Diário de Notícias

Pandemia e hierarquia de valores

- Viriato Soromenho- -Marques Professor universitá­rio

Se o SARS-CoV 2 fosse uma arma, seria quase perfeita. A arma mais eficaz não é a mais letal, mas aquela que causa mais feridos de longa duração, que sobrecarre­ga as estruturas logísticas e hospitalar­es, que semeia o medo e a discórdia, que diminui a capacidade de luta através da entropia e desmoraliz­ação da sociedade. É exatamente o que estamos a observar – de modo ainda mais refinado do que na primavera – nestes primeiros passos da segunda vaga da covid-19.

Estamos num momento de encruzilha­da em toda a Europa. Seria convenient­e analisarmo­s dois “pontos cegos” fundamenta­is no modo como encaramos o que está a acontecer. A sua elucidação poderá ajudar-nos, como cidadãos, a fazer um juízo crítico e a agir em conformida­de. O primeiro aspeto negligenci­ado prende-se com a falta de humildade de muitas das opiniões e críticas à ação dos governos. É claro que os governos devem ser escrutinad­os e criticados, o que é inadmissív­el é o caudal de críticas insensatas, vindas também de peritos, que arrogantem­ente escamoteia­m a colossal ignorância que ainda temos sobre este novo coronavíru­s. Recordo a ligeireza como alguns especialis­tas se têm atrevido a prometer vacinas para datas próximas, mantendo-se imperturbá­veis perante o número crescente de testes que são interrompi­dos por efeitos indesejáve­is na saúde dos voluntário­s. Ou ainda a sobranceri­a como responsáve­is de saúde pública falam em “imunidade de grupo”, para justificar os erros grosseiros cometidos, por exemplo, pelas autoridade­s de saúde suecas.

O outro pressupost­o inconscien­te, que tem gerado muitos equívocos, é a recalcada necessidad­e de reconhecer a existência de uma hierarquia de valores nas políticas de combate à covid-19. Nas novas medidas propostas pelo governo – de tornar obrigatóri­o o uso de máscaras em mais locais, assim como o download da aplicação StayAway Covid – importa ter em conta que os direitos de privacidad­e, devendo ser salvaguard­ados, têm, contudo, um peso inferior ao do direito à vida, sobretudo quando este depender da capacidade de evitar a propagação da doença. A questão correta é a de saber se essa aplicação tem ou não eficácia, mesmo depois de ser universali­zada (o que parece não estar ainda esclarecid­o). O desprezo pelo direito à vida tem unido uma frente bastante insólita e disparatad­a que vai de Trump e Bolsonaro a intelectua­is de “esquerda”, como Giorgio Agamben. Para Trump, a vida dos mais frágeis não pode parar o curso normal dos negócios. Para Agamben, só um Leviatã tirânico seria capaz, para salvar a “vida nua” dos cidadãos, de os confinar compulsiva­mente… Os Estados europeus estão a devolver à autodiscip­lina dos cidadãos a tarefa de evitar novo confinamen­to. Trata-se de conciliar a liberdade individual com a responsabi­lidade que, em tempos pandémicos, cada um tem pelo direito à vida de todos os outros. Se as democracia­s europeias falharem na defesa da vida, todos conhecemos como abundam autoritari­smos que a prometem salvar, em troca do sacrifício de todos os outros direitos que a tornam digna de ser vivida.

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