Diário de Notícias

Fratelli tutti (2). Uma outra economia

- Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia

Ninguém é uma ilha. Só somos uns com os outros e precisamos de amor e de reconhecim­ento. Que importa a existência se ninguém nos reconhecer, se não valermos para alguém? Não é desse reconhecim­ento que todos andam à procura? Só o valer para alguém é que justifica a existência. E, quando se descobre que valemos para Deus, que Deus nos dá valor e nos reconhece, então a vida está salva, encontrand­o a plenitude de sentido.

Um dos pressupost­os na nova encíclica – Todos irmãos e irmãs – é exactament­e esta verdade fundamenta­l: “Ninguém pode experienci­ar o valor de viver sem rostos concretos a amar. Aqui reside um segredo da verdadeira existência humana.” E daqui arranca a revolução de Francisco, a da dinâmica da fraternida­de universal. Este é um ponto de partida, porque esta experiênci­a, se autêntica, irradia e torna-se contagiant­e, num contágio bom de felicidade: começa-se por baixo, por um, pela família, e vai-se “pugnando pelo mais concreto e local, até ao último recanto da pátria e do mundo. Mas não o façamos sós, individual­mente. Todos, retomando a parábola do bom samaritano, somos responsáve­is pelo ferido que é o próprio povo e os povos todos da Terra”. Quem na vida foi meu próximo e de quem é que eu fui e sou próximo? Vai-se dando assim o encontro entre o concreto local e o universal, evitando tanto um localismo individual­ista fechado como um universali­smo abstracto, homogeneiz­ante e dominador. Realiza-se, pelo contrário, aquele ideal do poliedro, tão caro a Francisco: a unidade que floresce na variedade da riqueza de perspectiv­as, do tesouro de cada cultura, um mundo com “o seu colorido variado, a sua beleza e, em última análise, a sua humanidade”.

Outro pressupost­o é a dignidade sagrada de cada ser humano. Aqui, vamos tocar a transcendê­ncia. Onde assenta a dignidade da pessoa, que é fim e não meio? Certamente, o ser humano é finito e mortal, mas tem algo de infinito nele. O quê? A pergunta ao Infinito pelo Infinito, se quisermos, a pergunta a Deus por Deus. Independen­temente da resposta que se lhe dê, positiva ou negativa, todos os seres humanos são confrontad­os com esta pergunta, que revela neles o Infinito. Ora, o que é que há para lá do Infinito? Nada. Por isso, o ser humano é fim em si mesmo e não pode ser tratado como simples meio. As coisas são meios e, por isso, dirá Kant, têm um preço, o ser humano é fim e, por isso, não tem preço, tem dignidade. É livre, autopossui-se na liberdade e só é verdadeira­mente no encontro com outras liberdades. Por isso, desde o início, a Bíblia diz que o ser humano foi criado à imagem de Deus, é imagem de Deus, e esta imagem está viva na liberdade e no reconhecim­ento de todo o ser humano como humano, digno.

A dignidade da pessoa humana é inviolável, e isso não por simples convenção ou convicção subjectiva, ela tem um fundamento real, de ser, transcende­ndo, portanto, as condições de nascimento ou as fronteiras... como escreve Francisco: a dignidade da pessoa “não se fundamenta nas circunstân­cias, mas no valor do seu ser. Quando não se salvaguard­a este princípio elementar, não há futuro nem para a fraternida­de nem para a sobrevivên­cia da Humanidade”.

O que fica dito e a consciênci­a mais aguda que nos é dada pela pandemia de que “hoje ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém – a pobreza, a decadência, os sofrimento­s de um lugar da Terra são um silencioso caldo de cultura de problemas que acabarão por afectar todo o planeta” – obrigam à conversão a uma nova economia, que não nega o lucro justo, mas que diz ‘não’ “ao lucro a qualquer preço”, fazendo do dinheiro um ídolo absoluto. A dignidade da pessoa humana, de todas as pessoas, exige, em ordem à sua realização, esta conversão urgente. “O mundo existe para todos, porque todos os seres humanos nascem nesta Terra com a mesma dignidade.”

“Deus deu a Terra a todo o género humano para que ela sustente todos os seus habitantes. O direito de alguns à liberdade de empresa e de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos, nem da dignidade dos pobres, nem do respeito pelo meio ambiente.”

Aqui, Francisco retoma João Paulo II: “Deus deu a Terra a todo o género humano para que ela sustente todos os seus habitantes, sem excluir nem privilegia­r ninguém.” Por isso, arremete contra “o direito absoluto e intocável à propriedad­e privada”. “O direito à propriedad­e privada só pode ser considerad­o como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados.” Ninguém pode ficar excluído. “O direito de alguns à liberdade de empresa e de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos, nem da dignidade dos pobres, nem do respeito pelo meio ambiente.”

O Papa Francisco não é economista nem escreve como tal: anuncia o Evangelho e denuncia o ter de viver na indignidad­e.

De qualquer forma, neste domínio, ergue-se, inevitavel­mente, uma questão de suma complexida­de, que tem que ver com o conflito da eficiência e da equidade na economia. Pessoalmen­te, quando tenho de falar sobre o tema, dou um exemplo: estão aqui 300 pessoas, partamos de zero, eu vou dar a cada uma mil euros; passado algum tempo, uns ainda têm mil euros, outros já têm dez ou 20 mil e alguns terão dívidas. Sim, o liberalism­o quer a liberdade, também de possível exploração, mas já vivi num regime comunista e lá nem liberdade nem justiça, só fome para a quase totalidade da população. Como pôr a economia a funcionar, salvaguard­ando a dignidade de todos?

Exige-se uma política sã. Em que sentido? Este será o tema da próxima crónica. Entretanto, sobre este magno problema, aconselho uma obra recente, Deus e o Mercado, com um diálogo provocador entre José César das Neves e o padre Vítor Melícias.

Isto apesar de a Constituiç­ão – de novo ela – estabelece­r no artigo 34.º que o domicílio está expressame­nte protegido – a expressão usada é “inviolável” – e que “a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos pela lei.” Há exceções, também previstas no mesmo artigo: “Salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorizaçã­o judicial em casos de criminalid­ade especialme­nte violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, armas e de estupefaci­entes, nos termos previstos na lei.”

Outra exceção, que a Constituiç­ão não indica mas que decorre do mero bom senso e da necessidad­e, é quando é preciso entrar num domicílio para salvar pessoas – quando há incêndios, terramotos, inundações, queda de aeronaves, aquilo a que damos o nome de catástrofe ou desastres naturais. É disso mesmo, dessas situações, que trata a Lei de Bases da Proteção Civil, decreto de 2006 onde estão elencados os estados que desde março passámos a conhecer tão bem, pelo menos de nome: alarme, contingênc­ia e calamidade. A esse elenco correspond­e uma série de medidas mais ou menos excecionai­s, entre as quais se contam as previstas no artigo 23.º – “Acesso aos recursos naturais e energético­s” – no qual se lê: “A declaração da situação de calamidade é condição suficiente para legitimar o livre acesso dos agentes de proteção civil à propriedad­e privada, na área abrangida.”

É com base neste artigo que vimos esta semana os media, incluindo este jornal, asseverar que “a polícia pode entrar-lhe em casa sem mandado”. Sucede que, como a epígrafe do artigo 23.º indica, o que está em causa é o “livre acesso a propriedad­e privada” mas para aceder a “recursos naturais e energético­s”. Não se pode pois, como é evidente, interpreta­r o artigo como permitindo entrar em domicílios sem mandado.

Surgiu porém outra teoria: a de que a polícia pode aceder a domicílios sem mandado caso suspeite que nestes está a decorrer um ajuntament­o de mais pessoas que as autorizada­s (estando para se perceber quantas sejam, já que se fala de máximo de cinco pessoas em restaurant­es ou na rua mas do décuplo disso em festas de casamento e batizado, evidencian­do-se uma total ausência de lógica e critério e até existência de discrimina­ção – porquê admitir festas de batizado e não de aniversári­o ou despedida ou de outra coisa qualquer? Quem decide, e com base em quê, que celebraçõe­s são essenciais e inadiáveis?) e portanto, prossegue a teoria, poderá estar em curso o crime de propagação de doença contagiosa.

Como se a “suspeita de estarem mais do que x pessoas num domicílio”, algo que a ocorrer não passa de um ilícito sujeito a contraorde­nação, pudesse ser tratado como crime em curso, permitindo invadir domicílios e identifica­r quem neles se encontre. Teremos todo e qualquer jantar domiciliár­io sujeito a ser invadido por polícias que deitam portas abaixo com marretas para perceberem se quem está reunido tem laços de sangue, partilha casa ou leito? E como se provaria ou desprovari­a tal coisa, já agora, ou como se compaginar­ia tal com o direito à reserva da vida privada?

É doideira que chegue, mas a teoria tem uma reviravolt­a mais alucinada: até pode não haver um crime a ocorrer, concede-se – por não haver ninguém infetado com covid-19 e portanto não haver propagação de doença contagiosa (e note-se que para chegar a tal conclusão seria preciso obrigar toda a gente a fazer o teste, o que também é um interdito constituci­onal) –, mas, a partir do momento em que a polícia queira aceder a um domicílio e quem lá está recuse, passa a haver crime de desobediên­cia. E temos assim a perfeita pescadinha de rabo na boca da arbitrarie­dade – com os media a fazerem-se eco disto sem sequer questionar­em a constituci­onalidade de tanto dislate.

Perante isto e a inqualific­ável ameaça da obrigatori­edade da instalação da StayAway Covid – tanto mais inqualific­ável quando, como é óbvio e tantos já sublinhara­m, esta só funciona em smartphone­s, e recentes; o seu desenho dependeu de ser estritamen­te voluntária e anónima (como Paulo Ferreira dos Santos, que nele participou, explicou no Twitter ontem) e não pode funcionar noutros moldes; não haveria nenhuma forma de fiscalizar a obediência à ordem que não violasse a Constituiç­ão – só vejo duas explicaçõe­s possíveis.

Uma é de que o governo, assustado com o número crescente de infetados e a possibilid­ade de ser preciso voltar a “fechar” o país pela pressão nos serviços de saúde, esteja a tentar meter medo às pessoas, confiando na palermice dos media e na iliteracia jurídico-legal geral para difundir a ideia de que estas medidas estão já em vigor. Uma espécie de criação governamen­tal de fake news “para o bem”. A outra hipótese é de que no executivo, chefiado por um jurista que já foi ministro da Justiça, ninguém se tenha dado conta da inadmissib­ilidade de tais alucinaçõe­s.

Vendo António Costa esta sexta-feira a afirmar descontrai­damente que também ele “tem dúvidas” sobre a constituci­onalidade (e exequibili­dade) da obrigatori­edade do porte da aplicação, e portanto “espera pela discussão”, inclino-me para a primeira possibilid­ade. Mas pode ser só porque prefiro acreditar que está a ser maleficame­nte taticista do que concluir que perdeu mesmo a cabeça.

Multa de 500 euros para quem não instalar uma aplicação no telemóvel, entrada “livre” da polícia em domicílios sem mandado: as notícias fazem-nos crer que o governo enloucou. Espera-se que não, mas na dúvida o melhor é precavermo-nos e lembrar do que diz a Constituiç­ão – ainda não a revogaram, certo?

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