Diário de Notícias

As fragilidad­es de um gigante

- Victor Ângelo Conselheir­o em Segurança Internacio­nal. Ex-representa­nte especial da ONU

Os corredores económicos que a China está a construir através de Myanmar e do Paquistão são dois pilares da Nova Rota da Seda, a ambição gigantesca que o presidente Xi Jinping formulou, após chegar ao poder em 2012. Gigantesca é, aliás, uma adjetivaçã­o insuficien­te, minúscula mesmo, perante a enormidade e a complexida­de dessa ambição. Mais ainda, a envergadur­a da Nova Rota da Seda tem causado ansiedades em muitos círculos de decisão geopolític­a na Europa, na América e na Ásia, e explica uma boa parte do sentimento de desaprovaç­ão, de oposição mesmo, que agora existe em relação à China. Em política, como na vida, a ambição desmesurad­a acaba por ser uma fonte de grandes conflitos.

O corredor China-Myanmar é acima de tudo um investimen­to em pipelines – cerca de 800 quilómetro­s –, já concluídos e que tive a oportunida­de de visitar há cerca de um ano. Está neste momento a ser planeado um projeto complement­ar, que consiste na construção de uma ferrovia, que seguirá o percurso do oleoduto e do gasoduto desde a costa marítima birmanesa no golfo de Bengala até Kunming, a capital da província chinesa de Yunnan. Estas infraestru­turas destinam-se a facilitar as importaçõe­s petrolífer­as da China, evitando o longo e perigoso percurso através do estreito de Malaca e pelo Mar da China do Sul. O petróleo e o gás virão do Médio Oriente e de África. A via-férrea fará parte da ligação, que continuará por via marítima, entre a China, Mombasa e Djibouti, dois portos de grande importânci­a estratégic­a, quer como pontos de entrada em África quer como bases de apoio ao trânsito de mercadoria­s para a Europa. Djibouti oferece, igualmente, uma localizaçã­o excecional para a proteção da navegação entre o Oriente e a Europa. Chineses, americanos, franceses, japoneses, indianos e outros, todos querem ter uma presença militar em Djibouti. A China é a única potência que combina nesse território defesa com infraestru­turas económicas.

Voltando ao corredor que atravessa Myanmar, verifiquei que as grandes companhias chinesas de petróleo, gás e obras públicas têm luz verde dos militares birmaneses e do governo civil de Aung San Suu Kyi. Consideram, além disso, que cabe às autoridade­s de Myanmar tratar da sorte das comunidade­s afetadas pelos projetos. O problema é que ninguém explicou nada às populações nem prometeu qualquer indemnizaç­ão pelas expropriaç­ões e demais perdas. O resultado, para já, como o constatei pessoalmen­te, é a hostilidad­e crescente das diferentes comunidade­s birmanesas contra os chineses. Mais tarde, a própria segurança dos projetos poderá estar em risco.

O corredor paquistanê­s é apresentad­o como o navio almirante no universo da Nova Rota da Seda. Começa na região chinesa de Xinjiang e termina no porto paquistanê­s de Gwadar, no Índico, muito perto da entrada do estratégic­o golfo de Omã. Não visitei esse empreendim­ento faraónico – um investimen­to de 87 mil milhões de dólares americanos para financiar estradas, ferrovias, centrais elétricas e zonas económicas especiais. Mas vejo que a intenção é clara. A China ajuda o Paquistão a modernizar as infraestru­turas de comunicaçõ­es, de produção de energia, industriai­s e portuárias. Em troca, tem acesso direto ao oceano Índico e a várias zonas francas, onde poderá contar com a mão-de-obra abundante e barata que o Paquistão tem disponível. Além disso, reforça o poder político e militar de um aliado fundamenta­l na sua rivalidade crescente com a Índia. Sei que também aqui, como em Myanmar e noutros países de investimen­to chinês em larga escala, há o problema da adesão ou da hostilidad­e das populações. A China é vista como uma aliada do regime e o regime é tido como alheio aos interesses do povo. Temos de novo a fragilidad­e acima mencionada.

Há, no entanto, quem tenha consciênci­a na China destas coisas e saiba que os acordos com regimes de legitimida­de duvidosa têm pés de barro. Alguns centros de estudos já começaram a debater as questões do impacto dos megaprojet­os nas comunidade­s afetadas, na Ásia e em África, bem como a desconexão que existe entre as lideranças políticas nos países anfitriões, que são favoráveis à penetração chinesa, e as populações, que consideram que os seus políticos são os principais beneficiár­ios dos investimen­tos em causa. Tenho ficado surpreendi­do com a franqueza de certas intervençõ­es dos académicos chineses. Uma China monolítica, sim, mas com alguma subtilidad­e de tons.

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