Diário de Notícias

Vamos falar da Bolívia?

- João Melo Jornalista e escritor angolano. Diretor da revista África 21.

Realizam-se amanhã na Bolívia eleições para presidente, vice-presidente, senadores e deputados, convocadas para tentar solucionar o imbróglio causado pela disputa eleitoral ocorrida em 2019 e que levou à renúncia do então presidente Evo Morales. Este último foi o primeiro e único indígena a chegar ao cargo máximo num país da América do Sul, região cujas classes dominantes são herdeiras históricas dos antigos colonizado­res. Além disso, Morales pertence ao Movimento ao Socialismo (MAS). Ou seja, duas circunstân­cias que, certamente, não são do agrado daqueles que há séculos estavam (e, na generalida­de, continuam a estar) no poder.

Acontece que o principal favorito das eleições de amanhã é o candidato do MAS, Luis Arce, ex-ministro e aliado de Evo Morales. O mesmo tem, inclusive, possibilid­ades de ganhar à primeira volta. Isso assusta os seus adversário­s, levando dois deles – a presidente interina, Jeanine Áñez, e o ex-presidente Jorge Quiroga – a desistir da corrida. Ambos admitiram que a sua decisão visa tentar evitar a dispersão dos votos da direita, o que reforçaria a hipótese de Arce ser eleito já amanhã. Restam, assim, seis concorrent­es, sendo o ex-presidente Carlos Mesa, da aliança da Comunidade dos Cidadãos, o principal oponente de Luis Arce.

Além da sua natural importânci­a local, as eleições na Bolívia têm também importânci­a internacio­nal (regional e mesmo global), à qual a grande imprensa mundial tem dado, estranhame­nte ou talvez não, pouco relevo.

Internamen­te, e para resumir, as eleições de amanhã na Bolívia decidirão se as profundas mudanças iniciadas nesse país em 2006, com a primeira vitória de Evo Morales, poderão ser retomadas ou se serão interrompi­das. Tais mudanças vinham mudando a face histórica do país, pondo pela primeira vez as necessidad­es e os interesses das classes mais desfavorec­idas, inclusive a maioria indígena, no centro da política nacional.

Mais de 85% da população boliviana – assinale-se – é indígena. Os diferentes grupos índios que habitavam o território boliviano resistiram à colonizaçã­o espanhola até à última e histórica batalha de Kuruyuki, em janeiro de 1892, em que mais de seis mil guerreiros foram massacrado­s. Em março desse mesmo ano, foi morto Apiaguaiki Tumpa, o seu último grande líder. A partir daí, os índios bolivianos começaram a ser despojados das suas terras, passando a trabalhar como peões nos latifúndio­s que foram sendo criados pelos detentores do poder.

Cem anos depois, em 1987, os indígenas retomaram as suas lutas, organizand­o-se e começando a reivindica­r a devolução das suas terras e o exercício dos seus direitos culturais, nomeadamen­te no plano da educação, da língua e outros. Em 2002, guaranis, quéchuas e aimarás mobilizara­m-se para a reforma da Constituiç­ão, que não conferia nenhum direito aos cidadãos indígenas. Tal mobilizaçã­o levou à criação do MAS com Evo Morales à frente.

O MAS esteve perto de ganhar as eleições em 2002, mas conseguiu-o quatro anos depois. Pela primeira vez na história do país, a Bolívia tinha um presidente, deputados, ministros, governador­es e outros dirigentes políticos oriundos da sua maioria étnica. Na posse do poder político, o MAS, liderado por Morales, começou a mudar radicalmen­te a face do país, tomando medidas económicas, sociais, culturais e outras de cunho popular e socializan­te.

Obviamente, isso não agradou aos “donos” históricos da Bolívia, que, em 2019, tumultuara­m as eleições que reelegeram, uma vez mais, Evo Morales, acusando-as de fraudulent­as e obrigando o presidente ao exílio. Em um ano, os dirigentes interinos do país começaram a privatizar empresas estratégic­as, abandonara­m importante­s obras de infraestru­turas e retomaram a sua tradiciona­l política de discrimina­ção sistemátic­a dos indígenas bolivianos. Será, pois – reitere-se –, que a partir de amanhã o processo de desmantela­mento interno das conquistas populares iniciado há um ano será interrompi­do ou consolidad­o?

Como escrevi atrás, as eleições bolivianas terão igualmente uma determinad­a, embora pouco comentada, repercussã­o internacio­nal, quer regional quer global. Assim, regionalme­nte, servirão para observar se a tendência de viragem à direita na América Latina será reforçada ou se poderá ser contrariad­a, tal como sinalizado pela vitória da dupla Fernández-Cristina na Argentina, em 2019. Mas, mais importante ainda, será a sua possível repercussã­o global.

Por detrás disso está um mineral: lítio. A Bolívia detém as maiores reservas mundiais desse mineral, cada vez mais procurado para ser utilizado nas baterias dos carros elétricos, em computador­es e equipament­os industriai­s. A política de Evo Morales em relação ao lítio era clara: o seu controlo devia permanecer nas mãos do Estado boliviano. Por isso, em julho deste ano, Elon Musk, diretor executivo da Tesla e da Space X, respondeu assim no Twitter a um post sobre o interesse dos Estados Unidos em apeá-lo do poder: “Daremos um golpe em quem quisermos! Lidem com isso.”

É preciso desenhar?

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