A calamidade alucinada
Sucedem coisas muito curiosas em Portugal. Num julgamento em que estava em causa o crime de violação da intimidade da vida privada, vi o juiz insistir em saber, junto do queixoso, se aquilo que motivava a queixa – a publicação num livro de um relato sobre a sua vida privada – correspondia à verdade dos factos. Por outras palavras, o juiz queria que a vítima expusesse ali a sua intimidade no próprio ato de a tentar defender na justiça. Como a pessoa se recusasse a fazê-lo, tentando que o magistrado entendesse o paradoxo, este insistiu: tinha de saber se aquilo era verdadeiro ou falso. Exasperado, o depoente perguntou se tinha perdido os seus direitos constitucionais ao entrar naquela sala de tribunal – e viu-se ameaçado com um processo por crime de desobediência, por recusar responder à pergunta do juiz.
As coisas acabaram por se compor e o juiz condenou o arguido. Mas este episódio é bem simbólico do que pode suceder quando as autoridades esquecem que o poder que lhes é conferido pelo povo não lhes permite mais que o que a lei dispõe, nos estritos limites estabelecidos pela Constituição e pela necessidade, e que sim, lembrar os limites desse poder é um direito dos cidadãos e não impertinência – muito menos crime. Em última análise, aliás, cada um de nós está investido do poder de defender o reduto fundamental dos seus direitos face a ordens ilegítimas – tal tem consagração legal sob o nome de desobediência civil ou “direito de resistência”. Diz isso mesmo o artigo 21.º da Constituição: “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.”
O problema, claro, é quando não há autoridade pública que nos valha porque é mesmo ela que está a violar os nossos direitos – e quando o cidadão não os conhece o suficiente para saber que estão a ser violados, quanto mais para resistir a quem os viola. Isso mesmo sucede quando, como em tantas circunstâncias relatadas pelos media, polícias mandam parar cidadãos na rua para os identificar e chegam até a revistá-los sem mais justificação que “desconfiar” ou “afigurar-se-lhes suspeito” ou mesmo, não raro, por mera discriminação, embirração ou perseguição – quando a lei impõe que para tal tenham fundadas suspeitas de cometimento de crime e que tenham de o afirmar, especificando qual crime – ou entram, a meio da noite, em diversas casas de um bairro, geralmente dito “problemático”, sem possuírem mandado judicial para cada uma delas e sem que exista “fundada suspeita” de que ali estão a ser cometidos crimes.