Vinicius por Francisco
E´a glória.Vinicius de Moraes, poeta, letrista da bossa nova, diplomata de carreira, músico – o seu instrumento era o uísque – e irresistível sedutor, acaba de ser citado pelo Papa Francisco na sua nova encíclica, Todos Irmãos, divulgada há alguns dias pelo Vaticano. O texto deVinicius a que o Papa se referiu foi “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. É um trecho do monólogo em meio à letra do Samba da Bênção, que ele e o violonista Baden Powell compuseram em 1962 – uma das primeiras entre as mais de 30 canções que fariam juntos nos dois anos seguintes e que incluíram pequenas obras-primas como Apelo, Consolação, Berimbau, Deixa, Samba em Prelúdio, O Astronauta, Formosa, Amei Tanto e Tempo Feliz. E não sejamos soberbos, mas, se se tivesse dedicado mais a fundo, o Papa acharia outros versos dignos de citação nesses sambas.
Duvida? Eis alguns: “Quem de dentro de si não sai/Vai morrer sem amar ninguém/ O dinheiro de quem não dá/ É o trabalho de quem não tem”, em Berimbau. “O homem que diz ‘sou’ não é/ Porque quem é mesmo é ‘não sou’/ O homem que diz ‘tô’ não está/ Porque ninguém está quando quer”, em Canto de Ossanha. “Se não tivesse o amor/ Se não tivesse essa dor/ E se não tivesse o sofrer/ E se não tivesse o chorar/ Melhor era tudo se acabar”, em Consolação. Todos, em minha opinião, se aplicam à mensagem da necessidade de diálogo entre os povos, as culturas, os sistemas políticos, os modelos económicos e até entre as várias crenças, pregada na encíclica. Pois, se querem saber, tudo isto é Vinicius na veia. Foi um homem que levou a vida propondo a harmonia entre a alta e a baixa cultura, o amor e a paixão – casou-se nove vezes – e até entre Cristo e o seu correspondente no candomblé, Oxalá.
E isso apenas para ficarmos em sua parceria com Baden Powell, que, no começo dos anos 1960, voltara de uma excursão à Bahia, onde descobrira ritmos da capoeira que queria adaptar para uma linguagem moderna. Do encontro entre Baden eVinicius nasceram os “afro-sambas”, um casamento – para alguns, impossível – entre a sofisticada e urbaníssima bossa nova e a gloriosa aspereza do folclore brasileiro. Mas nada era impossível para Baden eVinicius, como eles descobriram ao se trancarem para trabalhar no apartamento em Laranjeiras da mulher com quem o poeta era então casado, Lucinha Proença (Sra.Vinicius n.º 4). Ela era rica, chique – e sábia. Para não perturbar os trabalhos, mudou-se temporariamente para a sua casa em Petrópolis, deixando o apartamento livre para a dupla. E eles não perderam tempo. Das seis da tarde ao nascer do Sol, durante quase três meses, não tiveram outra coisa em mãos senão um violão, um lápis e um copo.
Em 70 ou 80 dias, sem sair à rua e lubrificados por três a quatro garrafas de uísque por noite, eles desovaram 12 sambas com aquele temperamento “primitivo” – na verdade, extremamente complexo –, a que chamaram afro-sambas. Tematicamente, eram homenagens a Ossanha, Xangô, Iemanjá, Exu, o Caboclo Pedra Preta e outras entidades dos cultos negros. E é isto o mais surpreendente no facto de as palavras deVinicius terem sido transcritas por um Papa num documento católico – por terem sido escritas sob a inspiração daqueles cultos, anátema para os conservadores. Mas foi uma citação apenas coerente com o apelo no texto papal a outros credos religiosos, em prol da humanidade, da paz e da justiça social.
E não se diga que, para Baden eVinicius, dois compositores de música dirigida ao mercado, havia gratuitidade nas tinturas, digamos, místicas daquela música. Os dois, à sua maneira, eram místicos. Baden, vagamente católico de origem, como todos os brasileiros da sua geração, interessou-se de verdade pelos cultos afro – ele próprio, de origem afro – e continuou a explorar a sua musicalidade por algum tempo. Quanto aVinicius, católico roxo em jovem, nos anos 1930, o seu misticismo marcou de maneira decisiva a poesia que ele estava começando a praticar. E, em matéria de política, mais ainda – o grupo de que ele fazia parte era de extrema-direita, assumidamente pró-fascismo. Somente dez anos depois, já durante a Segunda Guerra,Vinicius se converteria ao socialismo democrático, de que nunca se afastaria. A sua poesia se despiria de todo o misticismo e seria inundada por um coloquialismo amoroso, ao mesmo tempo romântico e mordaz. E o seu catolicismo se converteria num ateísmo cheio de ternura e saudosismo pelos antigos símbolos – tinha especial carinho por Nossa Senhora Aparecida, que achava “tão bonitinha”.
A surpresa estaria reservada para o fim da vida de ambos. No começo dos anos 1970,Vinicius casou-se com a baiana Gessy Gesse (Sra. Vinicius n.º 7), foi morar na Bahia e, levando às últimas consequências a sua tendência a reinventar-se, aderiu ao candomblé a ponto de quase tornar-se pai-de-santo – e, segundo os relatos, aderiu também a um pansexualismo impensável para os demais poetas da sua geração (a sua vida sexual na Bahia parece ter equivalido às de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes e Augusto Frederico Schmidt, seus colegas de geração, multiplicadas umas pelas outras). Claro que, ao voltar para o Rio, em meados daquela década,Vinicius sossegou e retomou o seu ateísmo suave e pacificado. Baden Powell, ao contrário, anos depois converteu-se fanaticamente a uma seita evangélica e repudiou os afro-sambas, que passaram a representar o “culto ao demónio” – nunca mais os tocou. Mas, então, com Baden eVinicius mortos, os afro-sambas voltaram à vida, trazidos por Philippe Baden-Powell, filho de Baden e também brilhante músico.
O facto é que, se faltava o nihil obstat de uma potência da Igreja para uma possível canonização de Vinicius, a bênção do Papa ao texto do Samba da Bênção significa que não falta mais nada.