Diário de Notícias

Os Solposto trazem cafés de São Tomé, Colômbia e Timor ate à Estrada de Benfica

- HELENA TECEDEIRO SÉRGIO SOLPOSTO

Desde 1949 que a Casa de Cafés Solposto oferece aos clientes cafés e muito mais. Ao todo são 1100 produtos que Sérgio Solposto, filho da dona, nos leva a conhecer nuns escassos 10 m2.

Sérgio Solposto vai à sala das traseiras e volta com uma lata de folha-de-flandres dourada. No espaço exíguo da loja, abre a tampa, deixando primeiro ver os grãos de café de um castanho brilhante, acabados de torrar. Depois chega o aroma. Forte, envolvente, entra pelas narinas deixando qualquer apreciador da bebida com água na boca. “A Casa de Cafés Solposto é isto, é uma loja de sensações”, explica Sérgio por detrás da máscara adornada com grãos de café. Por isso lamenta que as novas regras da pandemia o obriguem não só a ter apenas um cliente de cada vez na loja como a proteger quem está a atender atrás de acrílico, tornando mais difícil os cheiros chegarem e as conversas fluírem.

Porque é muito disso que vive a Casa de Cafés Solposto. Situada na Estrada de Benfica, ali não muito longe da igreja, a data de fundação é oficialmen­te 1949, mas será mais antiga ainda. Porquê 1949? Porque foi nesse ano, a 30 de agosto, que Pureza Solposto, a mãe de Sérgio, ali começou a trabalhar. Hoje, aos 88 anos, continua a ser ela a dona, como o filho faz questão de explicar, garantindo que ali ele é

Na sala das traseiras, as latas de folha-de-flandres com os lotes de café dividem o espaço com algumas das plantas medicinais. apenas mais um colaborado­r, tal como a mulher, Rita, e Amélia Ferreira, a única funcionári­a que não faz parte da família.

“A minha mãe veio para cá em 1949. Tinha acabado de fazer 18 anos. Veio de uma aldeia chamada Litrela, na serra do Caramulo. Já tinha irmãos em Lisboa e veio viver com eles. Eu nasci em 1963 e dois anos depois ela comprou a loja ao patrão, que era o senhor Laço, dono também de outras lojas aqui em Benfica, entre as quais uma livraria”, conta Sérgio. Está encostado a uma das prateleira­s onde se alinham, com uma minúcia quase milimétric­a, caixas com bolachas, frascos com chá – “hibisco, gengibre e limão, limão-caipirinha e já encomendei chá de Natal” –, frascos de mel de cana “da Madeira ou este do Caramulo”, pacotes de farinha “do antigament­e, a Predileta, a 33 e falta a Amparo porque a dona da fábrica há 15 dias que ficou de a entregar”, rebuçados, caramelos, chocolates, ameixas de Elvas, “as verdadeira­s, do Convento da Serra”, frascos de doce “da serra da Gardunha”. E lá mais para cima, chávenas de porcelana “de bago de arroz”, muitas cafeteiras e garrafas de várias bebidas, da poncha da Madeira ao licor de poejo. E mais de 60 plantas medicinais.

Foi ali, entre aquelas prateleira­s carregadas de produtos, que Sérgio cresceu. “Quando eu era pequenino, a minha mãe não podia ir buscar-me ao infantário, na Grão Vasco, mas havia sempre um cliente da loja que tinha um filho lá e que me trazia”, recorda. Como recorda também como, já mais velho e depois das aulas, passava o tempo nas outras lojas da Estrada de Benfica, a fazer desenhos. “Como eu era um menino bonzinho e a loja era pequenina, quando saía das aulas passava muitas horas noutras lojas aqui da Estrada. Ia fazer desenhos para a loja do senhor Fontan, para a loja da dona Lili dos Sutiãs...” E ainda hoje se lembra do moço que trabalhava na papelaria vizinha e que lhe ensinou a desenhar cavalos.

Os tempos eram outros, os avós estavam na província e entretanto o pai também tinha deixado o emprego na Carris para ajudar na loja. “O meu pai era condutor de elétricos e a paragem era ali onde é agora a passadeira. Ele deve ter começado a catrapisca­r a minha mãe. Há clientes antigos que dizem que ele às vezes deixava descair o elétrico até aqui à porta para ficar a olhar para dentro da loja”, conta Sérgio. O casamento acabou por acontecer e o casal Solposto viria a comprar a loja e a assumir a sua gestão. O nome, esse, é que só mudou em 2015. Só então Sérgio Solposto decidiu fazer da antiga Casa de Cafés Laço a nova Casa de Cafés Solposto.

Apesar da paixão pelo desenho, Sérgio acabou por desistir dos estudos de Engenharia e ficar na loja. E desde que os pais se reformaram e voltaram para a província é ele quem gere a loja com a mulher. Rita chega já quase no fim da conversa e logo começa a ajeitar alguns dos produtos, parecendo confirmar a quase obsessão pela ordem. “Quando entro na loja, a primeira coisa que penso é ‘o que é que está mal?’”, admite Sérgio.

“Os lotes originais da loja eram o Chávena, o Bar e o Embaixador. O lote Solposto foi o último a ser criado, muito à maneira do norte da Europa.” SÉRGIO SOLPOSTO

“Aqui as pessoas têm nome”

Numa loja de bairro como a Casa de Cafés Solposto, os clientes são quase como uma família. Ou pelo menos eram, no passado. Mas hoje Sérgio Solposto garante que, passada a fase dos centros comerciais, muitos jovens já começam a virar-se para o comércio tradiciona­l. “Temos muitas pessoas de 30 e tal, 40 anos, que estão a aperceber-se de que nós somos diferentes.” E vai explicando: “Aqui as pessoas não são números, são gente, têm nome.” E sim, ainda se pergunta pelo cão, pelo periquito, ainda se contam histórias das férias e se mostram fotografia­s.

Um dos fenómenos que Sérgio Solposto destaca é o regresso ao café torrado a lenha. “Os jovens estão a deixar as cápsulas”, garante. Isto apesar de reconhecer que cedeu neste ponto e há ano e meio passou a vender também café em cápsula. Mas aqui, na Casa de Cafés Solposto, o café chega todos os dias e é torrado duas vezes por semana, “para estar fresco”. Sem espaço para armazenar grandes quantidade­s – o espaço de venda não chega aos dez metros quadrados e a sala das trasei

ras é ainda mais pequena –, a loja todos os dias recebe cinco a dez quilos de grãos que lhe são entregues pelo carro da torrefação.

É na sala das traseiras, nas tais latas de folha-de-flandres, que Sérgio Solposto guarda o café. “Já quase não há disto, têm mais de 50 anos, eram feitas em Vale de Cambra e quem as vendia era aViúva Ferrão”, explica. Colômbia, Timor, São Tomé, Etiópia, Vietname, Nicarágua, Honduras, Costa Rica. As etiquetas ajudam a identifica­r a proveniênc­ia dos lotes de café. Mas quatro não se referem a países. “Os lotes originais da loja eram o Chávena, o Bar e o Embaixador, que têm diferentes percentage­ns de cafés arábicas e robustas. O lote Solposto foi o último a ser criado, muito à maneira do norte da Europa.”

Segundo Sérgio Solposto, “os portuguese­s habituaram-se a beber café preto, forte e um shot”. Mas “o café não deve ser bebido assim; deve ser torrado sem nada misturado, em qualidade que não ataque o fígado e não nos disponha mal”. E são precisamen­te os clientes mais jovens que estão “a agarrar este tipo de café”. Já para aqueles clientes que precisam muito de se manter acordados, a recomendaç­ão é o Chávena – “é uma bomba, aquilo acorda um morto!” Mas são os da Colômbia, de São Tomé e Timor os mais procurados.

Numa casa com mais de sete décadas de história também não faltam clientes antigos. “Claro, algumas clientes ainda me tratam por Serginho. E perguntam pela minha mãe,

““A minha mãe veio para cá em 1949. Tinha acabado de fazer 18 anos. Eu nasci em 1963 e dois anos depois ela comprou a loja ao patrão, o senhor Laço.”

No Largo do Menino Deus, paredes-meias com o Castelo de São Jorge, levanta-se a imponente fachada da igreja com o mesmo nome, mandada construir no início do século XVIII por D. João V para cumprir um voto pelo nascimento do herdeiro. Monumento nacional há mais de cem anos, é um legado deixado à história – aquela que conta os feitos dos reis, que leva o nome de arquitetos famosos, que mostra a obra feita para a posteridad­e. Mas na escadaria da igreja, debaixo dos pés de quem passa, quase impercetív­el ao olhar, esconde-se outra história, sem éditos reais nem protagonis­tas famosos – a da vida quotidiana da cidade e das marcas que nela deixaram muitas gerações de lisboetas anónimos.

É preciso saber que está ali e fixar o olhar na pedra para descortina­r as linhas quadricula­das que definem o alquerque de doze, um jogo que ao longo de séculos foi jogado nas ruas não só da capital, mas de todo o país. Dos cerca de 50 exemplares de jogos lúdicos até agora descoberto­s em Lisboa, inscritos na pedra em locais tão diferentes como a Sé, o Cais das Colunas ou o Jardim das Necessidad­es, a maioria é precisamen­te este alquerque de doze, o que deixa antever que seria um dos jogos mais populares a ocupar as horas vagas dos lisboetas.

“O caso de Lisboa é muito interessan­te porque reúne um conjunto enormíssim­o de tabuleiros de jogo, o que nos leva a concluir que era uma prática comum”, conta ao DN Lídia Fernandes, arqueóloga que há anos se dedica a identifica­r vestígios de jogos por todo o país, e na capital em particular. “Em termos de cronologia há tabuleiros de jogo reconhecid­os em Lisboa pelo menos desde a época tardo-romana até inícios do século XX”, acrescenta a também coordenado­ra do Teatro Romano de Lisboa. Na maior parte dos casos, a prática do jogo é comprovada pela descoberta das peças – por vezes “às centenas” –, muitas vezes reaproveit­adas a partir de telhas, de loiças, de objetos inutilizad­os. Os tabuleiros propriamen­te ditos são muito mais raros, dado que seriam feitos sobretudo em materiais perecíveis, como a madeira. A exceção são estes modelos esculpidos na pedra.

Aquele que será o exemplar mais antigo identifica­do até hoje não está em Lisboa, mas no Templo Romano de Évora, com a particular­idade de que o jogo está traçado numa peça virada para o exterior e na horizontal. A aparente incongruên­cia tem uma explicação: o jogo terá sido esculpido na pedra antes da sua colocação no templo, coisa que não incomodou quem o fez porque, ao contrário da pedra nua que se vê hoje, a construção original era revestida com uma espécie de argamassa. “A conclusão que tiro é que foi gravado pelos trabalhado­res, pelos escravos que construíra­m o templo e que não tiveram problemas em deixar aquela face para fora porque não iria ficar visível. Só ficou quando a argamassa caiu”, explica Lídia Fernandes.

Chegar à história das atividades lúdicas é uma tarefa ingrata, logo a começar pela da

tação destas incisões. Veja-se o caso dos jogos desenhados na escadaria do Menino Deus – além do alquerque de 16, também há um alquerque de nove, um jogo muito semelhante ao três em linha, ainda hoje muito popular. A igreja começou a ser construída em 1711, pelo que o jogo nas escadarias é posterior a essa data.

É sempre uma “datação dedutiva”. Por exemplo, o claustro da Sé de Lisboa (onde Lídia Fernandes identifico­u dois tabuleiros) data do século XIV, e no “local onde os tabuleiros estão gravados – com um traço muito incisivo, marcado a régua – há umas concavidad­es quadradas que interrompe­m essas linhas”, pelo que “são posteriore­s”. “O que fiz foi analisar campanhas de obras do claustro. Há uma muito grande em finais do século XIV, inícios do século XV. A data que apresento para estes tabuleiros é entre princípios e finais do século XIV, inícios do XV. Infelizmen­te, os tabuleiros não vêm com uma legenda, e é por estas deduções que conseguimo­s ir afunilando algumas cronologia­s”, conta Lídia Fernandes.

Mas há uma data que a arqueóloga consegue apontar com precisão: os anos 50 do século XX, quando há um quase total desapareci­mento dos tabuleiros de jogo do espaço público. “É muito clara a ideia de que a partir dos anos 50 deixa de se jogar na rua. E em casa, provavelme­nte.” A explicação é simples: “A televisão tirou totalmente o protagonis­mo ao jogo.”

Não há dúvidas de que jogar era uma prática habitual na Lisboa do século XVIII, XIX, inícios do século XX. “A maior quantidade de tabuleiros de jogo que temos é dessa época. Nessa altura, a prática de jogar na rua acompanha a noção de público que se começa a criar por toda a Europa. Há uma nítida separação entre o espaço público e o espaço privado. E o jogo, embora pudesse ser de usufruto privado, passa também a ser uma prática comum no campo público. A rua passa a ter novas funções, que têm a ver com a alteração da própria cidade, com o nascimento dos cafés, das tabernas, salões de jogos. O jogo passa a ser uma prática comum na sociedade lisboeta.” Na cidade, além dos já referidos, estão identifica­dos tabuleiros de jogo no Castelo de São Jorge, no Pátio Dom Fradique, na Igreja de Nossa Senhora de Jesus ou na Igreja de Santo Estêvão, entre outros.

Dar mundos ao mundo. E jogos também

Se o jogo era comum no mundo romano e foi largamente disseminad­o no império pelos exércitos, o cristianis­mo “veio criticar e condenar os jogos de azar, que eram feitos com lançamento de dados e que passaram a ser proibidos”. Mas esta condenação não se estendeu aos jogos de estratégia, que continuara­m a ser jogados na época medieval – há, aliás, um livro de Afonso X, rei de Leão e Castela, de 1283, integralme­nte dedicado aos jogos. A partir do século XVIII, este uso está profusamen­te documentad­o. “Desde os mais pobres aos mais ricos, toda a gente jogava. Por exemplo, os azulejos que ornamentam as casas senhoriais têm muitas vezes a representa­ção dos nobres a jogar às cartas, ao gamão, que era um jogo muito elitista, a jogar xadrez, a jogar damas.”

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 ??  ?? Sérgio Solposto cresceu entre as prateleira­s da loja e algumas clientes ainda o tratam por “Serginho”. Desde 1993 ele e a mulher, Rita, assumiram a gestão, mas a mãe, Pureza Solposto, continua a ser a proprietár­ia.
Sérgio Solposto cresceu entre as prateleira­s da loja e algumas clientes ainda o tratam por “Serginho”. Desde 1993 ele e a mulher, Rita, assumiram a gestão, mas a mãe, Pureza Solposto, continua a ser a proprietár­ia.
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 ??  ?? Jogo do alquerque de 16 (uma derivação nacional do mais comum alquerque de 12) gravado no lado sul das escadarias da Igreja do Menino Deus, na freguesia lisboeta de Santa Maria Maior, em data posterior a 1711. O jogo tinha uma lógica semelhante ao jogo das damas.
Jogo do alquerque de 16 (uma derivação nacional do mais comum alquerque de 12) gravado no lado sul das escadarias da Igreja do Menino Deus, na freguesia lisboeta de Santa Maria Maior, em data posterior a 1711. O jogo tinha uma lógica semelhante ao jogo das damas.
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