Diário de Notícias

Violação da tolerância e da paz

- Adriano Moreira

Não obstante a dimensão do atentado contra as Torres Gémeas, que levou o presidente dos EUA a declarar ser tarde para os homens e demorado para Deus, naturalmen­te pensando na substituiç­ão do conflito entre muçulmanos e ocidentais, confirmado agora pelo brutal assassínio do professor Samuel Paty, mestre de História, em Bois d’Aulne, decapitado por um estudante, “selvaticam­ente atacado quando entrava provavelme­nte na sua casa a pé”, segundo a confirmaçã­o de um polícia que estava perto da prática do crime. O executante, de 18 anos, foi morto, quando tentava fugir, pelo polícia, gritando “Allahu Akbar”. O motivo do atentado seria castigar o professor por ter exibido uma pretensa imagem do “profeta dos muçulmanos”.

Os periódicos informam que “uma mensagem de reivindica­ção foi publicada alguns minutos depois no Twitter, com uma fotografia da cabeça cortada”. Os conflitos que se multiplica­m, com dimensões penosas diferentes quanto às mortes e às destruiçõe­s, juntam-se na demonstraç­ão de que é a “tolerância e a paz” que continuam a ser violadas.

Em 2004, Hans Küng, no seu Der Islam, escreveu: “As opções são claras: ou a rivalidade entre religiões, ou o choque d e civilizaçõ­es, ou a guerra entre nações, ou um diálogo de civilizaçã­o e paz entre religiões e as nações. Confrontad­o com uma ameaça letal para toda a humanidade, não deveríamos nós derrubar as muralhas do preconceit­o, pedra sobre pedra, e exigir pontes de diálogo, incluindo pontes com o islão, em vez de levantarmo­s novas barreiras de ódio, vingança e hostilidad­es?”. Na tradução portuguesa (2017, Almedina) adotou, para afirmar “a situação religiosa da época”, esta conclusão, antes de abrir o texto: “Não há paz entre as nações sem paz entre as religiões; não há paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões; não há diálogo entre as religiões sem pesquisa da base nas religiões.”

Por comodidade, poder-se-ia admitir que o chamado projeto grandioso de D. Manuel refere outros golpes. Em 1515 o seu exército em Marrocos,

o berço de um movimento convergent­e de ataque contra o mundo islâmico, sofrera uma derrota pesada. Neste século sem bússola, o ataque global vem de uma força que tem mais causa na desordem secular imposta à exploração do planeta, fazendo compreende­r, lenta e dolorosame­nte, que toda a organizaçã­o política mundial vai ter de ser recriada. O islâmico Conselho Global para a Tolerância e Paz, não obstante ter separadame­nte crescido entre os diferentes domínios dos valores éticos e religiosos, procura conseguir articular-se com os ocidentais.

A primeira manifestaç­ão que nesta área se internacio­nalizou foi a Mensagem de Assis, independen­te da ordem jurídica hoje enfraqueci­da da ONU, mas inspirada e fortalecid­a por João Paulo I, e não esquecida pelo Papa Francisco, que os cardeais foram buscar ao fim do mundo. Na sede da ONU existia uma sala criada pelo inesquecív­el secretário-geral Hammarskjö­ld, chamada uma sala de reflexões para todas as religiões. Entretanto não foi acolhida a ideia de ali se realizar um Conselho das Religiões, que segurament­e responderi­a à convicção de Hans Küng. Por outro lado, destacando-se das violências, o Global Council for Tolerance and Peace, com o objetivo de promover os valores da tolerância e da paz, agindo contra as discrimina­ções raciais, religiosas, fraturante­s do género humano, procura desenvolve­r o direito internacio­nal fortalecen­do os princípios da segurança para alcançar a paz; é presidido por Ahmad Aljarwan, com o fim de auxiliar a realização dos objetivos da Carta da ONU, adotando os princípios da democracia, e tem o Parlamento para a Tolerância e Paz, reuniões programada­s (incluindo portuguese­s) com representa­ção de 60 países.

Na Declaração de Tirana, de 2018, declarou-se que escolher os valores da tolerância é o dever dos membros do Parlamento, porque devem “conseguir o desenvolvi­mento sustentado e desenvolve­r os objetivos que desafiam o globo ajudando à criação de um melhor e sustentáve­l futuro para todos”. Numa das suas últimas intervençõ­es, o presidente da “America First” afirmou que o sábio Anthony Fauci, com retrato na Casa Branca, e diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosa­s, é um idiota que o fatiga. Uma expressão para a qual não se pode ter tolerância.

Mas movimentos com o dever assumido de reorganiza­r a justiça natural devem conseguir fazer desaparece­r este afeto pelo Estado espetáculo. O século sem bússola que está a cair em crise global da ordem internacio­nal, iniciou-se com a separação geralmente assumida entre a Igreja e o Estado. Mas isso não impediu que, sobretudo depois do fim da Guerra Fria, alguns dos conflitos armados fossem marcados por valores religiosos. É tempo de conciliar as diferenças, nas religiões, ou na falta de fé, no valor comum da paz.

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