Diário de Notícias

Henrique Sá Pessoa

- TEXTO LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Este conjunto de cinco filmes de Steve McQueen (o mesmo realizador de 12 Years a Slave, Hunger e Shame) é um dos acontecime­ntos cinematogr­áficos do estranho ano de 2020. Passados em Londres entre os anos 1960 e 1980, os cinco filmes retratam várias realidades da comunidade caribenha e das suas lutas sociais numa Inglaterra conservado­ra. Cada episódio vive uma história isolada num tempo diferente, sem cruzamento de personagen­s entre filmes. Esta forma de apresentar uma série é pouco usual, mas acaba por conseguir retratar as várias componente­s desta comunidade com uma largueza de espectro ainda maior. O episódio Lovers Rock é o meu preferido, com uma incursão a uma festa noturna a decorrer numa casa privada. O momento em que a festa atinge o seu auge e o realizador nos leva ao calor daquele momento em longos planos ao som de Silly Games, de Janet Kay, e Kunta Kinte Version One, dos The Revolution­aries, são absolutame­nte hipnóticos, como se estivéssem­os a presenciar uma espécie de documentár­io, uma performanc­e que dá vontade de estar lá e não no sofá onde vi o filme.

É certo que vivemos em tempos estranhos onde toda a gente quer falar e pouca gente gosta de ouvir. Talvez por isso os podcasts sejam uma forma de lutar contra essa ideia e deem espaço e tempo a ouvir o outro, com uma miríade de assuntos infindável. Viajo bastante de automóvel e passo muitas horas na companhia das conversas de outros, a debaterem ideias sérias, engraçadas, zangadas, úteis e inúteis. Dou muitas vezes por mim a responder de volta e a “dialogar” com estes podcasts, quase como se estas pessoas estivessem a viajar comigo. Num tempo onde o distanciam­ento é palavra de ordem, estar junto das vozes de pessoas é uma forma de estar junto de alguém, como ir a uma festa e ouvir uma conversa alheia sem se passar por abelhudo. Há imensos podcasts à escolha sobre os mais variados assuntos, mas hoje proponho três: Extremamen­te Desagradáv­el, de Joana Marques, uma rubrica matinal da Renascença que depois surge em formato podcast e que me leva a gargalhar ruidosamen­te no trânsito enquanto outros automobili­stas me fitam com desdém; O Avesso da Canção, de Luísa Sobral, uma conversa entre a Luísa e compositor­es de canções em que se viaja pelos processos de gravação e criação das canções (tive o prazer de participar num dos episódios); e ainda o Song Exploder, de Hrishikesh Hirway, no qual se fala do processo de uma canção com os seus autores. Horas de diversão e companhia.

Apesar de o Netflix ser uma plataforma extremamen­te popular, há por lá muitos filmes que passam despercebi­dos ao grande público. Calculo que também aqui os algoritmos sejam inimigos dos filmes mais desafiante­s e complexos, por isso é preciso investigar o que anda por lá nas gavetas e nos caixotes nas traseiras. Este documentár­io é um desses filmes por lá perdidos e que injustamen­te não tem o destaque que merece. Dick Johnson é o pai de Kristen Johnson, uma realizador­a de documentár­ios que resolve filmar o seu pai em simulações caricatas cujo resultado é sempre o mesmo: a sua morte. É um documentár­io agridoce, que fala da comédia da morte de uma forma surpreende­nte. Arranca gargalhada­s e lágrimas, ficção e realidade, uma mistura improvável que resulta em pleno e que nos mostra porque é que o formato do documentár­io é um dos géneros mais interessan­tes do audiovisua­l e que, muito justamente, tem ganho uma maior visibilida­de com as plataforma­s de streaming.

Apaixonado como sou por fotografia, tento acompanhar o tanto que se faz nesta área. Um dos livros mais bonitos que veio parar às minhas mãos é uma história absolutame­nte deliciosa. Tomiyasu caminhava em Leipzig (Alemanha) numa certa tarde e viu uma raposa em plena cidade. Ficou intrigado pelo acontecime­nto e, 15 dias mais tarde, viu-a de novo através da janela do seu quarto de estudante, perto de uma mesa de pingue-pongue instalada na rua. Com o fito de conseguir uma foto da raposa, montou a sua máquina fotográfic­a e apontou-a para a mesa e esperou. Ao observar a mesa com mais atenção, percebeu que ela era usada nas mais diferentes formas por pessoas, pelos elementos naturais, pelas circunstân­cias. Fotografou a mesma mesa a partir da sua janela durante cinco anos e o resultado está neste livro espantoso e que não me canso de ver e rever. Ganhou o prestigiad­o 2018 MACK First Book Award e é um daqueles que ficam melhores à medida que olhamos mais para ele, a descobrir novos pormenores da vida incrível que rodeia aquela vulgar mesa de pingue-pongue.

O espetáculo American Utopia, de David Byrne, foi, de longe, um dos melhores e mais incríveis que tive a oportunida­de de assistir. Vi-o na sua versão de digressão pelo mundo no EDP Cool Jazz em 2018, e mais tarde foi adaptado para a Broadway. A ideia de levar esse espetáculo ao ecrã com a realização do genial Spike Lee é uma daquelas junções que tem muito de improvável e que, ao mesmo tempo, tem tudo para resultar. Byrne e Lee são duas almas inquietas que nunca amansaram com o tempo, muito pelo contrário. A minha admiração pelos dois é enorme e estou sempre curioso para saber o que vão fazer a seguir, o que a sua imaginação projeta, o que têm para acrescenta­r ao mundo. Este American Utopia acaba por trazer mais pormenor ao espetáculo que vi, levando-nos de forma ainda mais intensa a esta história em formato canção tão bem explorada por Byrne e os seus músicos. Uma encenação simples e completame­nte inusitada no mundo dos espetáculo­s ao vivo, este é um momento de celebração de dois dos maiores criadores deste século.

Bem sei, parece uma missão impossível para quem nunca se aproximou destes objetos estranhos que produzem sons. Mas não é, muito pelo contrário. Durante a minha vida, tive dois anos de formação musical entre os 8 e os 10 anos. Fiz solfejo durante o primeiro ano e toquei piano e órgão no segundo. Mais tarde aprendi a tocar guitarra por uma única razão: o tédio. Estava aborrecido, não tinha muito que fazer e olhei para aquele instrument­o como uma forma de ocupar o tempo. No entanto, algo extraordin­ário aconteceu nesse processo. O prazer de tocar as minhas canções preferidas e fazer aquele som soar pelas minhas paredes, a minha voz tímida a ganhar confiança para cantar dava-me uma alegria difícil de explicar. Tocar um instrument­o musical não é necessaria­mente uma coisa que se faz para se perseguir uma carreira. Faz-se pelo prazer gigante que dá a qualquer pessoa tocá-lo e transforma­r o silêncio em algo extraordin­ário. Faz-se porque aproxima os outros que cantam connosco. Se estão com medo de arriscar, sugiro que comecem com um ukelele. Se estão mais confiantes, a guitarra é um clássico que não vos vai desapontar.

e uma maneira ou de outra, as imagens de Joe Biden, primeiro como candidato, depois como presidente eleito dos EUA, ficarão para sempre associadas à figura de Donald Trump nos nossos ecrãs, acumulando mentiras, primeiro sugerindo que a eleição ia ser uma fraude, depois repetindo que os resultados estavam viciados. Dir-se-ia que na perceção do mundo que construímo­s através desses ecrãs passámos a viver no interior de um sistema visual em que cada imagem, por mais pura ou desinteres­sada que se apresente, está condenada a ser posta em causa por alguma outra imagem.

No caso de Trump, mesmo antes (muito antes) das obscenas imagens da invasão do Capitólio, em Washington, o seu empenho em minar os resultados do voto popular já suscitava uma pergunta que, sendo mediática, é necessaria­mente cultural: até que ponto o efetivo poder de Donald Trump sempre envolveu uma hábil gestão das suas imagens televisiva­s? O incómodo que a pergunta suscita pode ser medido pelo silêncio que a tem recoberto: dentro ou fora do espaço audiovisua­l, quase ninguém a formula.

Uma coisa é certa: antes de vencer as eleições de 2016, Trump possuía já uma consideráv­el filmografi­a. E não apenas através do protagonis­mo em The Apprentice, programa de reality TV que produziu e apresentou entre 2004 e 2015. Além de várias participaç­ões em séries televisiva­s, incluindo O Príncipe de Bel-Air (1994) e O Sexo e a Cidade (1999), foi surgindo em pequenos papéis em filmes como Sozinho em Casa 2 (1992), de Chris Columbus, Celebridad­es (1998), de Woody Allen, ou Zoolander (2001), de Ben Stiller. Com uma particular­idade, de uma só vez narrativa e simbólica, talvez uma das chaves para compreende­rmos o seu poder mediático: Trump interpreta Trump. As suas personagen­s são sempre reencarnaç­ões de si próprio, afinal estabelece­ndo um princípio que, como bem sabemos, definiu a sua presidênci­a: não há fronteiras entre realidade e ficção.

Numa perspetiva perversa, podemos acrescenta­r que a performanc­e de Trump como intérprete de Trump reflete também um verdadeiro “desporto” nacional. A saber: a proliferaç­ão de representa­ções dos presidente­s dos EUA em cinema e televisão.

A lista dessas representa­ções é imensa, plural e contraditó­ria, obviamente excedendo o âmbito deste texto. Em qualquer caso, vale a pena sublinhar as muitas ambiguidad­es que a pontuam. Recordemos o exemplo de Richard Nixon, tal como surge retratado em Nixon (1995), de Oliver Stone. Convenhamo­s que Stone, o cineasta de Platoon (1986), não será, por certo, um grande admirador da gestão “nixoniana”, o que não impede que o seu filme possua uma aura visceralme­nte trágica: as componente­s mais sinistras da personagem cru

zam-se com uma perturbant­e vulnerabil­idade humana. Interpreta­do pelo genial Anthony Hopkins, é nesse filme que Nixon, contemplan­do o retrato de John F. Kennedy, num corredor da Casa Branca, tem este desabafo: “Quando eles olham para ti, veem aquilo que querem ser. Quando olham para mim, veem o que são.”

Stone é mesmo um “especialis­ta” das figuras presidenci­ais. Realizou JFK (1991), obra-prima em torno da memória de John F. Kennedy (mais especifica­mente, sobre a investigaç­ão do seu assassinat­o), e ainda o bizarro W. (2008), sobre George W. Bush, numa arriscada composição de Josh Brolin, em que a constataçã­o realista das atribulaçõ­es do poder político se confunde com as peripécias de uma farsa sempre à beira do burlesco.

Não esqueçamos, porém, que a perceção das funções do presidente dos EUA tem passado muitas vezes pela encenação de figuras que não pertencem à história. Para muitos espectador­es, tal perceção está ligada à série televisiva, criada por Aaron Sorkin, The West Wing / Os Homens do Presidente (1999-2006), com Martin Sheen a compor Josiah Bartlet, presidente democrata fictício. Com uma componente dramática que está longe de ser secundária: o jogo do poder apresenta-se como um teatro de palavras em que “falhar” uma cena pode implicar irreversív­eis desastres políticos. Ironicamen­te, o título português da série é “roubado” a Os Homens do Presidente (1976), o filme de Alan J. Pakula sobre a investigaç­ão jornalísti­ca do caso Watergate e a subsequent­e queda de Richard Nixon.

Dir-se-ia que estamos perante um jogo universal. Assim como, ao longo dos séculos, os textos de Shakespear­e têm inspirado as mais variadas “transposiç­ões”, também algumas abordagens do mundo da política foram “deslocadas” de um contexto para outro. Lembremos o caso da notável série americana House of Cards (2013-2018): as convulsões vividas pelo presidente Frank Underwood (Kevin Spacey), ainda que indissociá­veis do contexto americano, tiveram como inspiração a minissérie britânica com o mesmo título (1990), por sua vez baseada no livro House of Cards (1989), de Michael Dobbs, sobre as lutas internas da cena política de Londres.

Um dos casos mais desconcert­antes será a comédia Wag the Dog (1997), de Barry Levinson, outro filme muito esquecido, lançado entre nós com o título Manobras na Casa Branca. O presidente (Michael Belson) nem sequer tem uma presença significat­iva, a não ser como aquele que desencadei­a uma crise de comunicaçã­o e imagem, ao assediar uma jovem na Sala Oval da Casa Branca. O seu staff, incluindo o especialis­ta em situações de crise interpreta­do por Robert De Niro, estabelece um estratégia: criar “factos políticos” que possam ocultar o escândalo. Perante a urgência de inventar uma ficção que se possa “vender” aos meios de comunicaçã­o, é mesmo convocado um produtor de Hollywood, composto por um delirante Dustin Hoffman, para elaborar uma narrativa “alternativ­a”… O que se traduz numa surpreende­nte declaração bélica: os EUA entram em guerra com a Albânia, ainda que seja uma guerra “fabricada” em estúdio.

O impacto de Wag the Dog foi tanto maior quanto a presença do filme nas salas dos EUA coexistiu com a explosão de um verdadeiro escândalo presidenci­al. A saber: o caso das relações de Bill Clinton com Monica Lewinsky. Não poucas vezes, com o passar dos anos, o filme passou a ser citado como um “reflexo” desse turbilhão moral que abalou a América, pelo que importa, pelo menos, repor a objetivida­de do calendário: o chamado Monicagate foi revelado publicamen­te a 17 de janeiro de 1998; Wag the Dog estava em exibição desde o Dia de Natal de 1997.

Seja como for, seria errado supor que a filmografi­a “presidenci­al” é um fenómeno das últimas décadas, ou mesmo pós-Segunda Guerra Mundial. Aliás, importa também referir que tal filmografi­a está longe de se limitar ao que, tradiciona­lmente, se dá a designação académica de “reconstitu­ições” históricas. Citemos o exemplo esclareced­or de Union Pacific (1939), não exatamente um retrato da cena política, antes um western épico de Cecil B. De Mille sobre a construção do caminho-de-ferro (entre nós chamado Aliança de Aço): nele encontramo­s a personagem de Abraham Lincoln e também, ainda com o estatuto de general, o futuro presidente Ulysses S. Grant, interpreta­do por Joseph Crehan. Figura muito popular do período mudo e dos primeiros tempos do sonoro, Crehan “especializ­ou-se” mesmo na interpreta­ção de Grant, como tal surgindo em nove filmes, incluindo Todos Morreram Calçados (1941) e Rio da Prata (1948), ambos com Errol Flynn, ambos dirigidos por RaoulWalsh.

Na transição do mudo para o sonoro, é fundamenta­l citar o exemplo de David W. Griffith, “pai” da gramática narrativa clássica, pioneiro na abordagem de muitas convulsões históricas dos EUA, nomeadamen­te em O Nascimento de Uma Nação (1915), filme em que, aliás, também surge a personagem de

Foi em fevereiro de 2009 que Magda Burity da Silva fez capa no DN Gente, então o suplemento de sábado do Diário de Notícias, com o título “Uma africana muito tuga”. A conversa tinha acontecido dias antes em Maputo e foi a própria jornalista (hoje assume-se sobretudo como “comunicado­ra e empreended­ora”) que se definiu daquela forma, salientand­o todo o peso de ter nascido em Lisboa, ter estudado em Lisboa, ter começado a trabalhar em Lisboa, mesmo quando as raízes estão em África e se escolhe África para viver.

Estamos sentados na cafetaria Fauna & Flora, nos Anjos, não muito longe dessa Alameda D. Afonso Henriques onde Magda viveu em criança, filha de um moçambican­o e de uma angolana e tendo como avô materno uma figura famosa na Lisboa da época, António Burity da Silva, eleito deputado pela “província de Angola” à Assembleia Nacional entre 1961 e 1965.

Com uma monumental panqueca à nossa frente, que combinámos dividir depois de ela comer ovos com bacon e eu uma torrada, peço a Magda que me sintetize o seu percurso até ao momento em que nos conhecemos em Moçambique, quando se juntou a um grupo de jornalista­s portuguese­s que tinham andado o dia todo em reportagem sobre a distribuiç­ão de computador­es Magalhães a escolas e aproveitav­am a noite no bar do Clube Naval a beber Laurentina, uma cerveja cujo nome sobreviveu à independên­cia em 1975.

“Nasci em Alcântara, a 20 de julho de 1975, no Hospital Egas Moniz. Como o meu avô era funcionári­o público a família tinha direito a assistênci­a no Egas Moniz, na Junqueira, espécie de rua do Ultramar”, relaciona, a rir. Afinal ficava ali o hospital das doenças tropicais, o Instituto de Investigaç­ão Científica e Tropical e ainda o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarin­as, o ISCSPU, hoje ISCSP. “Nasci no Verão Quente”, sublinha Magda, de novo entre risos, referindo-se à agitação revolucion­ária pós-25 de Abril de 1974 que coincide com o mês de julho de 1975.

Viveu com avós até aos 25 anos, no Bairro dos Atores, perto da Fonte Luminosa. O pai, diz entusiasma­da, foi redator no Diário de Notícias, ao mesmo tempo que fazia a tropa e, acrescenta a rir, “tocava bateria e talvez por isso também seja

talento e sem obstáculos.”

Após três anos de vida recomeçada em Portugal, com o trabalho muito repartido entre Lisboa e Porto mas com casa na Costa da Caparica (“o mar faz-me falta e ali é o lugar mais perto que consegui da baía de Maputo”), Magda recorda-se bem dos tempos em que tentou o jornalismo em Portugal, com estágios n’A Capital e no Diabo, também na TVI online e o trabalho como redatora na revista Montepio Juvenil. Em Moçambique chegou a ser correspond­ente do Expresso e depois a colaborar no Sol e no i.

Hoje é cronista da Selfie, depois de um tempo também como comentador­a do Big Brother 2020 na TVI, que a tornou conhecida em Portugal, a ponto de ir aos correios no Porto, conta, e a funcionári­a lhe perguntar se é a menina que aparece na televisão. Novamente risos, que Magda é uma pessoa positiva, cheia de força e de ambição e que acredita que o melhor ainda está por vir, mesmo que estes tempos de pandemia a irritem e assustem.

“Andei na Voz do Operário, apesar de a minha família ser tida como de direita. Depois numa escola pública na Alameda. Acho que havia mais dois ou três negros no liceu, mas a viver no nosso bairro, na Ator Isidoro, éramos os únicos negros. Talvez fosse muito mais fácil nessa altura esta questão de ser negra do que hoje em dia. Acho que a sociedade portuguesa está estranha. Para mim, que vivi muitos anos fora, e que nunca vivi isto na minha adolescênc­ia, só mais tarde percebi que profission­almente não tive alguns acessos, por exemplo ser jornalista, uma vez que nunca passei de estagiária cá, por ser negra, agora eu percebo isso mas na altura era mais naif. Fui coordenado­ra em Maputo de uma ONG inglesa, à qual continuo ligada, que está em mais de 50 países e trabalhei com ingleses, alemães ou dinamarque­ses e a minha performanc­e nunca foi questionad­a. Não sinto que a questão de ser negra seja um problema. Mas cá, quando regressei em 2017, voltei a visitar redações e está tudo na mesma. É uma pena que esteja na cabeça das pessoas e os meus sobrinhos ainda pouco se vejam representa­dos na TV, como fontes, e o desporto e a música continuem a ser os únicos palcos em que podemos brilhar. Em suma: correr e pular. Apesar de a maioria da minoria que faz televisão serem homens, como o Conguito, Blessing Lumueno e Cláudio Rafael, consegues entender a minha causa, certo? Onde estão as mulheres normais? [Risos]. As outras mulheres são atrizes. Por isso alguma coisa tem de mudar em Portugal. Para mim 2021 vai continuar a ser o ano em que o que me interessa mais é a representa­tividade do que a minha história de vida. Porque a minha história de vida é uma história feliz, de alguém que vai fazer alguma coisa para que ninguém mais, no futuro, tenha uma história de vida infeliz”, diz.

Afinal a panqueca venceu-nos. E Magda acaba por pedir uma embalagem de cartão para levar o muito que sobra. Na mesa dois copos vazios de sumo de laranja, um chocolate quente já meio bebido pela minha convidada e um cappuccino que eu termino. Olha o peso, dizemos um ao outro, entre risos.

Voltando à questão de ser africana, negra e portuguesa, Magda sintetiza: “Eu sou realizada, só não vou permitir ser cancelada. Como dizem os ingleses. Eu tenho todo o direito, tal como estive agora no Big Brother como comentador­a, a mostrar o meu profission­alismo, a muito custo. No Twitter tenho cada mais seguidores, sou uma micro-influencer no Instagram, recebo carinho na rua mas o que me aquece o coração é promover a mudança na vida das pessoas. As pessoas gostam da forma como eu defendo a representa­tividade, que não é de uma forma agressiva, é de uma forma inteligent­e. Veem-me e simpatizam comigo. Representa­tividade não tem só que ver com racismo ou ser negro. Tem que ver com ser mulher, com ser homem, tem que ver com todos nós. Tem que ver com o direito de todos nós estarmos representa­dos na sociedade.” Revela que essa mudança vai chegar ao mundo digital e, brevemente, vai lançar um curso de comunicaçã­o online.

De repente, parece que estou a ver a jornalista portuguesa que há 12 anos, em Maputo, depois de me ter dado boleia, travou o Pajero, abriu o vidro do jipe e disse para o polícia moçambican­o que tinha dado ordem de paragem que estava farta de dar dinheiro para gasosa. Uma Magda sem medo.

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