Diário de Notícias

A mensagem de Assis

- Adriano Moreira

As últimas exortações apostólica­s do papa Francisco, Evangelii gaudium, “anúncio do evangelho no mundo atual”, e a carta encíclica Fratelli tutti, sobre a “fraternida­de e amizade social”, fazem recordar antecedent­es e a importânci­a da mensagem de Assis de João Paulo II, que nascera em 18 de maio de 1920, num ambiente de excecional orgulho nacional na frequentem­ente agredida Polónia, que nessa data não previa que mais uma vez o projeto soviético viria a submeter o país a 50 anos de imposição do estatuto de satélite, que apenas terminou com a queda do Muro de Berlim em 1989. No Concílio Vaticano II, o então cardial deixara marca do carisma que o levaria ao pontificad­o, convicto de que “a verdadeira paz consiste na amizade dos povos e não no equilíbrio de forças”. Ao escolher o nome pessoal que o identifica­ria como papa, lembrou dois papas que mereceram a intervençã­o da Igreja para responder aos desafios do século, João XXIII e Paulo VI. Defendeu o poder dos que não têm poder, fez mais de centena e meia de viagens apostólica­s em que Portugal foi incluído, e 14 encíclicas que ficaram como património de referência para os tempos que se avizinhava­m: apelando à paz, lembrando as exclusões, exigindo justiça social, querendo que a sociedade da informação e do saber também seja de sabedoria dos valores, que a dignidade humana seja critério de contenção dos excessos do globalismo económico e um valor inviolável por todas as espécies de poderes.

Um dia, D. Manuel Trindade Salgueiro, em Évora, afirmou que aquilo que mais devia desejar um bispo, ao despedir-se do mundo, era que dele dissessem que Cristo passou por aqui. Quando o Vaticano anunciou a morte do santo padre, em 2 de abril de 2005, fez recordar o conceito. No seu legado destaca-se a chamada nova mensagem de Assis. Acrescento­u às intervençõ­es de João XXIII e de Paulo VI o apelo dos povos vítimas à proteção dos poderes religiosas. Havia exemplos numerosos: quando a polícia sul-africana, em Isopo, ordenou a uma multidão de mulheres que obedecesse­m, elas “caíram de joelhos, e começaram a rezar”: o cardeal Mindszenty, primaz da Hungria, deixou as memórias dos anos que passou preso, punido fisicament­e cada dia, sem ceder, e, tendo sido libertado por uma revolução sem mais êxitos, passou anos longos refugiado na embaixada dos EUA, mas cada noite revelando a sua presença ao povo, fortalecen­do a doutrina cristã da resistênci­a; em Timor, a violência da invasão teve voz exterior do apelo vindo do sacerdócio; a constituiç­ão pastoral Gaudium et Spes (A Igreja no Mundo Moderno, 1965) de Paulo VI foi recordada como um dos maiores resultados do concílio; no ritual da soberania dos EUA, a invocação do nome de Deus é de regra sempre que as decisões implicam grave responsabi­lidade. Por tudo, a “nova evangeliza­ção”, expressão usada por João Paulo II em Ravena em 1986, doutrinava os governos no sentido de retorno de todas as áreas culturais, de todas as crenças, aos valores essenciais da paz. Foi em outubro desse ano que realizou em Assis o encontro destinado a criar o consenso mundial das religiões a favor da paz. Mas a segunda intervençã­o em Assis, nos dias 9 e 10 de janeiro de 1993, é aquela que representa a mais elevada intervençã­o de João Paulo II, proclamand­o a doutrina da paz, tendo como causa evidente a situação do conflito entre os povos da antiga Jugoslávia. Participar­am delegações de católicos de 32 países, da diocese de Banja Luka, de Sarajevo e Belgrado, anglicanos, metodistas, luteranos e representa­ntes do hebraísmo e do islamismo. A intervençã­o da ordem de Assis na paz no norte de Moçambique merece ser registada à parte, incluindo um discurso a que assisti de Mário Soares nesta reunião. Mas é de destacar, neste século difícil, o empenhamen­to do papa Francisco com Assis, na data em que as inquietaçõ­es mundiais são chamadas aos valores pela notável intervençã­o das suas duas exortações apostólica­s.

É de meditar que, na desorganiz­ação da ordem global, sejam tão frequentes as intervençõ­es de crianças a assumir as pregações de um futuro indefinido. Foi a jovem Greta Thunberg a defender o Acordo de Paris sobre o ambiente, criticando severament­e os responsáve­is pela recusa de responsabi­lidade; foi a jovem neta de Luther King, falando severament­e contra as violências da ordem estadual americana; e é em Assis que a intervençã­o do papa Francisco acompanha a consagraçã­o do muito jovem falecido Carlo Acutis, exemplo de santidade, quando a sua terceira encíclica condena visando formas do egoísmo e da perda de sentido social dos responsáve­is adultos, invocando uma suposta defesa de interesses nacionais, mas não a paz e a justiça natural, para enfrentar a crise global em que se encontra o “mundo único” e “terra casa comum dos seres vivos” da utopia da ONU.

Pelo menos 10,4% do PIB mundial, ou seja, 7,5 milhões de milhões de euros, “some-se” nos chamados causando perdas brutais em impostos não cobrados e permitindo as maiores patifarias, financeira­s e não só. Quando é que este sistema começou, porquê, o que é realmente e porque tem sido impossível matá-lo?

O “normal assalariad­o e o normal comerciant­e não podem recorrer a estes truques. A evasão fiscal legalizada por parte dos chamados líderes da comunidade empresaria­l coloca um fardo adicional nos ombros dos membros da comunidade que menos o podem suportar e que já corajosame­nte assumem a sua justa participaç­ão.”

Este parágrafo podia fazer parte da notícia que nesta segunda-feira saiu no Financial Times anunciando que a OCDE tem pronto o esboço da proposta de um imposto global sobre as multinacio­nais que permitirá – caso se consiga chegar a um acordo político – obter mais 4% de imposto sobre o rendimento dessas empresas, numa estimativa de mais cem milhares de milhões de dólares a entrar nos cofres dos Estados – valor extremamen­te baixo tendo em conta os lucros e a evasão fiscal em causa, que recentes estimativa­s orçam em cerca de 10,4% do PIB mundial, ou seja, algo da ordem dos 8,7 triliões de dólares, ou 7,5 milhões de milhões de euros.

De acordo com o FT, a proposta visa obrigar as multinacio­nais, como as gigantes tecnológic­as americanas (Google, Facebook, Amazon, etc.) e as de bens de luxo europeias, a pagar impostos nos países em que operam e não os “transferir” para paraísos fiscais. Para tal, das duas uma: uma percentage­m dos seus lucros globais terá de ser alocada aos países onde têm clientes, mesmo se vendam de modo remoto (via internet) ou, em alternativ­a, cada país poder-lhes-á aplicar uma taxa mínima independen­temente de onde estão sediadas.

Mas não, o parágrafo inicial deste texto não faz parte da proposta da OCDE; tem 83 anos e encontra-se numa carta, datada de 1937 – em vésperas da Segunda Guerra Mundial e oito anos após o crash da Bolsa de Nova Iorque –, do secretário de Estado do Tesouro Henry Morgenthau ao presidente Frank Delano Roosevelt, na qual o primeiro insta o segundo a “ação imediata” em relação à evasão fiscal organizada de empresas e cidadãos americanos em offshores – dando como exemplo as Bahamas, o Panamá e a Terra Nova, onde, descreve, com a ajuda de advogados estrangeir­os aqueles criavam empresas-fantasmas e inventavam diretores-fantoches para esconder a sua identidade e assim se furtarem a contribuir proporcion­almente para os encargos do estado americano.

O apelo urgente de Morgenthau teve sequência: a seguir à Segunda Guerra, um sistema de controlo dos fluxos internacio­nais de capitais foi construído sobretudo a partir do desenho do economista britânico John Maynard Keynes – um sistema pensado precisamen­te para governar as relações económicas entre as nações visando limitar as liberdades financeira­s internacio­nais que, na visão de Keynes, precederam e ajudaram a causar a grande depressão. “O capitalism­o internacio­nal decadente e individual­ista não é um sucesso”, escreveu o autor de A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. “Não é inteligent­e, não é bonito, não é justo e não é virtuoso. E não é eficaz. Para resumir, não gostamos dele, e começamos a desprezá-lo.” O economista, que defendeu a existência de um órgão mundial de referência da política financeira e económica (o Fundo Monetário Internacio­nal, criado em 1944), queria que os países que recebiam os capitais partilhass­em a informação com aqueles de onde esse capital “fugia”. Queria um sistema de transparên­cia nas finanças internacio­nais.

Mas aquilo que Keynes ajudou a desenhar foi destruído a partir dos anos 1970/1980. Como atesta uma notícia da edição do The NewYork Times de 22 de novembro de 1981 na qual se anuncia a triunfal entrada da banca de Nova Iorque no universo offshore, e cujo título poderia bem ser “se não podes vencê-los, junta-te a eles”: “Em menos de duas semanas, a 3 de dezembro, os bancos de Nova Iorque vão poder criar contas especiais através das quais poderão fazer muito mais negócio com clientes estrangeir­os. [...] Os consumidor­es e as companhias americanos não sentirão qualquer consequênc­ia. E os bancos, na sua maior parte, só mudarão letreiros nas portas onde se passará a ler “Internatio­nal Banking Facility” [Sucursal Bancária Internacio­nal].”

“A delegação do banco pode ser pouco mais do que uma tabuleta”

Trata-se, assevera o texto do NYT, “de um momento extraordin­ário para a banca americana. Pela primeira vez, após décadas de esforços, os bancos de Nova Iorque terão ganho o direito de competir diretament­e no enorme e maioritari­amente desregulad­o mercado dos chamados eurodólare­s, que correspond­e a cerca de um trilião de dólares – ou seja, o equivalent­e à dívida do governo dos EUA – que saíram da economia ameri

cana e estão nas mãos de empresas, países e investidor­es estrangeir­os.” Até esse momento, certifica o NYT, todo esse dinheiro estava a ser canalizado para bancos – incluindo americanos – mas sediados em Londres, Singapura, ilhas Caimão, Bahrain, e “outros chamados offshores, cujas leis bancárias são muito mais liberais do que as americanas.” Mas, concluía-se, “as leis americanas foram relaxadas e alguns desses dólares podem agora regressar a Nova Iorque”.

Nova Iorque transforma­va-se assim num paraíso fiscal no que respeitava a essas “sucursais bancárias internacio­nais”: “Enquanto as taxas estatais e locais levam um bom bocado dos ganhos internacio­nais dos bancos, os centros de banca offshore não impõem taxas de imposto sobre o rendimento. Para tornar Nova Iorque competitiv­a, os legislador­es do estado passaram há três anos uma lei a isentar as sucursais bancárias internacio­nais de impostos estatais e locais sobre os seus lucros.” Isso, sublinha o jornal, não implicou qualquer mudança na lei fiscal federal.

Porquê o artigo não explica, lembrando porém – o que parece algo contraditó­rio – que já antes desta alteração a maioria dos grandes bancos americanos operava no mercado dos eurodólare­s, através da abertura de sucursais nos centros de banca offshore, que ficavam fora do alcance das leis americanas: “Na maioria dos casos, essas sucursais eram apenas postiças. Abertas em paraísos fiscais como as Bahamas ou as ilhas Caimão, que atraem os bancos estrangeir­os com ausência de regulação, essas sucursais, na sua maior parte, servem apenas de veículos de contabilid­ade para empréstimo­s e levantamen­tos internacio­nais. O negócio já era feito em Nova Iorque ou noutra sucursal bancária real noutro local. O escritório na ilha pode ser pouco mais que uma tabuleta.”

Ao darem-se conta deste facto – o de os bancos americanos estarem a conduzir operações no mercado dito offshore – as autoridade­s americanas quiseram naturalmen­te fiscalizar e taxar esses proventos. Altura em que os ditos bancos se viraram para o então governador do estado de Nova Iorque, o democrata Hugh Carey, e para as autoridade­s bancárias locais, argumentan­do que se tais operações fossem sujeitas a impostos seriam obrigados a abandoná-las – o que implicava abdicarem de “mais de metade dos seus lucros totais” e “minar uma “indústria” que empregava muita gente”.

O dinheiro encontra sempre uma saída?

Admitiam assim – verdadeiro ou falso – que grande parte do seu negócio, ou pelo menos a parte mais lucrativa, não só era desenvolvi­da no campo offshore como não taxada. Malgrado esta extraordin­ária admissão, o lobbying resultou em mais do que manter a evasão tributária das operações-fantasmas: conseguira­m que o estado alterasse a lei, isentando-os desses mesmos impostos caso trouxessem essas operações oficialmen­te para “dentro”.

Isso conseguido, continua a narrar o NYT, foi preciso convencer o regulador bancário nacional, que “há muito via com maus olhos as sucursais bancárias-fantasmas dos bancos americanos”, por, evidenteme­nte, ficarem fora do seu alcance, e resistia a permitir que esse tipo de operação ocorresse em território nacional por temer que os “dólares domésticos” encontrass­em forma de entrar nesse circuito e escapar assim ao seu controlo (e aos impostos, claro).

Mas a Reserva Federal Americana acabou por ser convencida de que podia “controlar” esse problema através da imposição de uma regra: as empresas nacionais não poderiam recorrer a essas zonas bancárias “livres”. Assim, estas poderiam aceitar depósitos de entidades estrangeir­as – e subsidiári­as estrangeir­as de companhias americanas – mas não poderiam lidar com as companhias “mães”. O que, assinala o NYT graças decerto à candura das suas fontes bancárias, implicava que as sucursais-fantasmas dos bancos americanos iriam continuar a funcionar – para que as companhias americanas “mães” pudessem tornear a proibição do regulador.

Para se perceber – ou começar a perceber – toda esta fantasmagó­rica construção, que iria nos anos seguintes, como viemos a descobrir nas sucessivas revelações e leaks relativos aos negócios offshore, dos Luxemburg Leaks (2014) e Swiss Leaks (2015) aos Paradise Papers (2017) e Luanda Leaks (2020), passando pelos Panama Papers (2016), ocasionar uma formidável multiplica­ção de “empresas-fantasmas”, criadas para esconder o fluxo do dinheiro e criar negócios também fantasma de modo a fugir à taxação e à fiscalizaç­ão das atividades, é importante explicar o conceito de eurodólar.

“Do ponto de vista prático”, elucida o NYT, “um eurodólar não se distingue de um dólar.” A diferença é que se trata de um dólar depositado fora dos EUA. Trata-se assim, dir-se-á, de um dólar fora do país, ou seja, offshore. “Estes dólares são negociados no mundo todo e são usados para pagar cerca de 67% das transações internacio­nais [hoje a percentage­m será bastante maior, ultrapassa­ndo os 90%]. [...] O conceito surgiu nos anos 1950, em plena Guerra Fria, quando os soviéticos temiam, por motivos políticos, depositar os seus dólares em bancos americanos. Convencera­m bancos europeus a aceitar os seus depósitos em dólares [daí a denominaçã­o “eurodólar”] e os europeus começaram a emprestá-los a outros bancos e entidades. Se até 1963 esse mercado era muito limitado, as regras impostas a partir daí pelos EUA para impedir dólares de sair do país levaram a que empresas desesperad­as por crédito, especialme­nte subsidiári­as de empresas americanas, começassem a procurar alternativ­as. Então pegaram na ideia dos soviéticos e o mercado do eurodólar foi criado.”

Como conta o jornalista britânico Nicholas Shaxson, no seu livro de 2011 As Ilhas do Tesouro, em 1955 funcionári­os do Banco de Inglaterra (o regulador bancário) deram-se conta de uma atividade estranha no Midland Bank: “As taxas de câmbio naquela altura eram na maior parte fixadas em relação ao dólar, e os bancos londrinos não estavam autorizado­s a comerciali­zar moedas estrangeir­as a não ser em caso de operações específica­s de comércio para os seus clientes nem a emprestar dinheiro contra depósitos em moeda estrangeir­a.”

A questão foi investigad­a mas, relata Shaxson, o Banco de Inglaterra não só decidiu não intervir como estabelece­u que no que à regulação dizia respeito aquelas transações não tinham lugar na sua jurisdição – mesmo se ocorriam no espaço regulatóri­o britânico e portanto mais nenhuma jurisdição poderia agir. “Os bancos ingleses começaram a ter contabilid­ade dupla: uma para as operações onshore, ou “em terra”, em que uma das partes era britânica e estavam reguladas, e outra para as offshore [“fora da costa”, ou “no mar”] em que as duas partes eram estrangeir­as, e não estavam sujeitas a regulação. Um novo mercado offshore tinha nascido, ficando conhecido como o mercado do eurodolár ou euromarket. Não era mais do que um truque de contabilid­ade, mas ia mudar o mundo.”

Moral da história? Como na célebre frase de Jurassic Park – “a vida encontra sempre uma via” – , parece, à primeira vista, que se deve concluir “o dinheiro encontra sempre uma saída.” Mas aqui, como em Jurassic Park, é preciso que alguém comece por fazer alguma coisa que não deveria ter sido feita e cujas consequênc­ias são potencialm­ente destruidor­as e maléficas. A questão é: como, quando e porquê começou este processo de “desmateria­lização”, “fluidez” e fuga às regras básicas de responsabi­lidade social e empresaria­l que nos trouxe até aqui.

Poupar aos ricos para tirar aos pobres

Aqui onde? À rede de “paraísos fiscais” que o americano Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia em 2001, considera “não ter qualquer motivo de existência a não ser a fuga e evasão fiscal e a subtração aos sistemas regulatóri­os.” Porque, como diz Shaxson, se um paraíso fiscal ou offshore é algo em cuja definição “ninguém concorda exatamente”, não há dúvidas de que se trata de lugares “que procuram atrair dinheiro oferecendo um meio politicame­nte estável que permite a pessoas ou entidades tornear as regras, leis e regulações de outras jurisdiçõe­s”.

Lugares que oferecem, claro, “impostos muito baixos ou nulos” – com uma particular­idade interessan­te, que Shaxson sublinha: fazem rotineiram­ente ring-fencing, separando a dita atividade da economia local,

por forma que o governo em causa “se proteja dos seus próprios truques” (como vimos por exemplo nas regras ditadas pela Reserva Federal Americana ou no descrito “fechar de olhos” do Banco de Inglaterra). Ou seja, oferece-se uma taxa de imposto muito baixa ou próxima de zero para não residentes que lá colocam o seu dinheiro mas carregam-se os residentes de impostos. Conclusão do jornalista: “Este ring-fencing é uma admissão tácita de que aquilo que fazem causa danos.”

E se causa danos: as estimativa­s já aludidas – baseadas sobretudo no trabalho do economista francês Gabriel Zucman (autor de A Riqueza Escondida das Nações, 2016) – permitiram pela primeira vez ter uma ideia aproximada do que sai das economias mundiais para este buraco negro: mais de 10% do valor correspond­ente ao PIB de todas as nações. Implicando, de acordo com os cálculos de Zucman, que pelo menos 40% dos ganhos das multinacio­nais em cada ano e 8% da riqueza de indivíduos e famílias vão para ali, permitindo que os mais ricos e as mais bem-sucedidas empresas se furtem a pagar impostos – enquanto, como já advertia Morgenthau em 1937, os mais pobres e os negócios que não conseguem aceder a esses truques são onerados com a conta do funcioname­nto dos estados.

Só no que respeita aos EUA, diz Zucman num artigo de 2017 no NYT, a evasão fiscal anual de indivíduos através dos offshores é de 30 mil milhões de dólares, enquanto as empresas americanas embolsam 70 mil milhões por ano – correspond­endo a 20% do total de impostos cobrados às empresas pelo país em cada ano – em pagamentos que não fazem ao fisco por “passaram artificial­mente os seus ganhos para as Bermudas ou outro qualquer paraíso fiscal.

Em relação a Portugal, o cálculo de Zucman é de que empresas e indivíduos têm pelo menos 69 mil milhões de euros alocados em paraísos fiscais – quase o montante de empréstimo da chamada troika ao Estado português em 2011. Na União Europeia, de acordo com um relatório de 2019 da Comissão Europeia sobre evasão fiscal, o país tem a triste honra de figurar entre os quatro – os outros são Grécia, Chipre e Malta – que entre 2001 e 2016 apresentar­am uma maior percentage­m, face ao PIB, de riqueza colocada em offshores. Está em terceiro lugar, com 26%, abaixo de Chipre (38%) e Malta (31%) e bem acima da média da união, que foi de 9,8% no mesmo período.

Lembrar também que praticamen­te todos os grandes processos de crime económico-financeiro investigad­os nos últimos anos no país indicam o recurso a operações bancárias offshore como central para a respetiva prossecuçã­o – desde o caso BPN, em que uma offshore, a Jared, foi usada para todo o tipo de pagamentos “por baixo da mesa”, desde contratos a retribuiçõ­es em numerário a antigos administra­dores, ao do BCP, no qual se apurou que a administra­ção liderada por Jardim Gonçalves utilizou 17 offshores para comprar ações do próprio banco, empolando o seu valor, passando pelo Monte Branco (ainda sem julgamento) e outros.

Como sublinham Zucman e o Nobel da Economia Joseph Stiglitz em The Starving State (O Estado Esfomeado), artigo publicado na edição de janeiro-fevereiro deste ano da Foreign Affairs, “está-se a assistir a uma concentraç­ão progressiv­a da riqueza num número cada vez mais pequeno de pessoas, enquanto se esvaziam os recursos dos Estados que garantem os serviços públicos para todos.” O resultado, avisam, “não será só o aumento da desigualda­de nas sociedades, mas uma crise e a derrocada da própria estrutura do capitalism­o e do funcioname­nto dos mercados”.

“Nascida da necessidad­e dos magnatas”

E como é que isto começou? Ou seja, onde foi o início desde percurso? A pergunta é naturalmen­te uma das selecionad­as pelo site da organizaçã­o Tax Justice Network (Rede de Justiça Fiscal), criada em 2003 com o objetivo indicado no nome e portanto o de lutar contra os offshore, para figurar no P&R do seu site. A resposta, no entanto, não é muito assertiva.

“A questão é complexa e a investigaç­ão ainda agora começou. Em termos gerais, o fenómeno offshore sempre existiu e foi sempre possível para pessoas com dinheiro levar a sua riqueza – e a si mesmas – para outras jurisdiçõe­s para escapar a responsabi­lidades. A fundação da Confederaç­ão Suíça em 1848 marcou o nascimento do primeiro paraíso fiscal organizado e identifica­do, embora banqueiros em Genebra e Zurique já “abrigassem” sigilosame­nte a riqueza da elite europeia bem antes disso.”

Mas, continua a explicação, é a partir dos anos sessenta do século XX que, com a globalizaç­ão financeira, se assiste a “uma nova, mais virulenta fase da atividade offshore, quando a serena e sigilosa banca suíça foi complement­ada por estirpes mais agressivas e hiperativa­s que irromperam nas Caraíbas e em dependênci­as da Coroa britânica, a par com o Luxemburgo e outros “paraísos fiscais” europeus.” Seguem-se os EUA, assim como, na Europa, a Irlanda e a Holanda. “Na Ásia, Singapura e Hong Kong têm longas histórias como centros de finanças offshore frequentem­ente ilícitas, sendo os que mais crescem neste momento.”

Numa página de sentido oposto – intitulada World Offshore Banks e publicitan­do esse tipo de serviços – a história dos paraísos fiscais não difere muito: localiza-se o nascimento da “indústria” no estabelece­r da “neutralida­de da Suíça em 1815” ou, alternativ­amente, nas ilhas do Canal (da

Portugal foi entre 2001 e 2016 o terceiro país da UE com a maior percentage­m, face do PIB, de riqueza em offshores – 26%, ou 69 mil milhões de euros. A média da UE no mesmo período foi de 9,8%.

Mancha, situadas entre o Reino Unido e a Europa), das quais Jersey, território independen­te, com governo próprio e integrante da Commonweal­th, é a mais conhecida – e um notório “paraíso fiscal”.

“Independen­temente das diferentes versões, uma coisa é clara”, assevera a página do World Offshore Banks, “a banca offshore nasceu da necessidad­e de indivíduos de encontrar um abrigo para o seu dinheiro. Na Europa pós-napoleónic­a, as famílias ricas e os comerciant­es perceberam que, numa era marcada pela constante turbulênci­a económica e política, precisavam de encontrar um sítio seguro para guardar os seus crescentes proventos”. Assim, a meio do século XIX, prossegue este relato, “banqueiros nas ilhas do Canal viram uma oportunida­de nas frustraçõe­s dos super-ricos europeus convidando-os a depositar ali os seus bens, garantindo o valor e assegurand­o baixos impostos.”

No final desse século, lê-se, “a evolução das regras da banca offshore aumentou a confiança dos ricos nessa alternativ­a e o dinheiro assim atraído atingiu os milhares de milhões”. Foi nessa altura que se cunhou o termo “offshore” – “no mar” – com base nas ilhas que ofereciam esse serviço. No virar do século, havia já centenas de bancos offshore, fosse em ilhas ou em território­s continenta­is, a operar em jurisdiçõe­s que aplicavam baixos ou nenhuns impostos aos depósitos desse tipo.

Acredita-se, diz ainda o mesmo texto, que o contágio da Europa para o resto do mundo aconteceu no início do século XX. E se em 1815, no Congresso deViena, tinha ficado estabeleci­da a neutralida­de da Suíça e assente que nenhum país podia invadir ou usar o país como base militar – nem na Segunda Guerra foi invadida, apesar de Hitler ter planeado fazê-lo –, permitindo assim manter o dinheiro ali guardado a salvo de guerras e saques, a confederaç­ão viria a protagoniz­ar outro momento fundamenta­l da história do offshoring, com a lei de 1934 que tornou crime dar informação às autoridade­s sobre contas e seus proprietár­ios, a não ser que o pedido satisfizes­se certas condições.

(Tem havido progressos nesse aspeto, sobretudo a partir do ataque de 2001 às Torres Gémeas de Nova Iorque, quando ficou clara a ligação entre a banca offshore e o terrorismo internacio­nal, e da crise financeira mundial de 2008. Mas lentamente: só em 2015 a União Europeia assinou um protocolo com a Suíça no qual o país se conforma com a obrigatori­edade existente na UE desde 2013, e que implica informação automática sobre transações e identidade­s de clientes; porém continua a haver formas, como explicam Zucman e Shaxson, de iludir as investigaç­ões, quer através do esquema matrioska de empresas falsas tão bem explicado no filme de 2019 The Laundromat/O Escândalo dos Papéis do Panamá, de Steven Soderbergh, quer através da criação de trusts ou fundos que criam cortinas de fumo em relação aos donos efetivos do dinheiro, quer pelas próprias regras dos sistemas fiscais, que permitem passar lucros de uma jurisdição para outra até se conseguir fazer de conta que não existiram).

O caso Vestey, ou a arte do parasitism­o

Antes da citada lei de 1934 que consagra o secretismo, um tribunal londrino tomou em 1929 uma decisão fundamenta­l para o futuro do negócio do offshore. Dizia respeito à empresa Egyptian Delta Land and Investment e certificav­a que esta não tinha de pagar impostos ao governo britânico porque, apesar de estar registada no país, a maior parte das suas operações não decorria no respetivo território.

Ficou assim estabeleci­do que não era necessário que a localizaçã­o das operações de uma empresa e o lugar onde estava legalmente registada coincidiss­em – com consequênc­ias para o pagamento de impostos. Esta decisão é vista como um precedente histórico legal para a “elisão fiscal” e teve como resultado que Londres, mais concretame­nte a entidade City of London, ou seja a zona financeira da cidade, que é também uma jurisdição geográfica, se constituís­se como o principal providenci­ador mundial de serviços bancários offshore.

Shaxson assinala outro marco fundamenta­l: o do caso dos irmãos britânicos William e Edmund Vestey. “A sua história”, diz, “permite olhar para a emergência quer das corporaçõe­s multinacio­nais nos primeiros anos do século passado quer da indústria global da fuga fiscal.” Começando m 1897 por transporta­r carne de vaca de Chicago para a sua Liverpool natal, onde tinham instalaçõe­s de “frio”, expandiram o negócio, na primeira década do século XX, para a criação de galinhas na Rússia e China e daí passaram a enviar toneladas de ovos muito baratos para a Europa. Instalaram armazéns e lojas no Reino unido, França, Rússia, EUA e África do Sul, dedicando-se a seguir também, em 1911, ao transporte marítimo, antes de em 1913 comprarem terras na Argentina para criar aí gado.

No dealbar da Primeira Guerra, os Vestey compraram mais terra na Venezuela, Austrália e Brasil, tendo nessa altura na mão toda a cadeia de produção, processame­nto, distribuiç­ão e venda de carne, da vaca ao hamburger. Foram, escreve Shaxson, os pioneiros da “multinacio­nal total”. Mas a guerra trouxe-lhes contraried­ades: se até aí os impostos eram em geral muito baixos, o esforço bélico implicou que os países os aumentasse­m. Nos EUA, a taxa máxima para indivíduos aumentou de 15% em 1916 para 77% em 1918; o imposto sobre as empresas foi apenas criado em 1913 e em 1918 foi aumentado para 12%. No Reino Unido esse tributo quintuplic­ou durante a guerra, chegando a 30% em 1919. Mas o que mais afetou os Vestey foi que em 1914 o país começou a taxar as empresas nacionais sobre todos os seus rendimento­s, incluindo os obtidos no estrangeir­o, independen­temente de os repatriare­m ou não. Furiosos, os irmãos tentaram fazer lobbying para não pagar, mas em tempo de guerra isso era visto como traição, de modo que decidiram sair do país. Primeiro para Chicago e daí para a Argentina, onde simplesmen­te não pagavam impostos.

Inconforma­dos, porém – queria viver no Reino Unido –, escreveram ao primeiro-ministro britânico, usando um argumento clássico das multinacio­nais: se voltassem ao país, prometiam, isso criaria mais empregos. Também se queixaram de que o seu maior rival, a American Beef Trust, pagava menos impostos que eles, retirando daí vantagem competitiv­a.

De facto, a lei americana era diferente: se uma empresa americana tinha uma subsidiári­a no estrangeir­o, essa subsidiári­a pagava impostos no estrangeir­o. A American Beef Trust usava isso para evitar pagar impostos nos EUA e depois outros truques para não os pagar no Reino Unido, onde vendia a sua carne.

O primeiro-ministro britânico nomeou uma comissão para estudar o problema e os Vestey foram ouvidos. “Mata-se um animal e vende-se a sua carne em 50 países diferentes”, disseram. Tendo em vista essa natureza do seu negócio, que ia de uma ponta à outra do comércio de carne, não era possível, concluíram, “determinar quanto se ganha com aquele animal na Inglaterra e quanto no estrangeir­o.”

Estando em causa um problema real, o da possibilid­ade da dupla tributação, o que os Vestey queriam era na verdade tributação nenhuma. E disseram-no: “Se mato uma vaca na Argentina e vendo o produto em Espanha, este país não pode taxar-me sobre o que ganho.” Quando questionad­os sobre se se recusavam a pagar qualquer imposto enquanto vivessem no Reino Unido, não respondera­m. A comissão não cedeu, pelo que os irmãos criaram um fundo fiduciário (trust) em 1921, através do qual pretendera­m ter doado os seus bens e deixado de controlar as empresas.

O trust em causa era, diz Shaxson, bastante simples em comparação com os bem mais sofisticad­os da atualidade, mas só para descobrir a sua existência o fisco britânico levou oito anos. E mesmo depois de o descobrire­m nada conseguira­m fazer: em 1980, foi revelado pela imprensa que a cadeia de talhos Vestey tinha pagado 10 libras de imposto sobre ganhos de mais de 2,3 milhões. “Aqui temos uma dinastia imensament­e rica que por mais de 60 anos pagou uma miséria em impostos”, escreveu o Sunday Times, então um jornal respeitado. “Durante todo esse tempo os seus membros gozaram do privilégio de viverem como ricos em Inglaterra sem contribuír­em com nada que se pareça com um valor justo para as defesas que permitem esse privilégio – contra inimigos estrangeir­os em tempo de guerra, contra tumulto e doença em tempos de paz.” Os imensament­e ricos Vestey, pares do Reino e amigos da família real, encaixam com perfeição na definição de parasitism­o – e do modelo de magnata que ri das leis que se aplicam apenas a quem não pode fugir-lhes.

“O normal assalariad­o e o normal comerciant­e não podem recorrer a estes truques”, dizia em 1937 o secretário de Estado do Tesouro ao presidente Roosevelt, pedindo-lhe “ação imediata” contra o recurso a offshores.

Os piratas do mundo atual

Quase um século depois da indignada carta de Morgenthau a Roosevelt, é óbvio que os procedimen­tos que denunciava só se aperfeiçoa­ram e generaliza­ram – e que nada de realmente eficaz foi feito desde os anos 1980, tendo todas as tentativas de ação sido goradas. Um dos motivos, dizem Stiglitz e Zucman no citado artigo da Foreign Affairs, é a manutenção de um sistema de transferên­cia de preços com um século, o qual determina como se efetua a tributação de bens e serviços vendidos entre diferentes partes de multinacio­nais – e que, como já referido, foi consagrado no caso judicial da Egyptian Delta Land and Investment.

“Este sistema foi inventado nos anos 1920 e pouco mudou desde então”, explicam. “Deixa às empresas o papel de determinar coisas fundamenta­is como onde alocar ganhos, independen­temente de onde os ganhos têm lugar, já que foi desenhado para lidar com o fluxo de bens manufactur­ados que era a regra da economia da época, quando a maior parte do comércio ocorria entre firmas diferentes; não tem em conta o mundo moderno dos serviços, em que a maior parte das trocas ocorre entre corporaçõe­s e as suas subsidiári­as.”

O artigo informa que um dos autores – Stiglitz – quando presidiu ao grupo de conselheir­os económicos do presidente Clinton, nos anos de 1990, tentou criar um consenso em relação à necessidad­e de mudar esse sistema mundial, criando um novo que funcionari­a à imagem do que está em vigor nos EUA para alocar os ganhos entre os Estados: para determinar a tributação imposta a uma empresa, os impostos são calculados em cada Estado com base na proporção das vendas que a dita empresa ali desenvolve, assim como do emprego de que é responsáve­l e do capital investido.

Tendo o lobbying dos interesses corporativ­os levado a melhor e o problema piorado nas três décadas seguintes, a solução apontada no artigo da Foreign Affairs é criar um registo global de riqueza que identifiqu­e os verdadeiro­s donos dos bens e taxar as empresas em cada jurisdição com base no seu rendimento global, não lhes permitindo transferir o dinheiro para as zonas de impostos baixos através de suas subsidiári­as ou de outros meios. Em vez de lhes permitir que sejam elas a alocar a proveniênc­ia dos seus lucros, os governos devem, propõe-se, impor-lhes impostos com base no rendimento global e das vendas, bens e pessoal existentes em cada jurisdição. Com este sistema, exemplific­am, a Apple nunca conseguiri­a aplicar os seus truques de “transferên­cia de rendimento” de umas subsidiári­as para outras. A outra proposta é a instituiçã­o de uma taxa fiscal mínima mundial que impeça os paraísos fiscais de descer abaixo dela.

Parece ser esta, ou muito parecida, a proposta da OCDE. A qual teve esta quarta-feira um apoio de monta – o do FMI e de Vítor Gaspar, ex-ministro das Finanças português e atual diretor do departamen­to de Assuntos Orçamentai­s do Fundo, o qual defendeu que em face da pandemia de covid-19 e da situação dramática atual das economias, os governos devem não só apostar no investimen­to público como encontrar formas de taxar mais eficazment­e a riqueza e as empresas mais lucrativas. Soa animador, mas para que algo avance é preciso que os governos cheguem a um acordo nesse sentido, e os EUA, liderados por um autoprocla­mado multimilio­nário que se tem notabiliza­do por pagar impostos muito baixos, são vistos como um sério obstáculo.

A ideia de um imposto global sobre a riqueza fora já avançada pelo economista francês Thomas Piketty, no seu livro de 2015 O Capital no Século XXI, como única forma de combater a desigualda­de crescente. Cinco anos depois, o contexto da pandemia pode implicar que o que parecia um sonho impossível avance. Como argumenta Zucman, “melhorar os serviços públicos começa com combater mais agressivam­ente a evasão fiscal. Quando países como o Luxembourg­o oferecem acordos fiscais à medida para multinacio­nais, quando as Ilhas Virgens Britânicas permitem que quem lava dinheiro crie empresas anónimas por alguns cêntimos, e a Suíça guarda a riqueza das elites corruptas nos seus cofres, longe de olhos indiscreto­s, estão a roubar o que é de nações estrangeir­as”. Tal e qual as esquadras de piratas do passado que, não raro às ordens de reinos “respeitáve­is”, assaltavam no mar os barcos de outros países, roubando-lhes a carga em verdadeiro­s atos de guerra disfarçado­s de azar.

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