Fratelli tutti (2). Uma outra economia
Ninguém é uma ilha. Só somos uns com os outros e precisamos de amor e de reconhecimento. Que importa a existência se ninguém nos reconhecer, se não valermos para alguém? Não é desse reconhecimento que todos andam à procura? Só o valer para alguém é que justifica a existência. E, quando se descobre que valemos para Deus, que Deus nos dá valor e nos reconhece, então a vida está salva, encontrando a plenitude de sentido.
Um dos pressupostos na nova encíclica – Todos irmãos e irmãs – é exactamente esta verdade fundamental: “Ninguém pode experienciar o valor de viver sem rostos concretos a amar. Aqui reside um segredo da verdadeira existência humana.” E daqui arranca a revolução de Francisco, a da dinâmica da fraternidade universal. Este é um ponto de partida, porque esta experiência, se autêntica, irradia e torna-se contagiante, num contágio bom de felicidade: começa-se por baixo, por um, pela família, e vai-se “pugnando pelo mais concreto e local, até ao último recanto da pátria e do mundo. Mas não o façamos sós, individualmente. Todos, retomando a parábola do bom samaritano, somos responsáveis pelo ferido que é o próprio povo e os povos todos da Terra”. Quem na vida foi meu próximo e de quem é que eu fui e sou próximo? Vai-se dando assim o encontro entre o concreto local e o universal, evitando tanto um localismo individualista fechado como um universalismo abstracto, homogeneizante e dominador. Realiza-se, pelo contrário, aquele ideal do poliedro, tão caro a Francisco: a unidade que floresce na variedade da riqueza de perspectivas, do tesouro de cada cultura, um mundo com “o seu colorido variado, a sua beleza e, em última análise, a sua humanidade”.
Outro pressuposto é a dignidade sagrada de cada ser humano. Aqui, vamos tocar a transcendência. Onde assenta a dignidade da pessoa, que é fim e não meio? Certamente, o ser humano é finito e mortal, mas tem algo de infinito nele. O quê? A pergunta ao Infinito pelo Infinito, se quisermos, a pergunta a Deus por Deus. Independentemente da resposta que se lhe dê, positiva ou negativa, todos os seres humanos são confrontados com esta pergunta, que revela neles o Infinito. Ora, o que é que há para lá do Infinito? Nada. Por isso, o ser humano é fim em si mesmo e não pode ser tratado como simples meio. As coisas são meios e, por isso, dirá Kant, têm um preço, o ser humano é fim e, por isso, não tem preço, tem dignidade. É livre, autopossui-se na liberdade e só é verdadeiramente no encontro com outras liberdades. Por isso, desde o início, a Bíblia diz que o ser humano foi criado à imagem de Deus, é imagem de Deus, e esta imagem está viva na liberdade e no reconhecimento de todo o ser humano como humano, digno.
A dignidade da pessoa humana é inviolável, e isso não por simples convenção ou convicção subjectiva, ela tem um fundamento real, de ser, transcendendo, portanto, as condições de nascimento ou as fronteiras... como escreve Francisco: a dignidade da pessoa “não se fundamenta nas circunstâncias, mas no valor do seu ser. Quando não se salvaguarda este princípio elementar, não há futuro nem para a fraternidade nem para a sobrevivência da Humanidade”.
O que fica dito e a consciência mais aguda que nos é dada pela pandemia de que “hoje ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém – a pobreza, a decadência, os sofrimentos de um lugar da Terra são um silencioso caldo de cultura de problemas que acabarão por afectar todo o planeta” – obrigam à conversão a uma nova economia, que não nega o lucro justo, mas que diz ‘não’ “ao lucro a qualquer preço”, fazendo do dinheiro um ídolo absoluto. A dignidade da pessoa humana, de todas as pessoas, exige, em ordem à sua realização, esta conversão urgente. “O mundo existe para todos, porque todos os seres humanos nascem nesta Terra com a mesma dignidade.”
“Deus deu a Terra a todo o género humano para que ela sustente todos os seus habitantes. O direito de alguns à liberdade de empresa e de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos, nem da dignidade dos pobres, nem do respeito pelo meio ambiente.”
Aqui, Francisco retoma João Paulo II: “Deus deu a Terra a todo o género humano para que ela sustente todos os seus habitantes, sem excluir nem privilegiar ninguém.” Por isso, arremete contra “o direito absoluto e intocável à propriedade privada”. “O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados.” Ninguém pode ficar excluído. “O direito de alguns à liberdade de empresa e de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos, nem da dignidade dos pobres, nem do respeito pelo meio ambiente.”
O Papa Francisco não é economista nem escreve como tal: anuncia o Evangelho e denuncia o ter de viver na indignidade.
De qualquer forma, neste domínio, ergue-se, inevitavelmente, uma questão de suma complexidade, que tem que ver com o conflito da eficiência e da equidade na economia. Pessoalmente, quando tenho de falar sobre o tema, dou um exemplo: estão aqui 300 pessoas, partamos de zero, eu vou dar a cada uma mil euros; passado algum tempo, uns ainda têm mil euros, outros já têm dez ou 20 mil e alguns terão dívidas. Sim, o liberalismo quer a liberdade, também de possível exploração, mas já vivi num regime comunista e lá nem liberdade nem justiça, só fome para a quase totalidade da população. Como pôr a economia a funcionar, salvaguardando a dignidade de todos?
Exige-se uma política sã. Em que sentido? Este será o tema da próxima crónica. Entretanto, sobre este magno problema, aconselho uma obra recente, Deus e o Mercado, com um diálogo provocador entre José César das Neves e o padre Vítor Melícias.
Isto apesar de a Constituição – de novo ela – estabelecer no artigo 34.º que o domicílio está expressamente protegido – a expressão usada é “inviolável” – e que “a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos pela lei.” Há exceções, também previstas no mesmo artigo: “Salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, armas e de estupefacientes, nos termos previstos na lei.”
Outra exceção, que a Constituição não indica mas que decorre do mero bom senso e da necessidade, é quando é preciso entrar num domicílio para salvar pessoas – quando há incêndios, terramotos, inundações, queda de aeronaves, aquilo a que damos o nome de catástrofe ou desastres naturais. É disso mesmo, dessas situações, que trata a Lei de Bases da Proteção Civil, decreto de 2006 onde estão elencados os estados que desde março passámos a conhecer tão bem, pelo menos de nome: alarme, contingência e calamidade. A esse elenco corresponde uma série de medidas mais ou menos excecionais, entre as quais se contam as previstas no artigo 23.º – “Acesso aos recursos naturais e energéticos” – no qual se lê: “A declaração da situação de calamidade é condição suficiente para legitimar o livre acesso dos agentes de proteção civil à propriedade privada, na área abrangida.”
É com base neste artigo que vimos esta semana os media, incluindo este jornal, asseverar que “a polícia pode entrar-lhe em casa sem mandado”. Sucede que, como a epígrafe do artigo 23.º indica, o que está em causa é o “livre acesso a propriedade privada” mas para aceder a “recursos naturais e energéticos”. Não se pode pois, como é evidente, interpretar o artigo como permitindo entrar em domicílios sem mandado.
Surgiu porém outra teoria: a de que a polícia pode aceder a domicílios sem mandado caso suspeite que nestes está a decorrer um ajuntamento de mais pessoas que as autorizadas (estando para se perceber quantas sejam, já que se fala de máximo de cinco pessoas em restaurantes ou na rua mas do décuplo disso em festas de casamento e batizado, evidenciando-se uma total ausência de lógica e critério e até existência de discriminação – porquê admitir festas de batizado e não de aniversário ou despedida ou de outra coisa qualquer? Quem decide, e com base em quê, que celebrações são essenciais e inadiáveis?) e portanto, prossegue a teoria, poderá estar em curso o crime de propagação de doença contagiosa.
Como se a “suspeita de estarem mais do que x pessoas num domicílio”, algo que a ocorrer não passa de um ilícito sujeito a contraordenação, pudesse ser tratado como crime em curso, permitindo invadir domicílios e identificar quem neles se encontre. Teremos todo e qualquer jantar domiciliário sujeito a ser invadido por polícias que deitam portas abaixo com marretas para perceberem se quem está reunido tem laços de sangue, partilha casa ou leito? E como se provaria ou desprovaria tal coisa, já agora, ou como se compaginaria tal com o direito à reserva da vida privada?
É doideira que chegue, mas a teoria tem uma reviravolta mais alucinada: até pode não haver um crime a ocorrer, concede-se – por não haver ninguém infetado com covid-19 e portanto não haver propagação de doença contagiosa (e note-se que para chegar a tal conclusão seria preciso obrigar toda a gente a fazer o teste, o que também é um interdito constitucional) –, mas, a partir do momento em que a polícia queira aceder a um domicílio e quem lá está recuse, passa a haver crime de desobediência. E temos assim a perfeita pescadinha de rabo na boca da arbitrariedade – com os media a fazerem-se eco disto sem sequer questionarem a constitucionalidade de tanto dislate.
Perante isto e a inqualificável ameaça da obrigatoriedade da instalação da StayAway Covid – tanto mais inqualificável quando, como é óbvio e tantos já sublinharam, esta só funciona em smartphones, e recentes; o seu desenho dependeu de ser estritamente voluntária e anónima (como Paulo Ferreira dos Santos, que nele participou, explicou no Twitter ontem) e não pode funcionar noutros moldes; não haveria nenhuma forma de fiscalizar a obediência à ordem que não violasse a Constituição – só vejo duas explicações possíveis.
Uma é de que o governo, assustado com o número crescente de infetados e a possibilidade de ser preciso voltar a “fechar” o país pela pressão nos serviços de saúde, esteja a tentar meter medo às pessoas, confiando na palermice dos media e na iliteracia jurídico-legal geral para difundir a ideia de que estas medidas estão já em vigor. Uma espécie de criação governamental de fake news “para o bem”. A outra hipótese é de que no executivo, chefiado por um jurista que já foi ministro da Justiça, ninguém se tenha dado conta da inadmissibilidade de tais alucinações.
Vendo António Costa esta sexta-feira a afirmar descontraidamente que também ele “tem dúvidas” sobre a constitucionalidade (e exequibilidade) da obrigatoriedade do porte da aplicação, e portanto “espera pela discussão”, inclino-me para a primeira possibilidade. Mas pode ser só porque prefiro acreditar que está a ser maleficamente taticista do que concluir que perdeu mesmo a cabeça.
Multa de 500 euros para quem não instalar uma aplicação no telemóvel, entrada “livre” da polícia em domicílios sem mandado: as notícias fazem-nos crer que o governo enloucou. Espera-se que não, mas na dúvida o melhor é precavermo-nos e lembrar do que diz a Constituição – ainda não a revogaram, certo?