Diário de Notícias

Um Verão mesmo à mão (3)

- Por António Araújo Historiado­r. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

camente na água.”) Depois, tiveram todos um Verão mesmo à mão: passeios ao longo da costa no caíque dos Durrells, o Van Norden, assim baptizado em homenagem a uma das personagen­s de Trópico de Câncer, piquenique­s nos areais de praias semidesért­icas, longas sestas à sombra dos pinheiros antigos, noites quentes, sarracenas, de contemplaç­ão das estrelas na companhia de Theonides, que conhecia os astros e os seus mistérios. Miller recordou-o assim: “Sabia tudo sobre plantas, flores, árvores, rochas, minerais, formas inferiores de vida animal, micróbios, doenças, estrelas, planetas, cometas, e assim por diante. Nunca conheci homem mais culto, e ainda por cima é um santo.”

Em Agosto, o rei regressou de súbito a Atenas e o Exército grego foi mobilizado. A guerra estava por dias. Louisa Durrell, a mãe, já tinha partido para Inglaterra, pois o banco informara-a de que não podia mais garantir as transferên­cias de dinheiro para a Grécia. Larry e Nancy tomaram a dolorosa decisão de se refugiarem na relativa segurança de Atenas. Na última tarde em Kalami, sentaram-se a contemplar o mar à varanda da Casa Branca, enquanto uma enorme massa de nuvens se avolumava na costa da Albânia. De súbito, levantou-se um vento novo, imprevisto e forte, que vergou pinheiros, oliveiras e até os ciprestes das colinas circundant­es. Os filhos de Totsa, o proprietár­io da Casa Branca, choraram incessante­mente ao verem os adultos despedirem-se naquele tom amargo. Só Larry regressari­a, muitos anos depois, em 1966, quando já era um escritor consagrado, falado para o Nobel, e quando o mundo mudara radicalmen­te, por efeito da guerra e de outros movimentos terrestres. Nancy nunca voltou a Corfu.

Na manhã seguinte à partida, tiveram uma discussão tremenda ao pequeno-almoço, em Patras, tão tremenda que o próprio Miller a recorda nas páginas de O Colosso de Maroussi: “Então, desencadeo­u-se uma terrível altercação entre o Durrell e a mulher. Assisti à discussão de mãos atadas, sem poder fazer outra coisa que não fosse ter pena deles do fundo do meu coração. Era uma querela privada, em que a guerra era usada como camuflagem.” Larry já não tinha pudor em insultar e maltratar a mulher em público, à frente dos amigos, e o mal-estar era tal que, com saudades de Kalami, Miller decidiu regressar a Corfu para uma estada solitária de seis semanas.

Foi pouco depois de chegarem a Atenas que Nancy soube que estava grávida. Apesar de não ser imprevista, o timing daquela gravidez não podia ser mais desastroso, com uma guerra declarada entre as maiores potências da Europa e a Itália, e a Grécia prestes a ser arrastada para o conflito. O dinheiro de Nancy começou a escassear e, pela primeira vez em muitos anos, Larry teve de arranjar um emprego. Trabalhou episodicam­ente na embaixada britânica, a sua primeira incursão na diplomacia, onde nos anos vindouros fará carreira e que, em 1957, lhe dará pretexto para a escrita de Esprit de Corps, traduzido entre nós como Cenas da Vida Diplomátic­a. Depois, trabalhou como professor no British Council de Atenas, cidade onde os Durrells fizeram amizades fundas entre a intelectua­lidade local, com destaque para George Katsimbali­s, o escritor, editor e patrono da “geração de 30” que Miller imortaliza­rá como “o colosso de Maroussi”.

Miller regressou a Atenas, vindo de Kalami, e, com o Natal a aproximar-se, ele, Larry e Nancy decidiram fazer uma viagem pela Grécia antes de aquele partir para a América. Por essa altura, receberam uma carta de Corfu, dando-lhes a triste notícia da morte do amado Spiros, o chauffeur e amigo que lhes desvendara os segredos da ilha. O périplo pela Grécia seria desastroso, flagelado pelo mau tempo e pela expectativ­a de guerra. No final da jornada, quando se despediram no porto do Pireu (“A impressão mais forte que me deixou a Grécia foi a de ser um mundo feito à medida do homem”, disse Henry Miller), ela teve o pressentim­ento de que aquela seria a última vez que se viam. Tinha razão: Miller continuou a dar-se e a correspond­er-se com Larry, mas Nancy nunca mais o voltou a ver.

(Continua)

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal