Vamos falar da Bolívia?
Realizam-se amanhã na Bolívia eleições para presidente, vice-presidente, senadores e deputados, convocadas para tentar solucionar o imbróglio causado pela disputa eleitoral ocorrida em 2019 e que levou à renúncia do então presidente Evo Morales. Este último foi o primeiro e único indígena a chegar ao cargo máximo num país da América do Sul, região cujas classes dominantes são herdeiras históricas dos antigos colonizadores. Além disso, Morales pertence ao Movimento ao Socialismo (MAS). Ou seja, duas circunstâncias que, certamente, não são do agrado daqueles que há séculos estavam (e, na generalidade, continuam a estar) no poder.
Acontece que o principal favorito das eleições de amanhã é o candidato do MAS, Luis Arce, ex-ministro e aliado de Evo Morales. O mesmo tem, inclusive, possibilidades de ganhar à primeira volta. Isso assusta os seus adversários, levando dois deles – a presidente interina, Jeanine Áñez, e o ex-presidente Jorge Quiroga – a desistir da corrida. Ambos admitiram que a sua decisão visa tentar evitar a dispersão dos votos da direita, o que reforçaria a hipótese de Arce ser eleito já amanhã. Restam, assim, seis concorrentes, sendo o ex-presidente Carlos Mesa, da aliança da Comunidade dos Cidadãos, o principal oponente de Luis Arce.
Além da sua natural importância local, as eleições na Bolívia têm também importância internacional (regional e mesmo global), à qual a grande imprensa mundial tem dado, estranhamente ou talvez não, pouco relevo.
Internamente, e para resumir, as eleições de amanhã na Bolívia decidirão se as profundas mudanças iniciadas nesse país em 2006, com a primeira vitória de Evo Morales, poderão ser retomadas ou se serão interrompidas. Tais mudanças vinham mudando a face histórica do país, pondo pela primeira vez as necessidades e os interesses das classes mais desfavorecidas, inclusive a maioria indígena, no centro da política nacional.
Mais de 85% da população boliviana – assinale-se – é indígena. Os diferentes grupos índios que habitavam o território boliviano resistiram à colonização espanhola até à última e histórica batalha de Kuruyuki, em janeiro de 1892, em que mais de seis mil guerreiros foram massacrados. Em março desse mesmo ano, foi morto Apiaguaiki Tumpa, o seu último grande líder. A partir daí, os índios bolivianos começaram a ser despojados das suas terras, passando a trabalhar como peões nos latifúndios que foram sendo criados pelos detentores do poder.
Cem anos depois, em 1987, os indígenas retomaram as suas lutas, organizando-se e começando a reivindicar a devolução das suas terras e o exercício dos seus direitos culturais, nomeadamente no plano da educação, da língua e outros. Em 2002, guaranis, quéchuas e aimarás mobilizaram-se para a reforma da Constituição, que não conferia nenhum direito aos cidadãos indígenas. Tal mobilização levou à criação do MAS com Evo Morales à frente.
O MAS esteve perto de ganhar as eleições em 2002, mas conseguiu-o quatro anos depois. Pela primeira vez na história do país, a Bolívia tinha um presidente, deputados, ministros, governadores e outros dirigentes políticos oriundos da sua maioria étnica. Na posse do poder político, o MAS, liderado por Morales, começou a mudar radicalmente a face do país, tomando medidas económicas, sociais, culturais e outras de cunho popular e socializante.
Obviamente, isso não agradou aos “donos” históricos da Bolívia, que, em 2019, tumultuaram as eleições que reelegeram, uma vez mais, Evo Morales, acusando-as de fraudulentas e obrigando o presidente ao exílio. Em um ano, os dirigentes interinos do país começaram a privatizar empresas estratégicas, abandonaram importantes obras de infraestruturas e retomaram a sua tradicional política de discriminação sistemática dos indígenas bolivianos. Será, pois – reitere-se –, que a partir de amanhã o processo de desmantelamento interno das conquistas populares iniciado há um ano será interrompido ou consolidado?
Como escrevi atrás, as eleições bolivianas terão igualmente uma determinada, embora pouco comentada, repercussão internacional, quer regional quer global. Assim, regionalmente, servirão para observar se a tendência de viragem à direita na América Latina será reforçada ou se poderá ser contrariada, tal como sinalizado pela vitória da dupla Fernández-Cristina na Argentina, em 2019. Mas, mais importante ainda, será a sua possível repercussão global.
Por detrás disso está um mineral: lítio. A Bolívia detém as maiores reservas mundiais desse mineral, cada vez mais procurado para ser utilizado nas baterias dos carros elétricos, em computadores e equipamentos industriais. A política de Evo Morales em relação ao lítio era clara: o seu controlo devia permanecer nas mãos do Estado boliviano. Por isso, em julho deste ano, Elon Musk, diretor executivo da Tesla e da Space X, respondeu assim no Twitter a um post sobre o interesse dos Estados Unidos em apeá-lo do poder: “Daremos um golpe em quem quisermos! Lidem com isso.”
É preciso desenhar?