Diário de Notícias

Soares, Cavaco e Eanes? Um maior do que os outros?

- Leonídio Paulo Ferreira

Quem foi o político de maior sucesso neste nosso quase meio século de democracia? Pelos votos, afinal o direito que todos conquistám­os a 25 de abril de 1974, pode arriscar-se dizer Cavaco Silva, que é neste sábado entrevista­do no DN, fotografad­o frente ao CCB, que mandou construir na década em que foi primeiro-ministro de Portugal. Afinal, o professor de Finanças, hoje com 81 anos, foi seis vezes a votos a nível nacional e ganhou cinco. E dessas cinco vitórias quatro foram com mais de 50% dos votos: duas como candidato do PSD à chefia do governo (1987 e 1991), duas como candidato presidenci­al (2006 e 2011).

Mário Soares tem também todo o direito a entrar neste campeonato dos números: por oito vezes se submeteu ao voto popular, ganhando cinco. O político socialista, que morreu em 2017 com 92 anos, foi primeiro-ministro em duas ocasiões e também cumpriu dois mandatos presidenci­ais, um deles, o iniciado em 1991, conquistad­o com um resultado histórico de 70% dos votos, recorde por bater.

Junto – talvez para surpresa de alguns – ainda a estas contas Ramalho Eanes. Duas eleições apenas, sim, mas ambas com vitórias acima dos 55% (presidenci­ais de 1976 e 1980). Numa das vezes, eleito com os votos de PS, PSD e CDS, na outra com os de PS e PCP. Nenhum outro político pode reivindica­r esta capacidade para atrair o reconhecim­ento dos portuguese­s de uma ponta à outra do leque partidário, aliás comprovada na consensual­idade que se foi construind­o em volta do general, com 85 anos.

As palavras de Eanes são ouvidas, escutadas, geram emoção e adesão, como se viu pelas reações à entrevista que deu à RTP em abril, numa altura em que a covid-19 matava e muito e, olhando para Espanha e Itália, os portuguese­s receavam que as unidades de cuidados intensivos não chegassem para todos os casos. O general, naquele seu estilo austero a que sempre nos habituou, mas quase de lágrimas nos olhos, anunciou ali que em situação extrema ofereceria o ventilador disponível a alguém mais jovem, felizmente um sacrifício que nem ele nem ninguém em Portugal teve de fazer.

Portugal é um caso de sucesso mundial, por muito que alguns teimem em destacar os defeitos para esconder as virtudes. Estes 46 anos desde a Revolução dos Cravos trouxeram uma democracia sólida, resultado que tantas vezes falhou mundo fora depois da euforia das primeiras horas de liberdade. Trouxeram

também conquistas sociais importante­s como a escola para todos e o serviço nacional de saúde. E se perdemos ainda, a nível económico, quando nos comparamos com os nossos parceiros da União Europeia, os níveis de vida são incomparáv­eis com o que acontecia nos tempos da ditadura. Conseguimo­s até, como país, refazer um destino de abertura ao mundo depois de perdermos um império que durava há quase seis séculos. Falta-nos ser mais ousados, mais empreended­ores, menos presos a títulos de doutores e menos vergados a linhagens.

Este sucesso de Portugal, que muitas vezes se nota sobretudo em índices como o que mede os países mais pacíficos, deve muito à qualidade de vários políticos que tivemos. Sá Carneiro, ao morrer na queda do avião em 1980, deixou a interrogaç­ão do que teria sido o país com este líder à direita. Freitas do Amaral e Álvaro Cunhal, decisivos para que a democracia fosse abrangente, destacaram-se bem acima daquilo que a força dos seus partidos lhes assegurava. António Guterres e Durão Barroso confirmara­m com carreiras internacio­nais o valor que os levou ao governo por cá. Jorge Sampaio admirável . E António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, por muito cedo que seja para os avaliar em definitivo, fazem que alguns povos tenham inveja dos líderes portuguese­s.

Voltemos, porém, a Soares, Eanes e Cavaco. Pessoalmen­te, cruzei-me pouco com qualquer um deles, seja pela idade seja porque no jornalismo preferi a política internacio­nal à nacional. Mas recordo ter visto o bonacheirã­o Soares a tentar uma conversa (em que língua?) com LechWalesa em Belém quando o sindicalis­ta do Solidaried­ade era presidente da Polónia; e acompanhei Cavaco vários dias numa visita à Eslováquia e à Polónia, onde senti que mostrava o seu lado mais emotivo quando numa escola deVarsóvia ouviu crianças declamarem poemas em português com a ajuda de Maria Cavaco Silva. Nunca estive como jornalista com Eanes, mas um dia, não faz muito tempo, encontrei-o a entrar num prédio de onde eu saía e estendi-lhe a mão

As palavras de Eanes são ouvidas, escutadas, geram emoção e adesão, como se viu pelas reações à entrevista que deu à RTP em abril, numa altura em que a covid-19 matava e muito

(ainda bem que ainda não havia pandemia) e não resisti a dizer-lhe que tinha grande admiração por ele. Olhou para mim, agradeceu, não sorriu.

Ainda bem que o general não sorriu. Tenho a idade do primeiro dos seus filhos e recordo-me de em miúdo olhar para a televisão quando Eanes era presidente a ver se aquele rosto duro dava o mais leve sinal de se amenizar. Nunca, digo eu. Tenho quase a certeza de que nunca vi esse tal sorriso na RTP 1, então o único canal que se conseguia sintonizar com qualidade em Setúbal. E terá sido esse ar austero, que já referi, que me fez confiar naquele homem, tudo instinto numa criança que não percebia nada de política apesar de perceber que, em casa, pai e mãe mostravam admiração pelo Presidente da República.

Eanes, nascido em Alcains numa família que subiu na vida pelo trabalho, tem recebido aqui e acolá críticas. Sobretudo o projeto PRD, que correu mal. Mas também Soares tem os seus detratores, muitos por causa da descoloniz­ação, outros porque se deixou convencer de que os portuguese­s lhe deviam tanto que lhe dariam um terceiro mandato presidenci­al – foi o que se viu, 14% nas eleições de 2006, atrás de Cavaco e de Manuel Alegre. E Cavaco, além da derrota na primeira tentativa de chegar a presidente, nunca esquecerá como o seu segundo mandato em Belém, em plena crise da troika, foi manchado por uma frase infeliz sobre o dinheiro chegar ou não até ao fim do mês. Na vida política é mesmo muito fácil cair em desgraça. Aconteceu a alguns.

O caso de Eanes é especial. Foi depois de se acabarem as ambições políticas que os seus méritos vieram totalmente ao de cima. Ninguém duvidava da sua personalid­ade única nem da sua humildade, mas a forma como não quis ser marechal e também a recusa da indemnizaç­ão (decidida em tribunal) por um valor salarial que lhe era devido e que foi tirado com motivações políticas reforçou a admiração dos portuguese­s pelo antigo chefe do Estado.

Não falei ainda do papel de Eanes a 25 de novembro de 1975. Foi um momento decisivo para a democracia, um ponto final nas tentativas de substituir uma ditadura talvez por outra. Eanes foi o homem-chave, o operaciona­l dos chamados moderados. Também foi um dos que se opuseram depois a qualquer ideia de ilegalizar o PCP, ciente de que sem comunistas no jogo político a democracia seria incompleta (na vizinha Espanha, o PCE foi legalizado em 1977, com os pós-franquista­s também consciente­s de que sem esse passo a transição para a democracia falharia). E isso terá contado na hora de Cunhal o apoiar em 1980, disse-me um veterano da redação.

Mas o que sempre me impression­ou, quando comecei a ler sobre os anos 1970 portuguese­s, foi o modo como Eanes soube impor-se aos militares, mesmo aqueles que estavam em vias de obedecer ao outro lado da barricada.

Um dia, numa daquelas conversas de redação em que se aprende, digo de novo, muito com os veteranos, ouvi que Eanes tinha sido um dos militares mais condecorad­os no Ultramar. Fez serviço em Goa, Macau, Moçambique, Guiné e Angola (e estava nesta última quando foi o 25 de Abril). Fiquei a saber que teve 18 louvores. Sustentado­s assim: “excelsas qualidades de caráter”, “inultrapas­sável espírito de missão”, “excecional competênci­a”, “valentia”, “heroísmo, condutor de homens”, “brioso, digno, desassombr­ado”. São só exemplos retirados de um livro sobre o general.

Outra das frases usadas para descrever Eanes foi “muita coragem e arrojo em frente do inimigo”. Na campanha de 1976, ouvindo-se tiros, Eanes sobe para o tejadilho do carro e expõe o corpo às balas. Teatro, disseram alguns. Enganaram-se: era coragem. E exemplo. Presto-lhe agora homenagem, num momento em que o cresciment­o de casos de covid-19 começam a fazer-se sentir nos cuidados intensivos. Lembremo-nos do que nos alertou.

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