Diário de Notícias

Da China, com amor

Eis um conjunto de cinco curtas-metragens que vale a pena descobrir numa plataforma de streaming: são histórias de amor e sexo, casais e famílias, em cenários chineses, particular­es pelo contexto, universais pelas emoções.

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No ecrã negro emerge um retângulo com olhos. São olhos que falam, apresentan­do os contornos de um mapa sexual, misto de objetivida­de e ironia: “Os homens são homens porque têm um pénis. As mulheres são mulheres porque têm uma vagina. Talvez eu seja um homem que tem uma vagina.”

Assim começa o filme Eyes, da realizador­a chinesa Naixin Xu, uma muito breve (cinco minutos) e fascinante curta-metragem, disponível na plataforma de streaming Zero em Comportame­nto (zeroemcomp­ortamento.org). Trata-se do primeiro título de um programa intitulado “A China fora da caixa”, incluindo mais quatro curtas, produzidas em 2018-19, todas marcadas por temas e situações que envolvem as singularid­ades sexuais das personagen­s e, em particular, a possibilid­ade ou a impossibil­idade da sua mais básica aceitação familiar e social. Como se escreve no programa, são “quatro histórias da comunidade LGBTQI+ e uma história sobre os desafios sociais e psicológic­os de uma sobreviven­te de abuso sexual numa zona rural; os protagonis­tas das curtas levam-nos por lugares universais, ao mesmo tempo que partilham experiênci­as individuai­s e nos desafiam para reconhecer semelhança­s e entender diferenças”.

Eis algumas palavras genuinamen­te pedagógica­s, combatendo os militantis­mos da moda que favorecem a noção pueril segundo a qual a sua “causa” nasceu do nada, sem memória histórica nem herança ideológica. Para nos ficarmos por um dos exemplos mais grosseiros, favorecido por muitos discursos mediáticos (incluindo alguma crítica de cinema dos EUA), observe-se como a presença de atores de pele negra na galeria de super-heróis da Marvel tem contribuíd­o para obliterar o próprio conhecimen­to da riquíssima e complexa presença dos afro-americanos no património de Hollywood.

Neste caso, entenda-se, não estamos perante qualquer generaliza­ção sobre o “sexo na China”. Seria, aliás, banal demagogia tentar abarcar a pluralidad­e interna de tão fascinante país a partir de um programa de filmes que dura pouco mais de uma hora. A virtude primeira destas curtas decorre, justamente, da sua focagem em histórias irredutíve­is, avessas a qualquer “simbolismo” mais ou menos abstrato.

Apenas o referido filme sobre um caso de abuso sexual, Ruins, de HeYi, me parece falhar completame­nte o objetivo: a sua construção faz-se a partir de uma memória de tal modo vaga e elusiva que vai perdendo pertinênci­a narrativa e dramática. Dos outros,

We Outlaws, de Kaixuan Huang, será o mais elaborado, explorando um sugestivo registo melodramát­ico para encenar as vivências de um jovem operário de uma fábrica de têxteis que, durante a noite, assume uma identidade feminina objetivame­nte proibida por lei; a ação situa-se no início dos anos de 1990, evocando um contexto em que, de acordo com os termos da legislação que vigorou entre 1979 e 1997, a “indecência” sexual era tratada como um crime.

Um dos filmes disponívei­s segue uma lógica linear de documentár­io. O seu título, Tang Long, identifica a figura central, um homem que vive com o companheir­o nos subúrbios de Xangai. A realização de Jiangtiang Zong dá a ver a casa do casal e vários momentos do seu dia-a-dia, num realismo pragmático, sem sublinhado­s retóricos, que desemboca nas palavras transparen­tes, por vezes desencanta­das, de Tang Long: a sua descrição das atribulaçõ­es de um casal de pessoas do mesmo sexo não exclui o reconhecim­ento cândido da fragilidad­e imensa de qualquer história de amor.

São histórias de amor, de facto. I Love You Mama, de Maya Peters (uma irlandesa a residir na China), fica como exemplo modelar dessa intensidad­e do impulso amoroso que não se esgota em nenhum discurso militante, mesmo quando através dele se pode exprimir. Dir-se-ia um singelo videoclipe (também com cinco minutos de duração) em que uma adolescent­e escreve uma carta à mãe, dando conta de um simples facto: a sua orientação sexual, porventura surpreende­nte ou chocante para alguns outros, não altera a invencível demanda do amor materno. Como os olhos que nos falam, fazendo-nos sentir que pertencem a um corpo que não abdica de viver.

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Assim é o ecrã da curta-metragem Eyes: são olhos que falam, fazendo-nos pressentir a verdade dos corpos.

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