Diário de Notícias

Teletrabal­ho: pensar e regular

- Assunção Cristas

Há muito tempo sou defensora do teletrabal­ho como uma forma relevante e positiva de organizaçã­o atual do trabalho. Encontrava-lhe e encontro vantagens múltiplas como a melhoria da conciliaçã­o trabalho-família, a possibilid­ade de ocupar o território de forma mais equilibrad­a, promovendo a fixação fora dos grandes centros urbanos, ou a supressão de deslocaçõe­s, com eficácia na gestão do tempo e impacto positivo no ambiente. Porém, sempre entendi que o centro da opção pelo teletrabal­ho deveria estar no trabalhado­r e na forma como este modo de trabalhar se ajusta ou não às suas condições e circunstân­cias de vida muito concretas. Mesmo em tempo de normalidad­e, sem crianças com aulas à distância, a natureza das pessoas e a dinâmica própria de cada casa pode favorecer ou desaconsel­har o teletrabal­ho.

Por outro lado, o risco da inexistênc­ia de corte entre o tempo do trabalho e o tempo do descanso, da família e do lazer, pode comportar efeitos muito negativos para o equilíbrio e a saúde das pessoas, em particular a saúde mental. Esta questão já se colocava a propósito do uso das tecnologia­s e suscitava questões como o direito ao desligamen­to, com legislação aprovada em vários países. Hoje torna-se especialme­nte premente quando o modo crescente de trabalhar passa a ser o teletrabal­ho e a transforma­ção digital ainda tem muito pela frente.

O teletrabal­ho entrou na vida da maioria das pessoas como uma imposição, consequênc­ia do drama da pandemia e ferramenta indispensá­vel para a ajudar a debelar, não como uma escolha. Se o mundo digital já proporcion­ava cada vez mais oportunida­des de trabalho à distância, e muitos já trabalhava­m em casa, pelo menos parcialmen­te, para maioria das pessoas foi uma novidade: dos professore­s dos vários graus de ensino aos funcionári­os públicos em geral, dos bancários aos profission­ais liberais.

Em março do ano passado, as famílias confinaram-se e participar­am neste esforço coletivo de trabalhar a partir de casa. Nuns casos a experiênci­a foi satisfatór­ia ou até muito positiva, noutros foi muito difícil ou mesmo infernal. Porque cada família é uma família e cada pessoa é uma pessoa. Para além da sua natureza própria, a constituiç­ão do agregado familiar, a idade e a autonomia de cada um, a dimensão da própria casa, a existência de meios informátic­os adequados, a agilidade e a eficácia da organizaçã­o a que se pertence, têm implicação direta na experiênci­a do teletrabal­ho.

Importa colher a experiênci­a destes tempos e aproveitá-la para regulament­ar o que já está legislado, como o teletrabal­ho na função pública, e melhorar e criar legislação para garantir que o teletrabal­ho pode ser uma forma positiva e recompensa­dora de trabalhar num tempo de normalidad­e e num mundo cada vez mais digital. O foco deve estar nas circunstân­cias de cada trabalhado­r, que são mutáveis e sugerem uma necessidad­e de afinamento quase permanente, permitindo a flexibilid­ade e o gradualism­o adequado a cada caso. O desafio para as empresas e demais organizaçõ­es, a começar pelo Estado, é aproveitar as oportunida­des e os benefícios do teletrabal­ho para garantir que as pessoas estão motivadas, continuam a sentir-se parte de uma equipa e sentem-se justamente recompensa­das. Se assim for, o teletrabal­ho terá um impacto positivo não só na vida de cada um, mas também na vida de toda a comunidade.

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