A SIC caiu numa “kassanjada”
As imagens da reportagem ‘Os meninos de Kassanje’ transmitidas pelo canal de televisão português SIC [na terça-feira desta semana, 28 de julho] foram (...) um embuste usado pela associação Pedacinho do Céu para angariação de donativos de forma ilícita. Quem o afirma são duas ativistas diretamente envolvidas [após a exibição da reportagem] no resgate de quatro crianças (...), com a assistência do Instituto Nacional de Emergência Médica de Angola e com o envolvimento da Direção Nacional de Saúde (...).
Para Laura Macedo e Maria HelenaVictória Pereira (...),‘as crianças tinham sido recolhidas momentaneamente das casas das suas famílias e colocadas num local para que pudessem fazer o vídeo’.
Após a realização do vídeo, ‘as crianças voltaram para junto dos seus familiares, onde habitam, não se encontrando nenhum órfão no processo’, afirmaram, esclarecendo que as quatro crianças resgatadas estavam com as (...) famílias nos bairros Cassaca 2 e Zango.
‘Podemos afirmar que quatro das crianças estão a ser observadas nos hospitais já referidos sob tutela das autoridades sanitárias e acompanhadas por familiares diretos’, declararam as ativistas.
Laura Macedo contou que foi contactada pela SIC, que lhe forneceu o número de Hélder da Silva, de forma a encontrar a localização das crianças para obterem a ajuda necessária.
‘Nesse seguimento, eu, Laura Macedo, entrei em contacto com várias entidades governamentais, de forma a obter o apoio necessário para o resgate das crianças.’
Questionada pela Lusa, Laura Macedo considerou que se tratou de ‘uma tentativa defraude realizada em Portugal’, já que não foi feito qualquer pedido de ajuda ou apelo junto das autoridades angolanas.
‘As crianças são angolanas, nós somos angolanos, mas o apelo feito pelo Sr. Hélder é para os portugueses, a fraude vem de Portugal, alegadamente de uma senhora que se chama Fátima (da associação Pedacinho do Céu), que, segundo Hélder Silva, coordenou toda esta operação’, disse Laura Macedo.
‘A nossa perceção é que houve uma manipulação’, no sentido de ‘montar esta encenação’, acrescentou Maria Helena Pereira. (...) Também uma fonte do Ministério da Família e Promoção da Mulher (MASFAMU) considera que se trata de uma tentativa de fraude, depois de uma delegação multissetorial ter estado no Bairro da Estalagem, emViana [igualmente após a transmissão da reportagem], onde não encontrou qualquer vestígio das crianças.”
Todo o trecho usado até aqui corresponde à reprodução parcial e ipis verbis de um artigo do semanário angolano Novo Jornal, citando duas ativistas sociais locais. Esclareço os leitores, sobretudo portugueses, que o Novo Jornal é um semanário privado cujo profissionalismo e independência não podem ser questionados, sendo aquilo que se pode chamar um “meio de referência”. Quanto às duas ativistas que fizeram a denúncia da manipulação da associação Pedacinho do Céu, basta acompanhar as suas redes sociais para constatar que não morrem de amores pelo atual governo angolano. Ou seja, a SIC caiu numa “kassanjada”. Da leitura do artigo podemos inferir todo o processo que levou o canal português a veicular a reportagem “Os meninos de Kassanje”. Possivelmente, a estação recebeu uma denúncia da associação Pedacinho do Céu, com sede em Olhão, que lhe deu o contacto do seu funcionário em Angola, Hélder Silva. Este preparou as condições para o efeito, “esquecendo-se” de uma delas, que, em jornalismo, é fundamental: contactar “o outro lado”. Quem viu a reportagem constatou que a SIC não ouviu ninguém ligado às instituições que lidam com este tipo de assuntos e muito menos às autoridades locais.
Mais grave: segundo as duas ativistas, as crianças mostradas na reportagem vivem com as suas famílias, tendo sido reunidas num barracão, como se estivessem abandonadas, apenas “para o boneco”. Acresce que as próprias imagens foram produzidas e enviadas pelo funcionário da Pedacinho do Céu. Se tudo isso não é manipulação, então os trumpistas e bolsonaristas têm razão: a Terra é plana.
Só faltou passar o rodapé com o IBAN da associação Pedacinho do Céu, para a recolha de donativos, a fim de ajudar “os pretitos angolanos”.
O problema da fome e da subnutrição infantil em Angola é real e gravíssimo. Mas não se resolve com estas encenações de mau gosto, disfarçadas de solidariedade e jornalismo.
Só faltou passar o rodapé com o IBAN da associação Pedacinho do Céu, para a recolha de donativos.
Jornalista e escritor angolano. Diretor da revista África 21.