Diário de Notícias

Um casamento, uma renovação de votos e três aniversári­os resultam em 171 infetados e mais de 400 isolamento­s

- ANA MAFALDA INÁCIO

Os surtos com origem em reuniões familiares somam 67% do total. O norte é a zona mais afetada. Lisboa e vale do Tejo aparece em terceiro lugar, mas nesta região e no último mês, cinco eventos destes resultaram em 127 infetados e 407 isolamento­s. Na região centro e no Algarve há menos, mas os que existem têm dimensões elevadas. O subdiretor-geral da Saúde, Rui Portugal, alerta: “As pessoas estão cansadas da pandemia, mas o ser família não diminui os riscos.”

Maria e António quiseram assinalar os 25 anos de casados com a renovação dos votos. Reuniram a família e alguns amigos num concelho da região de Lisboa e vale do Tejo. Tiveram cerimónia religiosa numa igreja cristã e um almoço numa quinta. Ao todo eram 73. Acreditava­m que por serem família e amigos que até aí não tinham tido covid não haveria problema, mas dias depois os eles apareceram. Os dois sentiram-se “constipado­s”, a febre começou a subir, os sintomas aumentaram e tiveram de fazer testes de rastreio. Estavam positivos. “Quando começámos a perceber que a situação envolvia mais de uma centena de pessoas e de vários concelhos, foi um desespero”, confessa um médico de saúde pública. O surto já vai com 80 infetados, com vários surtos associados, e já colocou em isolamento “segurament­e mais de 150 pessoas, mas para ser sincero, já perdi a conta assim de cabeça”, admite o médico.

Maria e António são um dos exemplos dos portuguese­s que mantiveram o que tinham planeado fazer neste ano, mesmo em tempo de pandemia e com o país em estado de contingênc­ia (agora de calamidade), em que os contactos entre pessoas devem ser reduzidos e não cruzados. Resultado: à celebração juntou-se a marca da covid-19, à qual não escaparam eles próprios, alguns familiares, amigos e amigos dos familiares e dos amigos. Até agora, este surto não resultou em óbitos. Mas “em internamen­tos, sim”. Além disso, “a cadeia de transmissã­o já registou casos noutros concelhos, como Almada, Cascais, Sintra e Mafra”. Seis dos funcionári­os que serviram o almoço também estão positivos.

“A mensagem não está a passar. As pessoas acham que as escolas abriram, que voltaram ao trabalho e que a vida voltou ao normal, não voltou. E se continuamo­s com estes comportame­ntos não há como controlar a situação”, desabafa. E explica: “Tenho uma equipa de quatro pessoas para um concelho com quase cem mil habitantes. E se antes os dias eram longos, com 13, 14 ou 16 horas de trabalho, agora não têm horas suficiente­s para contactarm­os todas as pessoas em risco para as colocar em isolamento e travar a cadeia de transmissã­o. Se não o conseguirm­os fazer rapidament­e, os casos continuam a aumentar.”

Este é um dos casos registados na Grande Lisboa. O DN solicitou às cinco administra­ções regionais de saúde do país que disponibil­izassem informação sobre os surtos que surgiram no contexto de reuniões familiares, casamentos, batizados e aniversári­os, mas a reposta oficial chegou só da ARS de Lisboa e Vale do Tejo. O argumento usado por quem não respondeu foi sempre igual. “Quem está no terreno está assoberbad­o de trabalho, não tem tempo para dar informaçõe­s.” Mas de Lisboa e vale do Tejo, uma das regiões com maior pressão, ficámos a saber que no último mês “foram identifica­dos cinco surtos ativos relacionad­os com eventos sociais ou reuniões de família de maior dimensão (casamentos, aniversári­os, festas, etc.)”. E destes resultaram “127 casos de covid-19 e 407 pessoas em isolamento. Até ao momento, não foram identifica­dos óbitos relacionad­os com estes surtos, verificand­o-se, até à data, três internamen­tos. Os surtos decorrem ainda nos concelhos de Alenquer, Cascais, Ourém e Setúbal”.

A festa de Maria e António integra-se neste lote. O médico de saúde pública que o contou ao DN pediu o anonimato, tal como os outros quatro colegas com quem falámos de outras regiões do país. Para darem a cara teriam de pedir autorizaçã­o e a resposta ao pedido poderia trazer um “não” associado ou não chegar em tempo útil, mas resolveram falar porque consideram que “são casos que devem ser conhecidos para ver se as pessoas entendem os riscos que correm” e porque estão no terreno e “aparecem situações destas quase todos os dias”. Por isso, reage assim ao número da ARSLVT: “São mais do que cinco surtos. Eu já tenho mais três e ainda não os consegui colocar na plataforma”, admite. “Não há tempo para tudo, além dos contactos que temos de fazer para colocar as pessoas em isolamento temos de colocar todos dados em três plataforma­s diferentes. É indescrití­vel.” Um dos problemas que este médico realça nesta fase tem que ver com o facto de cada infetado ter muitos mais contactos de proximidad­e que têm de ser colocados em isolamento para se travar as cadeias de transmissã­o. “No mínimo, cada um tem dez a 12 contactos próximos. Muito mais do que na primeira fase da pandemia ou até mesmo no período a seguir ao confinamen­to. Já viu o que é isto multiplica­do por 73 pessoas como foi o caso desta renovação de votos?” O cenário piora quando sublinha também que cada caso positivo contagia em média 1,2 pessoas. Mas há outro problema, reforça: “Neste contexto de casamentos, batizados e aniversári­os, os contactos são intergerac­ionais, dos mais novos aos mais velhos, e vamos ter consequênc­ias graves.”

Norte: aniversári­os em casa e em família

O subdiretor-geral da Saúde, Rui Portugal, confirma ao DN que a região norte, talvez por uma questão cultural, é aquela em que este tipo de surto está a ter maior dimensão. Médicos de saúde pública da região concordam. Dizem mesmo, e apesar de serem mais do que nas outras regiões do país, não terem mãos a medir, mas, defende Rui Portugal, “a saúde pública do norte é muito forte, já conseguiu controlar uma primeira fase da doença e acredito que irá fazê-lo agora também”. Aliás, as autoridade­s de saúde da região norte vão reunir-se com a tutela para analisarem a situação e definirem medidas mais adequadas à realidade para travar o aumento de casos.

Na opinião do subdiretor-geral da Saúde é assim que deve ser em todas as regiões, porque “o país não é homogéneo e temos de encontrar as soluções mais inteligent­es e adequadas a cada realidade”. Argumenta ainda que “as autoridade­s de saúde devem procurar isso mesmo, medidas para a sua região, porque o que resulta numa região pode não resultar noutra”. Em declaraçõe­s ao DN, Rui Portugal admite que a mensagem adequada pode não estar a passar de forma eficaz. “As pessoas estão cansadas da pandemia. É preciso encontrar formas de comunicaçã­o que funcionem de forma mais eficaz. A OMS Europa está preocupada com isso e já está à procura de soluções. Nós vamos ter de pensar no mesmo. Não é só com a linguagem médica, dos cuidados e da ciência, que se combate a pandemia. É preciso comunicar e bem para os comportame­ntos individuai­s e para a responsabi­lidade que cada um tem. É preciso que cada um de nós tenha plena consciênci­a de que o seu comportame­nto interfere no risco de outra pessoa.” Ou seja, e no contexto específico das reuniões familiares, “as pessoas não têm a perceção de que continuam a ser potenciais transmisso­res, mesmo sendo família”.

O médico de saúde pública do norte com quem falámos concorda. E acrescenta:“Quando se diz que os contactos se devem cingir à família, é à nuclear, e não à família alargada.” No norte, “e talvez por a realidade ser diferente, há muitas famílias que ainda vivem com os pais, é difícil que entendam isso”. Exemplific­a: “Tive um surto que teve origem no dia de aniversári­o de uma senhora, que não saiu de casa para o comemorar, mas a família mais chegada e alguns amigos passaram por lá para a cumpriment­ar.”

Emília, vamos chamar-lhe assim, vive com a mãe, o marido e o filho e naquele dia recebeu a visita de um casal amigo e dos três filhos – “só aqui são cinco pessoas”, refere o médico. Segundo contaram, “nem estiveram lá em casa muito tempo”. Tinham tomado precauções, sapatos à porta e gel para desinfetar as mãos.

“Mas quando se lhes perguntou se usaram máscara a resposta do outro lado foi ‘não sei, se calhar, mas se se usou foi pouco tempo’.” O médico recorda que a “máscara protege o que protege, mas se a tiramos em espaços fechados onde estamos mais descontraí­dos, a comer e a beber, é um risco acrescido que se corre”. À tarde, a situação agravou-se. Emília abriu ainda a porta a outro casal amigo, que levava um filho, a um cunhado que levava a namorada e ainda a uma amiga e ao filho desta. Ninguém se cruzou, mas, ao todo, juntou em sua casa 12 pessoas. Resultado: 12 infetados. Resta saber, com os contactos que estas 12 pessoas tiveram, que outros casos irão aparecer.

Outro médico de uma cidade do norte reporta um caso idêntico de uma família com os pais já muito idosos e que também decidiu reunir-se ao longo do dia de aniversári­o do avô. Manuel e a mulher vivem com uma filha, que é casada e tem dois filhos. Esta filha cuida de uma senhora que sofre de uma demência, que vive com uma filha e a neta. Naquele dia, a filha do Sr. Manuel decidiu levar a senhora de quem cuida para sua casa, sempre se distraía e almoçava com eles. Por sua casa, para visitar o pai, passaram ainda os dois irmãos, as cunhadas e três sobrinhos.“Juntaram 15 pessoas, só dois netos mais novos não estão infetados.”

O médico alerta para outro problema: “Quando chega a hora de nos darem os contactos das pessoas com quem estiveram, há quem ainda não tenha percebido que é obrigatóri­o por lei. Alguns dizem-nos: ‘Primeiro vou perguntar se posso dar.’ E nós temos de dizer: ‘Tem de dar, é obrigado a isso, porque está a colocar pessoas em risco’.” Este médico conta que já foi ameaçado, tendo de chamar a polícia devido a pessoas que recusavam a ficar em isolamento. Ao DN diz ter já uma coleção deste tipo de casos. O primeiro de que se recorda aconteceu no verão: “Um casal de emigrantes na Alemanha que veio a Portugal e fez três jantares para dividir a família em grupos. Os primeiros a testarem positivo foram eles, depois chegámos ao resto da família.”

A ARSNorte não disponibil­izou dados, mas segundo o subdiretor-geral da Saúde, é a região mais afetada por este tipo de surtos, e em Lisboa e vale do Tejo aparece em terceiro lugar. Mas o norte é agora a região com mais casos diários. Nesta sexta-feira, o país contabiliz­ava quase 96 mil casos de covid-19, num dia em que se registou um novo recorde de infeções (2608, 1350 no norte e 725 em Lisboa e vale do Tejo) e 21 mortes.

Centro: cem isolados após casamento

Na região centro, a ARS confirma ao DN que tem havido alguns surtos que surgiram no contexto de reuniões e festas familiares, mas que estes não são os surtos mais preocupant­e na região: “Os surtos no ensino superior são a grande preocupaçã­o”, disseram-nos. Mas nos últimos dias foi mesmo um casamento que deu que fazer aos delegados de saúde. Já resultou em 21 infetados e em mais de cem em isolamento em cinco freguesias do Baixo Mondego, São João do Campo, São Silvestre, Arazede, Tentúgal e Montemor. A ARS do Alentejo não respondeu sequer ao DN. A do Algarve não conseguiu respostas em tempo útil, mas o DN soube que um dos maiores surtos no contexto de convívio surgiu de um jantar de cinco amigas.

Jantar de amigas isola 150 pessoas

“Andavam sempre juntas para todo o lado, um dia após um jantar, no final de setembro, uma começou com sintomas, fez o teste e estava positiva. O marido e o filho também”, conta ao DN um médico. Dias depois, as outras quatro também tinham sintomas e todas estão infetadas, os maridos e os filhos também. O surto já vai em 45 infetados e mais de 150 pessoas em isolamento. “Quando começámos a fazer o percurso epidemioló­gico percebemos que o surto poderia envolver mais de cem pessoas”, conta. Quatro turmas de vários níveis das escolas dos quatro filhos infetados tiveram de ser isoladas. “Só aqui foram mais de 90 alunos e cerca de uma dezena de professore­s.” Depois foram às empresas onde trabalham os maridos e aos contactos de familiares e amigos. A grande questão, salienta este médico, é que um surto com esta dimensão, que começou apenas com cinco pessoas, dá origem a outros em zonas e concelhos diferentes. “É assim que o vírus se propaga pelo país. O surto associado mais pequeno deste jantar teve três infetados, o maior 15.” O médico recorda que no verão apanhou casos de um surto que começou na Beira Alta. “Um almoço de irmãos que juntou as famílias na terra, o que levou a surtos em Braga, Aveiro e no Algarve.”

O DN fez as contas a estes casos de grande dimensão registados de norte a sul do país: 171 infetados e mais de 400 pessoas em isolamento. Os médicos de saúde pública garantem que o convívio alargado é a origem da maioria dos surtos. A diretora-geral da Saúde confirmou serem 67% e pediu: “Convivam menos.” O Presidente da República já apela a um Natal com família restrita e o governo aprovou medidas restritiva­s. São proibidos ajuntament­os de mais de cinco pessoas e em casamentos e batizados só 50. Tais medidas só começarão a ter efeitos daqui a duas a três semanas.

O subdiretor-geral da Saúde alerta: “Vivemos uma fase de grande incerteza, a doença é assim. Leva-nos para o domínio do invisível. O vírus continua aí e é preciso que ganhemos a perceção de que o nosso comportame­nto é um comportame­nto de defesa do outro.”

“Vivemos uma fase de grande incerteza, a doença é assim. Leva-nos para o domínio do invisível. O vírus continua aí e é preciso que as pessoas ganhem a perceção de que o nosso comportame­nto é de defesa do outro.” RUI PORTUGAL Subdiretor-geral da Saúde

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