PRÉ-CATÁSTROFE “JÁ NÃO DÁ PARA SALVAR TODAS AS VIDAS”
“Estamos perto de escolher entre dois doentes”
Com mais de cinco mil internados e 664 em cuidados intensivos, médicos voltam a apelar ao governo. Apesar dos pedidos de planificação, faltam profissionais e as restrições são “insuficientes” para travar a pandemia. Escolas devem fechar. “Se nada for feito, teremos de escolher quem salvar.”
Presidente do colégio da Ordem pede reforço do confinamento. Nas UCI, os doentes ainda entram pelo seu estado e não pela doença. É assim que deve ser. Mas há escassez de recursos.
AOrdem dos Médicos lançou ontem mais um apelo aos governantes e à sociedade portuguesa: “Os profissionais de saúde já não conseguem salvar todas as vidas”, refere em comunicado. E vai mais longe: “Neste momento os profissionais de saúde já estão a tomar decisões complexas e muito difíceis em contexto de medicina de catástrofe e de estabelecimento de critérios de prioridade”. Decisões que deixam “sofrimento ético”. Portugal é agora referido como o país do mundo que mais casos tem de infetados por milhão de habitante. É o pior dos cenários, com mais de cinco mil internados em enfermarias e 664 em Unidades de Cuidados Intensivos (UCI).
Ao DN, o presidente do colégio da especialidade de Medicina Intensiva afirma que “ainda não estamos na fase de escolher entre dois doentes críticos, mas se nada for feito rapidamente chegaremos lá”. O presidente da Sociedade de Medicina Intensiva corrobora a afirmação, salvaguardando: “Ainda estamos a selecionar como sempre o fizemos, a pensar no doente”, embora admita que já “estamos numa situação de pré-catástrofe”. O presidente do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas (CNEDM) da Ordem dos Médicos relembra, por seu lado: “Há um documento feito por este órgãos onde estão definidos os critérios de admissão de um doente em unidades de cuidados intensivos em caso de medicina de catástrofe. É bom que se recorde este documento e que profissionais e unidades discutam o que têm a fazer”. E sublinha: “Os nossos alertas vêm de há muito e, infelizmente, tinham razão de ser”. Neste momento, sustenta Manuel Mendes da Silva, “as decisões já não têm a ver com a ética, mas com decisões técnicas e até políticas”. O conselho a que preside fez o seu papel, “alertou em devido tempo e definiu critérios e recomendações”.
Critérios e recomendações que para quem se dedica à medicina intensiva “não são novidade”, porque a própria especialidade já exige uma seleção ou triagem dos doentes, mesmo sem pandemia. Talvez seja, dizem-nos, a especialidade em que os profissionais se têm de preparar para a decisão em que, “nem sempre o melhor para o doente é sujeitá-lo a mais tratamentos”. Isto mesmo, nem sempre é compreendido por colegas de outras especialidades, que “chegam a dizer-nos que estão ali para salvar doentes e não para os deixar morrer”, refere um médico intensivista. Mas uma coisa é quando se decide no interesse do doente, outra é quando há escassez de recursos. E foi neste sentido que tanto o colégio da especialidade da ordem e o conselho de ética elaboraram documentos publicados, já durante a segunda vaga, a relembrar à classe o que é fundamental em medicina de catástrofe. Ontem, a Ordem voltou a fazer o mesmo, porque para quem está no terreno: “A situação não está controlada”.
O presidente do Colégio da Especialidade, José Artur Paiva, diz mesmo: “Temos uma receita que assenta num confinamento light, que é
“Temos uma receita que assenta num confinamento light e que é uma receita condenada ao insucesso. Espero sinceramente que o Governo reforce as medidas tomadas, que feche escolas e acabe com exceções”.
uma receita condenada ao insucesso. Espero sinceramente que o Governo reforce as medidas tomadas, que feche escolas e acabe com exceções”. O presidente da SPMI, João Gouveia, alerta para outra situação: “Há muitos hospitais que ainda não estão a cumprir o despacho da ministra que suspende a atividade não urgente de forma a deslocar profissionais para o apoio às enfermarias covid e à medicina intensiva, e o nosso principal problema são os recursos. Estes serão julgados pela sociedade civil sobre a resposta que deram a esta situação”.
José Paiva e João Gouveia são dois médicos que têm vindo a alertar para as condições em que o SNS está a trabalhar. Um dever que aparece em primeiro lugar no documento do CNEDM. “O dever de informar. Os médicos têm a obrigação ética de informar a população, de usar a sua liberdade de expressão, com realismo, mas sem alarmismo, e de colaborar com as autoridades para uma tomada de decisão mais informada, adequada e atualizada”. Mais. Um médico tem ainda o dever ético de planear e de se coordenar com outros profissionais, de planificar atividades, partilhar informação e de colaborar”. O médico tem “o dever de cuidar”, diz o documento, quer esteja no “ativo ou reformado e na medida das suas possibilidades, condições de risco pessoais e competências”. Mas os médicos têm ainda o dever da reciprocidade o de tratar exigindo condições para o fazer. E quando há situações limite de descontrolo de situações, no caso, a pandemia da covid-19, que poderá levar à limitação de recursos, como ventilação assistida, “é necessário estabelecer a triagem dos doentes que terão acesso a esses recursos”. E é nesta situação que os médicos necessitam de “tomar a difícil decisão de condicionar esse acesso, maximizando os seus benefícios. A decisão deverá ter em consideração critérios clínicos e de avaliação de riscos incluindo os da própria medicina intensiva, bem como a maior probabilidade de eficácia do tratamento e sobrevida esperada (idade, comorbilidades, etc.), mas também com proporcionalidade e justiça distributiva”.
Ou seja, como explica o documento, a triagem deve estar centrada no “doente com a doença e não a doença no doente que deve presidir às nossas decisões”. A dignidade humana não pode nunca estar afastada de uma decisão deste tipo, e esta deve estar enquadra da “no princípio/condição de vulnerabilidade imposto pelo difícil equilíbrio entre o bem individual e o bem comum que esta situação nos impõem”.
Os princípios éticos que devem nortear a atuação ética e deontológica nesta pandemia devem ir da “beneficência e não maleficência, que incluem o dever de bem cuidar e de administrar os recursos adequados (e disponíveis em emergência), aos de justiça enquanto equidade, da proporcionalidade, à responsabilidade à transparência e consistência”. A prudência e o bom senso, o diálogo, a colaboração e a solidariedade devem também estar presentes neste processo de tomada de decisão.
No fundo, dizem os intensivistas, “são critérios que já usamos habitualmente na admissão de um doente, em que o principal critério tem a ver com a sobrevivência de qualidade que o doente pode ter depois de tratado numa UCI”. Explicando: “Um doente com covid fica internado em UCI uma média de 12 dias, durante os quais perde massa muscular, capacidade de se movimentar, em muitos casos de se alimentar, e se for um doente já com outras patologias associadas temos de pensar se é melhor até para este doente entrar numa UCI”.
Uma coisa é decidir quando ainda há recursos, outra quando a pressão é tanta que já reduz o racional, que “e não podemos dizer que não era expectável uma situação destas”, refere Artur Paiva.