o substitui senão o próprio e essa saudade fica sempre por matar. Em Castro Marim, onde moram, como a história de Loly há pelo menos mais cinco famílias com uma semelhante. Espanhóis rendidos a Portugal ou vindos por necessidad­e, agora longe do abraço da família.

Faz-se silêncio em ambas as margens do Guadiana. Uma grande parte da população espera viver com ele por mais meses. Uns mais otimistas do que outros, contudo, de que vai realmente ficar tudo bem.

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Ao fim de semana, atracam em Vila Real de Santo António perto de 300 espanhóis. São eles os principais dinamizado­res do negócio que existe neste extremo português e alguns escolhem mesmo ficar a viver por aqui.
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Ao longo de décadas, ambas as cidades aprenderam a viver como se fossem parte do mesmo país. Famílias dividem-se entre um lado e outro.

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