Subtexto e cobardia
“Conheço escritores que usam subtexto e todos eles são cobardes”
– Garth Marenghi, visionário
Há precisamente duas coisas interessantes nos nove longos e penosos episódios de The Haunting of Bly Manor (Netflix), a sequela oficiosa ao igualmente desinteressante The Haunting of Hill House, de 2018. A primeira é o modo como utiliza uma paródia involuntária dos mecanismos habituais da série contemporânea (competência técnica, pirotecnia cronológica, lavoura de pistas, subtexto esventrado nos últimos episódios) para reproduzir (mais) uma paródia involuntária daquilo que costuma acontecer na história de fantasmas contemporânea: uma narrativa em que os espectros são predominantemente metafóricos, com um caderno de encargos para ser negociado em concertação social, e que no fim de contas apenas precisam de um abracinho.
A segunda coisa interessante acontece no casting, que destaca para papéis secundários dois emblemas recentes da arte de fazer coisas muito más. Um deles, Greg Sestero, participou numa coisa má acidental (o filme The Room, de 2003); o outro, Matthew Holness, foi o criador e actor principal de uma das melhores coisas deliberadamente más do séc. XXI, a série cómica Garth Marenghi’s Darkplace, exibida no Channel 4 inglês em 2004 e prontamente eclipsada para a esfera dos prazeres de culto.
A paródia acompanha a produção artística mais ou menos desde que um grego anónimo compôs a Batraquiomaquia,
trasladando os heróis e semideuses da Ilíada para uma batalha entre ratos e sapos. No prefácio à antologia The Oxford Book of Parodies, John Gross refuta um pressuposto comum sobre a paródia: o de que, sendo essencialmente um instrumento crítico, funciona melhor quando é motivada por afecto àquilo que é parodiado. Gross sugere – e a sua ampla selecção de exemplos demonstra – que a paródia tanto pode florescer de uma intenção de lisonja como de uma intenção destrutiva, e que talvez as melhores paródias sejam as que surgem dos dois impulsos apenas aparentemente contraditórios: afecto e exasperação. No essencial, a paródia é o ponto culminante de uma trajectória formal; aquilo que acontece quando uma fórmula se consolida e se torna demasiado reconhecível, indepentemente da qualidade dos praticantes. E exige, por inerência, que esse reconhecimento seja partilhado entre criadores e consumidores.
Garth Marenghi’s Darkplace opera em dois níveis distintos, mas ambos exigem uma familiaridade com a má televisão que se fazia nos anos 80. A premissa da série é desenvolvida na linha dos falsos documentários (This Is Spinal Tap e The Office são dois pontos de referência óbvios). O título refere-se a uma série dentro da série, criada por um autor fictício chamado Garth Marenghi, uma combinação de vários trejeitos físicos e biográficos de autores de best-sellers ou outras figuras associadas ao género do terror (há nele algo de Stephen King e James Herbert, mas complementado com o ego, casaco e óculos escuros de William Friedkin, realizador de O Exorcista). A série teria sido feita nos anos 80, mas nunca transmitida – segundo Marenghi, por ser demasiado revolucionária para os padrões da época, tendo assustado os “poderes instituídos”.
Darkplace é um hospital em Romford, Essex, construído em cima de um portal para o Inferno, no qual uma equipa de três médicos e um administrador alternam entre tratar pacientes e combater criaturas monstruosas ou fenómenos paranormais. Na camada exterior, em 2004, cada episódio “redescoberto” é comentado por Marenghi e por outros dois “actores”, Dean Lerner e Todd Rivers (os sempre excelentes Richard Ayoade e Matt Berry), redireccionando a paródia para as convenções dos making of e dos “extras” dos box sets. O pacote completo é desenhado para “ser” aquilo que é o objecto de paródia, e a impostura é incessantemente mantida nos dois níveis.
Produzir incompetência de propósito é mais difícil do que parece, e o que impressiona em Darkplace é a atenção ao pormenor. Mais do que os enredos exorbitantes inventados para o produto primário (mulheres que se transformam em brócolos, etc), a comédia vem sobretudo da manipulação de quase todos os elementos que constituem o acto de fazer televisão. Cada desenvolvimento narrativo é explicado
Garth Marenghi é artista manqué, o génio sem talento, convencido da sua relevância e incapaz de reconhecer que o mundo não partilha as suas ilusões.
da pior maneira possível (alternando entre a redundância e a lacuna), a montagem de som é inepta (há frequentes diálogos entre duas personagens em que as falas parecem ter sido gravadas em duas salas diferentes), a continuidade é inexistente, e a composição dos enquadramentos é sempre transtornante, até nos detalhes mais subtis: a dada altura, durante um close-up simples, a personagem ergue o braço e a câmara dá um ligeiro solavanco para esse lado, antes de retomar a posição original. Tal como na linha de montagem das séries contemporâneas, a textura é total, cada milímetro de ecrã meticulosamente preenchido – aqui para denunciar uma incompetência fictícia.
Alguns espectadores podem perfeitamente reagir a seis episódios disto com alguma fadiga; a desconstrução paródica de maus valores de produção, mesmo feita com génio, tem um alcance limitado e talvez seja um gosto adquirido. O que eleva Darkplace acima do estatuto de paródia superlativa é que, tal como as suas duas influências mais notórias, é também uma comédia de egos. A tradição, na verdade, é mais antiga do que isso; desde as suas origens, o realismo literário sempre gostou de disciplinar a oclusão dos egomaníacos (nada divertia mais Jane Austen, com a possível excepção da hipocondria, do que personagens ridículas inconscientes do seu ridículo). O tal segundo nível de comentário e exegese retrospectiva revela Garth Marenghi como o proverbial artista manqué, o génio sem talento, absolutamente convencido da sua relevância e absolutamente incapaz de reconhecer que o mundo não partilha as suas ilusões. Num dos comentários adicionais ao comentário principal (o DVD da série, estruturalmente, é uma obra de arte), Marenghi ilustra a sua aversão ao subtexto: “O que eu estava a questionar neste episódio era o seguinte: se os políticos continuarem a pagar amendoins aos médicos, os médicos podem literalmente transformar-se em macacos? E nunca ninguém tinha feito essa pergunta.”
Tem, como é óbvio, toda a razão.