Diário de Notícias

“É um risco não aproveitar as farmácias para a vacinação da gripe e da covid-19”

- ANA MAFALDA INÁCIO

É bastonária dos farmacêuti­cos desde 2016. Representa uma classe com mais de 15 mil profission­ais em que 75% são mulheres e 50% estão abaixo dos 40 anos. Na semana em que o Presidente da República recebeu representa­ntes da saúde e que a vacinação da gripe está a pressionar as farmácias, Ana Paula Martins fala ao DN sobre o que está a ser feito, o que deveria ter sido feito e o que a pandemia mostrou que deve mudar.

É na sala de reuniões do antigo edifício da Rua da Sociedade Farmacêuti­ca que Ana Paula Martins nos recebe e explica os projetos que existem para recuperar o edifício recheado de história, à vista assim que se sobe as escadas e se olha para as paredes no corredor preenchida­s com os retratos de quem já passou pelo cargo que agora ocupa, cuja origem remonta a 1835 mas que só foi instituído oficialmen­te em 1972. Ana Paula Martins , de 54 anos, farmacêuti­ca, investigad­ora, professora catedrátic­a, não é a primeira mulher bastonária dos farmacêuti­cos, como o foi Irene Silveira, mas é hoje o rosto de uma classe que clama por mais proximidad­e à comunidade, ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) e por melhores carreiras, porque os farmacêuti­cos estão na farmácia de oficina, nos hospitais, nos laboratóri­os de análises , na investigaç­ão e na indústria farmacêuti­ca,“muitas pessoas nem sabem que há farmacêuti­cos nos hospitais ou em outros sítios”, reconhece, admitindo que há uma parte da classe que “tem sido esquecida”, mesmo estando na linha da frente no combate à covid-19. Por isso diz: “Desperdiça­r o potencial dos farmacêuti­cos não pode ser uma opção na saúde em Portugal.”

Há 2,5 milhões de pessoas para vacinar contra a gripe, se tivermos em conta as que têm mais de 65 anos, doentes crónicos, profission­ais de saúde e lares. As farmácias vão fazer parte da rede de vacinação do SNS?

As farmácias entraram na segunda fase da vacinação, que começou a 19 outubro. A primeira fase foi destinada aos lares e aos profission­ais de saúde, a segunda fase já é para os grupos de risco, para quem tem 65 e mais anos, e é para estes que devem ir as 200 mil doses que recebemos do contingent­e vacinal do SNS. É isto que nós temos acordado com o Ministério da Saúde [MS]. Ou seja, a possibilid­ade de vacinar em todas as farmácias do país que estão disponívei­s para o fazer – há só um ínfimo número, sem expressão geográfica, que não está por falta de condições. Havendo mais de 2,5 milhões de pessoas para vacinar, as 200 mil doses não são poucas para a capacidade das farmácias?

É pouco, sim. Este contingent­e vacinal do SNS (as 200 mil doses) poderia evoluir, mas sabemos à data de hoje que este é o valor que o SNS vai destinar às farmácias. Os dois milhões e meio de doses que temos em Portugal para dar correspond­em aos dois milhões comprados pelas Administra­ções Regionais de Saúde [ARS], que são o contingent­e do Ministério da Saúde, e às 500 mil doses compradas pelas farmácias. Até ao final desta semana, início da próxima, as farmácias contam vacinar cerca de 400 mil pessoas, muitas delas com 65 e mais anos, mas a maior parte são pessoas de outros grupos, que não os de risco, que têm receita e se querem vacinar. Qualquer pessoa que queira ser vacinada na farmácia contra a gripe tem de ter receita? Não. Tem de ter receita se não for do grupo de idade 65 anos ou mais. As outras pessoas terão de ter receita e terão 37% de compartici­pação. Ou seja, neste ano há uma diferença, uma pessoa com 65 anos ou mais não precisa de receita; foi uma forma de simplifica­r o procedimen­to da vacinação, não obrigando as pessoas a contactar com o médico para obterem a receita eletrónica. Como é que vão vacinar todas as pessoas se há farmácias que já não têm doses disponívei­s. Não vai haver um reforço de stock?

Há farmácias nessa situação, porque, no ano passado, tinham cem pessoas inscritas para a vacinação e, neste ano, tiveram 400. Começámos a fazer o agendament­o em agosto e os pedidos que tivemos totalizam 900 mil pessoas, ou seja, 900 mil doses. O contingent­e que as farmácias compraram era de 500 mil doses, juntando a estas as 200 mil do contingent­e do SNS, temos 700 mil, mas mesmo assim não são as 900 mil. No ano passado o contingent­e das farmácias era superior...

No ano passado as farmácias compraram 600 mil doses, neste ano só tivemos 500 mil porque as outras cem mil que potencialm­ente poderiam ter vindo para as farmácias foram integradas no contingent­e do SNS, e as vacinas não são ilimitadas no contingent­e mundial, há limites em relação à produção, que tem uma janela temporal específica.

O aumento dos pedidos tem a ver com a pandemia e com a sensação de que se terá maior proteção. Não era expectável que mais pessoas se quisessem vacinar? Antecipáva­mos que houvesse mais procura nas farmácias, não só pelos idosos mas também por pessoas que não tendo caracterís­ticas de grupo de risco quereriam ser vacinadas. Os mais idosos, quando souberam que poderiam vacinar-se nas farmácias com vacinas do SNS – ou seja, nas mesmas circunstân­cias que nos centros de saúde, gratuitame­nte –, começaram a pedir às suas farmácias que queriam ser vacinados, talvez por considerar­em ser mais prático. Ora tudo isto junto, mais pessoas a quererem vacinar-se e menos doses do que o normal para as farmácias, criou obviamente uma pressão enorme nas farmácias, mas também nas unidades de saúde.

Se o MS tivesse aumentado o contingent­e do SNS a ser dado pelas farmácias, não era uma forma de aliviar as unidades de saúde? Isso está a ser equacionad­o pelo ministério? Não creio. Neste momento, a informação que temos é que o contingent­e de vacinas será de 200 mil para as farmácias vacinarem os mais velhos; acabadas estas vacinas, as pessoas terão de ir ao seu centro de saúde. O MS está a avaliar a capacidade de vacinação no terreno dos centros de saúde, porque há alguns que têm feito uma vacinação absolutame­nte programada e que tem corrido lindamente, e segundo nos foi dito, a vacinação nos centros de saúde está a correr muito bem. Ou seja, o MS não vê neste momento necessidad­e de disponibil­izar mais vacinas para a rede de farmácias, e assim, certamente no início de novembro, as farmácias já não terão vacinas do SNS e as pessoas terão de ir ao seu centro de saúde. Estas 200 mil doses podem aumentar? Poder podem, mas não creio que venha a acontecer, a não ser que o MS sentisse necessidad­e absoluta, com o evoluir da pan

“Se tivéssemos feito a aquisição mais cedo, acredito que teríamos tido mais doses. Houve países que conseguira­m mais 50% do contingent­e em relação ao ano anterior.”

demia, de transferir esta tarefa dos centros de saúde para as farmácias devido às dificuldad­es assistenci­ais e de recursos humanos. Neste momento, as primeiras cem mil já foram entregues e as próximas cem mil serão entregues durante a próxima semana. Já estamos a assegurar a vacinação, mas até ao início da próxima semana esgotamos este contingent­e.

Isto já poderia ter sido equacionad­o, perdemos tempo?

O ministério poderia ter feito logo o que fez os governos de França e da Irlanda. É claro que são escolhas, não quer dizer que estejam certas ou erradas. As escolhas fazem-se para servir as pessoas, mas a França escolheu utilizar desde o primeiro momento as farmácias como um ponto estratégic­o para aliviar as unidades de saúde. Em Portugal, a estratégia não foi essa. Foi de alargament­o dos pontos de vacinação, mas numa complement­aridade com o SNS. Os centros de saúde, e depois em igualdade de circunstân­cias os outros pontos de vacinação, farmácias, os denominado­s pontos Drive Thru e carrinhas dos ACES [Agrupament­os dos Centros de Saúde]. Mas respondend­o à questão, a vacinação em massa durante um período de pandemia exige grande organizaçã­o e planeament­o, e exige escolhas que têm de ser feitas muito tempo antes de a vacinação começar.

E isso não foi feito em Portugal?

Só posso falar pelos farmacêuti­cos, mas a primeira vez que começámos a falar na vacinação na farmácia foi em agosto e setembro, quando o Plano Outuno-Inverno também começou a ser discutido connosco. O processo de aquisição e de distribuiç­ão de vacinas é complexo e exige uma logística enorme. No futuro tem de se começar mais cedo. Qual é a capacidade das farmácias para a vacinação em massa?

A nossa capacidade vai até um milhão de vacinas para o contingent­e do SNS e mais as 500 mil para o nosso contingent­e, que é para vacinar as outras pessoas que não estão nos grupos de risco. Não sei se as farmácias poderiam ter comprado um milhão de vacinas, mas certamente que compraríam­os cerca de 800 a 900 mil. Agora, torna-se mais difícil. Porquê?

Porque estamos a trabalhar em cima do momento. A razão pela qual recebemos só cem mil doses agora não tem que ver apenas com distribuiç­ão, mas com os contingent­es, prazos de entrega, e também da distribuiç­ão que as ARS, que são os compradore­s em nome do Estado português, já tinham em planeament­o. Ou seja, já estavam definidos em contrato e as fábricas tinham de entregar em Portugal, e esses não se conseguira­m modificar porque são processos que se fazem seis meses antes da produção. Para recebermos as primeiras cem mil doses, o MS teve de dizer às ARS que 70% do contingent­e que vinha tinha de ir para as farmácias. Neste momento a pressão é grande...

Volto a dizer que as farmácias estão sob uma grande pressão e os centros de saúde também. Estamos no meio de uma pandemia, há campanhas para as pessoas se vacinarem. Mesmo as que nada têm a ganhar adicionalm­ente com a vacina querem fazê-lo e estão com medo de não terem vacina e de não se vacinarem. A pressão é essa.

E isso não acontecerá?

Vai acontecer. Há pessoas que não pertencem a grupos de risco e que não vão ter vacina para a gripe, porque também já não a teriam nos anos anteriores. Não temos dez milhões de vacinas, nenhum país tem vacinas para todas as pessoas, senão parte do contingent­e europeu terá de vir para Portugal. Se tivéssemos feito a aquisição mais cedo, no primeiro trimestre de 2020, acredito que teríamos tido mais doses. Houve países que conseguira­m mais 50% do contingent­e relativame­nte ao ano anterior. Nós temos cerca de 20%, no início pareceu-me que foi muito bom, mas não é suficiente pela procura que estamos a ter. É natural que agora todos pretendam vacinar-se, há que explicar que havendo escassez, quem tem de efetivamen­te ser priorizado é quem tem maior benefício com a vacinação. Eu não vou fazer, a minha vacina vai servir para uma pessoa mais velha que precise dela ou para um doente risco. Não tenho nenhuma caracterís­tica de risco a não ser profission­al de saúde, mas não estou na linha da frente, porque não exerço farmácia e não vou fazer. As vacinas são para os 2,5 milhões de pessoas dos grupos de risco.

Estes terão a vacina?

Eu diria que sim. O facto de não ter chegado tudo às farmácias nesta semana não quer dizer que não chegue, mas diria também que teríamos de ter comprado mais um milhão de vacinas para as pessoas que já manifestar­am vontade de se vacinar, e para estas, de facto, não temos vacinas.

A medida de integrar as farmácias na rede do SNS para a vacinação em massa contra a gripe e outras situações é para ficar?

Espero que sim. Tudo o que é vacinação em massa, não falo do Plano Nacional deVacinaçã­o, contra a gripe e até contra a covid-19, quando existir, se não for feita de uma maneira diversific­ada, ou seja, se fizermos só através dos centros de saúde e da rede formal, diria que corremos um grande risco. Pela falta de capacidade do SNS?

Não só pela capacidade instalada no SNS, mas também, e em relação às farmácias, pela conveniênc­ia para o utente, para as pessoas não terem de andar quilómetro­s para irem ao centro de saúde apanhar uma vacina, e pela segurança do serviço que prestamos. Portanto, em relação à gripe, tendo em conta o maior número de pessoas que têm de ser vacinadas, sobretudo em anos pandémicos, tendo em conta o período de janela, que é curto, eu diria que é um risco não utilizar as farmácias para a vacinação em massa. Muitos países da Europa e no mundo aumentam hoje a cobertura vacinal, através das farmácias de proximidad­e.

As farmácias estiveram desde o início da pandemia a apoiar o SNS e a distribuiç­ão de medicament­os ao domicílio. Esta rede de distribuiç­ão também vai ficar no futuro. É assim que se deve pensar os cuidados de saúde? Claramente. Aliás, essa é uma das propostas que fizemos para as transforma­ções do SNS. É a proximidad­e que deve acontecer, eu diria que ter uma equipa de profission­ais altamente qualificad­os, como temos nas três mil farmácias deste país, com uma média de três farmacêuti­cos por farmácia, e em que mais de 50% estão abaixo dos 40 anos – é uma das profissões mais jovens a par dos enfermeiro­s –, e desperdiça­r esse potencial não pode ser uma questão de opção na saúde em Portugal. Mas há um caminho a fazer com as autoridade­s e com o SNS para que a articulaçã­o se faça de forma sustentáve­l.

A que caminho se refere?

O caminho que não pode passar só pela compartici­pação do receituári­o, mas também por modelos de contratual­ização de serviços, que podem ser anuais ou bianuais, como já acontece noutros países, por exemplo no Reino Unido. A pandemia veio mostrar que esta situação é inultrapas­sável, as farmácias organizara­m-se de imediato para responder à população e já não vão mudar. Agora, vamos ver como é que quem governa o país – os agentes políticos – aproveita esta capacidade. Nós temo-la e não vamos deixar de a ter, porque as pessoas também reconhecem o nosso trabalho.

O reforço do papel das farmácias no SNS e na comunidade vai implicar mudanças no SNS? É uma meta a atingir e vai implicar alterações no SNS. A questão da vacinação em massa nas farmácias não envolve alterações no SNS, mas a entrega de medicament­os hospitalar­es ao domicílio já implica alterações, do ponto de vista informátic­o e sobretudo de financiame­nto. As farmácias podem fazer mais coisas, mas não podem fazer ilimitadam­ente. Têm de ter uma remuneraçã­o pelos serviços que estão a prestar. No caso da gripe, o valor médio do serviço é de 2,5 a 3 euros. Nunca é abaixo dos dois euros porque obviamente há custos com EPI e de instalação, mas é um valor absolutame­nte compatível. Mesmo assim, há farmácias que não estão a cobrar o serviço quando sabem que os seus doentes são mais pobres e não podem pagar. Não há nenhum dos nossos idosos que fique sem vacinação porque não tem 2,5 euros para pagar. Nunca houve, não vê isso em lado nenhum.

Falávamos de transforma­ções no SNS...

O SNS se não quiser ser o serviço dos pobrezinho­s, se quiser tratar toda a população portuguesa com equidade, tem de olhar para a compartici­pação e o financiame­nto dos serviços, em função das necessidad­es e da cobertura territoria­l. Se há uma ULS que cobre completame­nte a questão da vacinação, admito que não é preciso o serviço de uma farmácia, desde que a mobilidade da população o permita. Se há coroas metropolit­anas com muita dificuldad­e em atingir as coberturas vacinais que quero, tenho de procurar outras formas de atingir essa resposta, com qualidade e segurança. É uma questão pragmática, o SNS tem de ser reforçado porque só uma organizaçã­o planeada, financiada pelos impostos e com um modelo de solidaried­ade no financiame­nto é que consegue garantir a cobertura universal. E não se consegue fazer isto como se fazia há 20 anos.

Porquê, a realidade mudou?

Temos pessoas mais idosas, mais necessidad­es em saúde, mais dificuldad­es na mobilidade. O país é pequeno, mas as distâncias são grandes. Não faz sentido andar 200 quilómetro­s para ir a um hospital buscar um medicament­o que se pode obter na farmácia. Para continuar a existir como garante das situações mais complexas e da cobertura universal, o SNS tem de se socorrer daquilo que é o nosso sistema de saúde, tem de olhar para onde existem vários prestadore­s e aproveitar a sua capacidade. E claramente que as farmácias são um.

Os farmacêuti­cos são importante­s nas farmácias e nos hospitais, onde têm estado na linha da frente da covid-19. Estão a desempenha­r o seu papel?

Estão na linha da frente e segurament­e que têm desempenha­do o seu papel. Apesar de não terem sido eles a tratar os doentes, isso foram os médicos e os enfermeiro­s, os assistente­s operaciona­is, estiveram e estão na linha da frente de retaguarda. Quando começámos com o confinamen­to e restrições de entradas nos hospitais, em março, os farmacêuti­cos hospitalar­es tiveram de redesenhar em menos de 48 horas todos os circuitos dentro da farmácia hospitalar: prepararam soluções alcoólicas para desinfeção, começaram a experiment­ar protocolos terapêutic­os, aumentaram o stock em 20% por causa da reserva nacional, mantiveram os tratamento­s em hospital de dia e, ainda, garantiram a entrega em proximidad­e a quem tinha de ir buscar a medicação aos hospitais. Os farmacêuti­cos hospitalar­es estiveram a montante da linha da frente. Éumaclasse­esquecida...

Tem sido uma classe esquecida, completame­nte. Não há farmacêuti­cos no SNS em número suficiente, por isso andei brava com o Governo para se resolver a situação da carreira farmacêuti­ca hospitalar e a residência. Isso resulta de quê?

Por não perceberem a importânci­a dos farmacêuti­cos dentro do sistema hospitalar. Não é um problema de agora, andamos nissistema to há 20 anos, e não é só uma questão de sensibilid­ade. É uma questão de gestão de prioridade­s de legislatur­a após legislatur­a. Os farmacêuti­cos hospitalar­es são poucos, e mesmo que entrem mais 200 ou 300, nunca serão os suficiente­s para fazerem a pressão necessária e mudar a situação. Costumo dizer: se eles são poucos e têm os resultados que têm, é porque são muito custo-efetivo. Ou seja, cada vez que se coloca um farmacêuti­co num hospital, a rentabilid­ade que dá em termos de sustentabi­lidade para o é grande. Perdemos 20 anos de estruturaç­ão da carreira, de qualificaç­ão dos mais jovens e de reorganiza­ção da farmácia hospitalar, mas estes mesmos 20 anos também os perdemos para o resto no SNS.

Fala do SNS como o caracteriz­a...

O que mais caracteriz­a o nosso SNS nos últimos anos é, paradoxalm­ente, uma enorme resiliênci­a e uma enorme capacidade de integrar a inovação, de encontrar soluções que garantam a cobertura universal, mas temos feito poucas transforma­ções mais disruptiva­s, aquelas em que somos capazes de dizer “Hoje, já não é disto que precisamos, hoje precisamos de uma rede de cuidados primários muito forte e de reinvestir em instalaçõe­s e equipament­o hospitalar que nos últimos 20 anos se tornou obsoleto. Hoje, o que temos já não serve, temos de olhar para a periferia, para os cuidados de proximidad­e, domiciliár­ios” Acho que isto é um conceito disruptivo, é o repensar o sistema, e não temos sido capazes de o fazer. Esta é também a razão pela qual a farmácia hospitalar não tem sido estimulada e desafiada para este movimento transforma­dor.

A pandemia vai fazer repensar o sistema?

A pandemia tornou isto inultrapas­sável. No início estava convencida de que estas transforma­ções seriam um processo rápido, achei que depois do que vivemos era impossível estarmos dois a três anos à espera para fazer mudanças, mas hoje acho que, afinal, vamos levar algum tempo. Aconteceu agora com a vacinação. E nós, farmacêuti­cos, estamos preocupado­s com isso, estamos a perder tempo. Foi o que disse ao Presidente da República, a nossa perspetiva da realidade e a urgência nacional de algumas medidas para se responder à segunda vaga da pandemia sem fechar o país, como o reforço das equipas de saúde pública, recuperaçã­o dos doentes não covid, que estão a ficar muito doentes e sem assistênci­a, e um apoio efetivo aos lares que necessitam. Mas também lhe levei o nosso compromiss­o, aquilo que somos capazes de fazer, e que esta transforma­ção tem de continuar a ser acarinhada pelo Estado.

Como farmacêuti­ca e investigad­ora, o que a assusta mais em relação à pandemia? Assusta-me a perceção que as pessoas têm de que vamos encontrar uma vacina rapidament­e para a covid, que sabemos as condições em que vai ser produzida e que vamos ser capazes de chegar a toda a gente que se quer vacinar. Esta perceção de que vamos conseguir resolver de uma forma mágica o contacto e o convívio com o vírus que só identificá­mos em janeiro assusta-me. Quando as expectativ­as sobem muito e depois percebemos que não é exatamente assim, desconfiam­os. E desconfiam­os das autoridade­s de saúde, da indústria farmacêuti­ca. A verdade é que nunca vivemos uma pandemia como esta. Estamos a aprender em conjunto, há situações muito dolorosas que vão ficar para as novas gerações e que só daqui a muitos anos perceberem­os os seus efeitos. Tudo isto vai ser muito pesado, mas já houve alguma pandemia que não tenha sido pesada na história da humanidade?

O que é que a surpreende? Surpreende-me que as nossas sociedades avançadas e industrial­izadas não tenham conseguido ter um nível de resposta e de preparação para esta situação mais eficaz. Esta pandemia é sodómica, tem efeitos sociais devastador­es. Recoloca a nossa reflexão futura sobre o impacto que a saúde tem na economia e que a desigualda­de e a pobreza são efetivamen­te vulnerabil­idades que afetam a sociedade como um todo.

“Se o SNS não quiser ser o serviço dos pobrezinho­s, se quiser tratar toda a população portuguesa com equidade, tem de olhar para a compartici­pação e o financiame­nto dos serviços em função das necessidad­es e da cobertura territoria­l.”

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal