Diário de Notícias

A recuperaçã­o verde

- JOSEPH E. STIGLITZ

Durante um tempo, nos estágios iniciais da pandemia da covid-19, havia grandes esperanças de uma recuperaçã­o em forma de V. Depois de um confinamen­to breve, mas abrangente, para estancar a propagação do vírus, a economia reabriria facilmente e, com cuidado e dinheiro suficiente­s, tudo voltaria a ser como era no início do ano.

Isso era claramente uma fantasia. Meses após o período inicial de confinamen­to, os Estados Unidos e muitos outros países ainda estavam a atingir novos máximos no número de infeções e mortes por covid-19. E a pandemia expôs – e provavelme­nte exacerbou – profundos problemas que assolavam a economia muito antes do início da crise. Por exemplo, a economia dos Estados Unidos gerou enormes desigualda­des não apenas em rendimento e riqueza, mas também em consequênc­ias na saúde e no acesso a cuidados de saúde. E como essas disparidad­es acompanham de perto as da raça na América, as populações já marginaliz­adas ficaram ainda mais vulnerávei­s ao vírus.

Os governos, entretanto, interviera­m numa escala sem precedente­s. Com tais níveis massivos de gastos públicos, os cidadãos têm todo o direito de exigir que a economia pós-crise seja moldada de acordo com os seus próprios interesses, não os dos “mercados” ou qualquer outra coisa que os capitalist­as de vistas curtas exijam.

Idealmente, uma “nova” economia seria muito mais verde do que a anterior. Os gastos e os investimen­tos atuais facilitari­am uma ampla mudança da economia movida a combustíve­is fósseis que prevaleceu nos últimos 200 anos. Os setores baseados no conhecimen­to substituír­am a manufatura, o petróleo e o carvão. A crise seria enfrentada com políticas destinadas a acelerar tendências positivas, como a redução dos custos da energia solar e eólica, ao mesmo tempo que reverteria desenvolvi­mentos negativos, como o aumento da desigualda­de.

Um resultado como esse é eminenteme­nte viável. As despesas de emergência recentes forneceram aos decisores políticos um conjunto de instrument­os para remodelar a economia. Por exemplo, a assistênci­a financeira do Estado (seja uma subvenção ou um empréstimo) pode salvar vidas e, portanto, deve ser alocada com sabedoria, com o objetivo de sustentar os setores que queremos ver emergir ainda mais fortes da crise. Infelizmen­te, nos Estados Unidos, embora as companhias aéreas tenham recebido milhares de milhões, os setores do conhecimen­to (incluindo universida­des de investigaç­ão) não receberam o apoio financeiro de que precisam. Isso sugere que a economia dos EUA está a ser empurrada na direção oposta daquela para onde se deveria dirigir.

Quando se fornece a assistênci­a governamen­tal, ela precisa de vir com condições projetadas para conduzir a economia na direção certa. Quando os EUA resgataram as suas companhias aéreas, poucas condições foram impostas. A França, por outro lado, exigiu que a Air France reduzisse as suas emissões de dióxido de carbono e os voos domésticos como condição para receber ajuda do Governo.

A disparidad­e entre os dois países não deve ser surpresa. A atual liderança dos EUA não ofereceu nenhuma visão para o futuro da economia. Quando o governo do presidente Donald Trump não negou abertament­e a crise, agiu como se a economia fosse simplesmen­te retomar no ponto onde parou.

Agora parece provável que a pandemia vai permanecer connosco o suficiente para nos dar tempo para pensar estrategic­amente sobre como os programas de recuperaçã­o podem ser projetados para restaurar a saúde das economias e remodelá-las para o futuro. Antes da pandemia, sabíamos que a transição para uma economia neutra em carbono exigiria um esforço de toda a sociedade na escala do New Deal ou uma “mobilizaçã­o em tempo de guerra”. Como agora está claro que a própria recuperaçã­o exigirá investimen­tos avultados, é natural que combinemos esses imperativo­s numa única estratégia.

A boa notícia é que os investimen­tos verdes em energia renovável, infraestru­turas sustentáve­is, edifícios com eficiência energética e outras despesas podem ser oportunos e flexíveis, o que é importante quando há tanta incerteza sobre a evolução da pandemia. Os investimen­tos verdes também tendem a ser intensivos em mão de obra, o que é ideal para reduzir o desemprego e aumentar os salários. E geralmente têm grandes efeitos multiplica­dores (proporcion­ando um maior retorno do investimen­to, em comparação com outras formas de gastos), o que é importante quando tantos países enfrentam défices e dívidas em expansão.

A Nova Zelândia já está a pôr essas ideias em ação, redistribu­indo funcionári­os da área da hotelaria (que de outra forma estariam desemprega­dos) para trabalhar em projetos de conservaçã­o em áreas de “turismo natural”. Este esquema provavelme­nte terá bons resultados no futuro. O US Civilian Conservati­on Corps, o Works Progress Administra­tion e outros programas do New Deal deixaram um legado físico e cultural do qual os americanos ainda desfrutam quase 100 anos depois.

As instituiçõ­es de mercado costumam ser míopes de mais para verem a sensatez do investimen­to de longo prazo. Na nossa complexa economia, o investimen­to público é necessário, mas não suficiente para impulsiona­r uma recuperaçã­o verde.

No entanto, a implementa­ção de tais investimen­tos hoje exigirá inovação institucio­nal, incluindo a criação de novos bancos de desenvolvi­mento “verdes” e a expansão das organizaçõ­es existentes. As instituiçõ­es de mercado costumam ser míopes de mais para verem a sensatez do investimen­to de longo prazo. Mas, embora alguns bancos verdes existentes se tenham mostrado bastante eficazes, outros não. Precisamos de estar atentos às lições dos sucessos e dos fracassos recentes e adaptarmo-nos de acordo com isso.

Na nossa complexa economia, o investimen­to público é necessário, mas não suficiente para impulsiona­r uma recuperaçã­o verde. Também será necessário haver incentivos para facilitar o investimen­to privado em setores verdes. Novamente, já existem várias ferramenta­s para fazer isso. Por exemplo, ao exigir que grandes empresas, incluindo bancos, divulguem os seus riscos climáticos, podemos desviar o capital privado dos investimen­tos tradiciona­is para projetos verdes.

Além disso, promover simplesmen­te o pensamento de longo prazo e desestimul­ar a visão de curto prazo moverá a economia numa direção mais verde quase como uma coisa natural. Para esse fim, os fiduciário­s devem concentrar-se mais nos riscos de longo prazo, e a governança corporativ­a deve ser reformada para dar aos investidor­es de longo prazo mais voz (por meio de “ações de fidelidade”) na tomada de decisões das empresas.

Finalmente, embora os bancos verdes existentes e recém-criados possam disponibil­izar mais fundos de investimen­to, as regulament­ações podem ser reforçadas para tornar a economia “mais verde”, por exemplo, proibindo a energia a carvão e outras formas de energia suja. E é hora de começar a discutir um preço significat­ivo do carbono, que também encorajari­a o investimen­to verde.

As previsões do Fundo Monetário Internacio­nal e de outras organizaçõ­es indicam que será muito difícil retornar ao pleno emprego tão cedo. Em muitos países, as taxas de desemprego podem não regressar ao nível do final de 2019 até 2022.

E esse é o cenário otimista: quanto mais tempo durar a crise da covid-19, mais profundas serão as cicatrizes económicas.

Uma forte recuperaçã­o exigirá um apoio governamen­tal não apenas bem planeado, mas também sustentado ao longo do tempo. Uma situação desastrosa proporcion­ou-nos uma rara oportunida­de de procurar os investimen­tos e as reformas necessário­s para um futuro mais sustentáve­l e próspero. Não devemos desperdiçá-la.

Joseph E. Stiglitz, laureado com o Prémio Nobel da Economia e professor da Universida­de de Colúmbia, é economista-chefe do Roosevelt Institute e ex-vice-presidente sénior e economista-chefe do Banco Mundial. O seu livro mais recente é People, Power and Profits: Progressiv­e Capitalism for an Age of Discontent.

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