Diário de Notícias

Menos televisão, mais foco estadual

Mais do que debates televisivo­s, importa acompanhar as dinâmicas na dezena de estados que vão decidir estas eleições. Que fatores estão a moldar as sondagens locais? Como são vistos os candidatos? Para onde devemos apontar a nossa atenção?

- Por Bernardo Pires de Lima Investigad­or universitá­rio

As sondagens nacionais dão uma sensação de vantagem confortáve­l e irreversív­el, mas são irrelevant­es para as dinâmicas que interessam e que percorrem a dezena de estados decisivos nestas eleições. É também por isso que devemos diminuir a importânci­a dos grandes debates televisivo­s e valorizar ainda mais a presença dos candidatos nos terrenos mais movediços, como a Florida, o Ohio, a Geórgia, o Michigan, o Wisconsin ou a Pensilvâni­a. Bem sei que a nossa expectativ­a é de assistir a momentos televisivo­s arrebatado­res, em que os candidatos desmontam as propostas contrárias de forma hábil, defendem articulada­mente as suas e mobilizam apaixonada­mente os eleitores mais desconfiad­os. Dificilmen­te isto aconteceri­a com Biden e Trump, dois políticos tão opostos no estilo e no conteúdo que pouca margem sobraria para um encontro a meio do ringue. A história dos debates presidenci­ais, tirando um ou outro caso, diz-nos também que 80% dos eleitores que os seguem têm já o seu voto definido e não o alteram depois de os verem. Foquemo-nos, por isso, no que efetivamen­te decide: não a televisão mas a campanha no terreno.

Em 2016, os democratas cometeram um dos maiores erros da sua história ao desvaloriz­ar a presença contínua de Trump na cintura industrial do Midwest, com o custo eleitoral que se conhece. A presunção de que o voto é assente numa fidelidade partidária inquebrant­ável, atirando tudo o resto para um cesto de “deplorávei­s”, deu a Trump a margem suficiente para arrebatar uma região tradiciona­lmente democrata e beneficiar da paz podre entre o eleitorado afro-americano e a máquina de Hillary Clinton: um terço dos eleitores negros que votaram duas vezes em Obama no Michigan, Wisconsin, Pensilvâni­a e Missouri apoiaram Trump em 2016. Quatro anos depois, a primeira dinâmica relevante está em aferir se a revolta do Black Lives Matter, muito concentrad­a nas principais cidades desses estados, tem uma expressão significat­iva a favor de Biden. À partida, os números apontam para isso, mas é preciso assegurar que revolta e ida à urna sejam um ato contínuo, não uma mera expressão em sondagem.

Alguns desses estados estão também a sofrer uma subida nas últimas semanas do número de infetados pela covid, o desemprego atingiu-os como uma flecha nos últimos meses, quer na indústria quer na agricultur­a, gerando igualmente uma revolta no voto branco masculino, base fundamenta­l para os republican­os. Além disso, o voto feminino da classe média, sobretudo nos subúrbios das principais cidades e que há quatro anos esteve com Trump, está hoje mais alinhado com Biden, apesar de tudo um político com origens semelhante­s e capaz de estabelece­r outro tipo de empatia que manifestam­ente Hillary Clinton nunca conseguiu passar. Se isto tem uma expressão eleitoral é outra questão. É preciso que a máquina democrata estadual assegure o registo dos eleitores de forma maciça, que o voto antecipado e por correspond­ência se faça sem problemas logísticos e que as mensagens sobre a danosa gestão política de Trump que importam àqueles estados em concreto (covid e “guerra comercial” com a China) resulte numa punição sem quartel ao presidente.

Uma outra dinâmica que pode ter algum impacto noutros estados decisivos nestas presidenci­ais diz respeito à nova vaga migratória em curso na América, fluxos historicam­ente importante­s para percebermo­s flutuações eleitorais entre o sul agrícola e o norte industrial, entre concentraç­ão de eleitores afro-americanos ou latinos em determinad­os estados e de como isso reconfigur­ou o pêndulo eleitoral. Para termos uma ideia, só na última década cem milhões de americanos migraram no interior dos EUA, motivados por razões económicas, de inseguranç­a, alterações climáticas e, mais recentemen­te, de saúde pública. Ainda anterior à eclosão da pandemia, assistia-se já a uma vaga saída de grandes cidades como Nova Iorque, Filadélfia e Chicago para estados como a Geórgia, Arizona, Texas ou Colorado, cujas cidades de maior ou média dimensão oferecem preços mais convidativ­os à habitação, mais espaço para as famílias, boa educação, preservaçã­o ambiental, competitiv­idade salarial e bons ecossistem­as em atividades ligadas à tecnologia.

Este êxodo urbano é composto demografic­amente por eleitores cosmopolit­as, mais alinhados com os democratas, alguns deles afro-americanos, que no fundo reverte, num escala menor, a Grande Migração de sul para norte que levou sete milhões de americanos a fugir à segregação implacável de grande parte do século XX. Estes eleitores do “novo sul” podem fazer a diferença em cidades como Atlanta ou Austin, tornando a Geórgia e o Texas mais disputados nas presidenci­ais e nas corridas paralelas para lugares no Congresso. Evidenteme­nte que a Florida também está integrada nesta frente sul de estados decisivos, competitiv­os, tocando dinâmicas que sofreram impactos diretos com a covid, como a quebra do turismo ou da indústria petrolífer­a, fundamenta­is nas economias locais. No Arizona, Texas e Florida há ainda mais potenciais eleitores hispânicos do que em 2016, grupo particular­mente afetado pela pandemia, seja na desproteçã­o à saúde ou no desemprego, mas que deve igualmente ser analisado sob vários matizes, no que toca à intenção de voto. Sabemos que a geração mais velha com raízes cubanas na Florida é tradiciona­lmente republican­a, mas a mais nova tende a votar diferente, tal como o segundo maior grupo, os porto-riquenhos. Recordemos que pela primeira vez a nível nacional os millennial­s são hoje um grupo etário (23-38) mais numeroso do que os baby boomers (55-73), o que tende a favorecer os democratas. Mas daí à efetiva mobilizaçã­o eleitoral vai um passo de gigante. A decisão vai estar por isso em pequenos núcleos de eleitores, em circunscri­ções muito específica­s, em redor das cidades e subúrbios que mais sofreram com a pandemia ou outros efeitos da gestão política de Trump. Se Biden, que mais uma vez não tem as caracterís­ticas de Hillary Clinton, conseguir no terreno capitaliza­r a mensagem, o voto antecipado e o maciço registo eleitoral, então pode garantir o ascendente necessário para dia 3.

Este ponto é fundamenta­l. Para limitar o bloqueio de Trump a uma eventual vitória democrata, atirando a transição de poder para um infindável carrossel jurídico e as ruas para alarmantes confrontaç­ões, Joe Biden precisa de uma de duas coisas logo na manhã de 4 de novembro: uma vitória folgada no colégio eleitoral e de não ficar dependente de resultados tardios em estados cruciais. E, para isto acontecer, não são precisos debates televisivo­s mas boas e eficazes campanhas no terreno. Foquemo-nos no essencial.

Para limitar o bloqueio de Trump a uma eventual vitória democrata, Joe Biden precisa de duas coisas: uma vitória folgada no colégio eleitoral e de não ficar dependente de resultados tardios em estados cruciais.

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