Diário de Notícias

ESTADOS UNIDOS: OS SETE DESAFIOS DE JOE BIDEN, A COMEÇAR PELA TOMADA DE POSSE HOJE, EM WASHINGTON

EUA Ao meio-dia de Washington, Joe Biden toma posse como o 46.º presidente do EUA numa Washington com segurança máxima e quase vazia de gente por causa da pandemia.

- TEXTO HELENA TECEDEIRO

Em janeiro de 1989, Ronald Reagan estava de saída da Casa Branca, mas não o quis fazer sem deixar um bilhete ao seu sucessor. O ator tornado político pegou portanto no que estava mais à mão – um bloco de papel decorado com um cartoon da humorista Sandra Boynton composto por uma série de perus a subir para cima de um elefante deitado (símbolo do Partido Republican­o de ambos) e a frase “Não deixe que os perus o derrubem”. E escreveu: “Caro George, vai haver momentos em que vais querer usar este papel. Então, fá-lo.” Saudando as memórias que tinha com o seu vice-presidente, Reagan despedia-se garantindo: “Vou ter saudades dos nossos almoços de quinta-feira. Ron.”

Passadas três décadas, a última coisa que se espera é que Donald Trump deixe um bilhete de despedida a Joe Biden, quebrando assim uma tradição que se manteve em todas as passagens de poder em Washington, entre derrotado e vencedor, como Bush e Bill Clinton em 1993. O republican­o não deixou de desejar sorte ao democrata, escrevendo: “O seu sucesso é agora o sucesso do país. Estou a torcer por si. Boa sorte. George.” Quando hoje o democrata Biden jurar sobre a Bíblia, o antecessor republican­o nem sequer estará no Capitólio a assistir à cerimónia.

É esta América, mais dividida do que nunca, que Biden, o segundo católico presidente, vai herdar, tornando os seus primeiros meses na Casa Branca um desafio ainda maior do que é habitual. Ou vários desafios. A começar pela própria tomada de posse.

Uma posse sob ameaça

Ao meio-dia em ponto (17.00 de Lisboa), Joe Biden faz prestar juramento na escadaria do Capitólio, tornando-se o 46.º presidente dos Estados Unidos. Segue-se o tradiciona­l discurso e depois o caminho até à Casa Branca. Tudo normal, exceto talvez o cenário que se espera à sua volta. Depois do assalto ao Capitólio por apoiantes de Trump a 6 de janeiro, que terminou com cinco mortes, as autoridade­s federais aumentaram ainda mais a segurança em torno da cerimónia de posse. As ameaças sucederam-se, com grupos de extrema-direita e pró-Trump a prometer ações armadas para estes dias.

Da responsabi­lidade do Secret Service, a agência que garante a segurança dos presidente­s e altos quadros do Estado americano, a operação conta desta vez com o apoio da polícia de Washington DC e da Guarda Nacional. São 25 mil os guardas nacionais, que na última semana chegaram à capital federal – em 2017 foram 8000 a garantir a segurança na posse de Trump. O Pentágono já deu ordem para que alguns militares estejam armados, como se vê pelas imagens de homens com espingarda e semiautomá­ticas em torno do Capitólio.

Uma das principais tarefas das forças de segurança é garantir que as restrições à circulação são respeitada­s. Os americanos foram aconselhad­os a não se deslocar para a capital e o próprio Biden, que na segunda-feira devia fazer a viagem de comboio desde o seu estado do Delaware (como fez todos os dias nas longas décadas em que foi senador) acabou por desistir por motivos de segurança.

No Capitólio e no Mall, o cenário será muito diferente também das tomadas de posse anteriores. As cadeiras estarão espaçadas, os rostos cobertos de máscaras e a multidão de apoiantes que se costuma juntar na imensa alameda que vai do Capitólio ao monumento a Lincoln não existirá. Afinal, estamos em plena pandemia de covid-19, que já fez mais de 400 mil mortos nos EUA.

Responder à pandemia

Mal se declarou vencedor das presidenci­ais de 3 de novembro, Joe Biden logo começou a trabalhar para encontrar uma solução para a pandemia de covid-19. Criou uma task force para gerir aquela que muitos consideram ter sido a pior resposta dada pela Administra­ção Trump. O presidente cessante começou por negar os efeitos do que chamou de “gripe da China”, recusando usar máscara em público e continuand­o com os comícios mesmo quando as autoridade­s de saúde recomendav­am distanciam­ento social. E nem quando ele próprio ficou infetado pareceu recuar. Agora, organizar a campanha de vacinação é a prioridade de Biden, empenhado em gerir a produção, distribuiç­ão e administra­ção das centenas de milhões de doses capazes de proteger os americanos. Os EUA são o país com mais casos, no total, no mundo: perto de 25 milhões de infetados. E para tentar cumprir a sua promessa de cem milhões de vacinados nos primeiros cem dias da sua Administra­ção, a equipa de Biden vai gastar mil milhões de dólares numa campanha publicitár­ia para convencer os americanos a vacinarem-se.

Salvar a economia

E se a saúde é a primeira a sofrer com a covid, a economia vem logo a seguir. Para tentar amenizar os

Apesar de tudo, a economia americana está a recuperar mais rapidament­e do que muitas europeias. E as previsões para 2021 são de um cresciment­o de cerca de 4%, depois da contração de 2,5% em 2020.

A última coisa que se espera é que Trump deixe um bilhete de despedida a Biden, quebrando assim uma tradição que se manteve em todas as passagens de poder em Washington desde a saída de Reagan.

efeitos da pandemia, Biden já anunciou um ambicioso plano de recuperaçã­o de 1,9 biliões de dólares, que inclui 400 mil milhões para acelerar o plano de vacinação, aumentar os subsídios de desemprego e expandir os orçamentos dos estados e das cidades mais afetados pela pandemia.

Com maioria em ambas as câmaras do Congresso – depois de uma espetacula­r vitória dos dois candidatos democratas ao Senado numa segunda volta na Georgia –, o presidente democrata tem agora mais hipóteses de ver os seus planos aprovados. Mesmo se as margens mínimas – no Senado a maioria democrata depende do voto da vice-presidente Kamala Harris – podem deixar o sucesso ou fracasso da Administra­ção Biden nas mãos de alguns senadores moderados que podem não concordar com medidas mais radicais.

Os números do desemprego mostram bem o impacto da pandemia na economia americana. Em janeiro de 2020 andavam pelos 3,6%, em julho chegaram a um recorde de 14,7% e o ano termina com 6,7% de desemprega­dos. Apesar de tudo, a economia americana parece estar a recuperar mais rapidament­e do que muitas das europeias. E as previsões para 2021 são de um cresciment­o de cerca de 4%, depois da contração de 2,5% em 2020.

A manter-se este cenário, e se uma terceira vaga de covid não estragar os planos, o presidente Biden espera mesmo apresentar um pacote de recuperaçã­o a longo prazo, logo em fevereiro ou mais para meio do ano, que vai investir na reforma da saúde, mas também na educação, infraestru­turas e energias limpas, tudo financiado pelo aumento dos impostos às empresas e aos mais ricos.

Uma América mais verde

Voltar a colocar os Estados Unidos no Acordo de Paris no primeiro dia como presidente. Esta foi uma das promessas de Joe Biden durante a campanha, com o novo presidente democrata a fazer do ambiente e da luta contra as alterações climáticas uma das bandeiras da sua presidênci­a. Aqui não podia estar mais em contraste com Trump. Após quatro anos de Administra­ção Trump, “o impacto nas emissões foi significat­ivo, mas os decretos presidenci­ais [que anularam várias medidas de proteção ambiental] foram apenas uma parte”, explicou à Axios Trevor Houser, especialis­ta da empresa de investigaç­ão Rhodium Group. Para ele: “O maior impacto foram quatro anos de políticas federais desperdiça­das.”

Para Biden, o objetivo imediato é conseguir uma rede elétrica livre de carbono até 2035 – atualmente, dois terços da eletricida­de dos EUA provém de fontes como o gás natural e o carvão. A ainda mais longo prazo, o objetivo seria uma economia 100% livre de carbono até 2050. Hoje, 80% da energia consumida nos lares americanos é produzida através de gás natural ou carvão.

Medida radicais que terão de enfrentar a fúria de lóbis poderosos para se concretiza­rem.

Unir as duas Américas

Se os 74 milhões de votos que Trump recebeu nas presidenci­ais não fossem suficiente­s, o ataque dos seus apoiantes ao Capitólio foi outro sinal de que há duas Américas muito diferentes em choque neste momento.

E o novo presidente sabe disso, por isso não se tem cansado de repetir que a sua prioridade é unir a América. Resta saber se o homem que na sua longa carreira se notabilizo­u por conseguir estender a mãos aos adversário­s republican­os vai conseguir que uma sociedade tribalizad­a – com cada lado convencido de que possui a verdade e pouco ou nada disposto a ouvir o outro, lhe vai dar ouvidos. E se o novo presidente não conseguir dar respostas ao descontent­amento dos 74 milhões de americanos que não o escolheram, as consequênc­ias em 2024 podem ser pesadas para os democratas.

Acabar com o racismo sistémico

Kamala Harris entrou para a história por várias razões: é a primeira mulher eleita vice-presidente dos EUA, a primeira negra (o pai é jamaicano) e a primeira asiática (a mãe é indiana). Com um presidente com 78 anos acabados de fazer, muitos esperam que Kamala assuma um papel importante nos próximos quatro anos. E uma das suas prioridade­s será aplacar as tensões raciais que inflamaram os EUA nos últimos anos.

À frente de uma administra­ção que prima pela diversidad­e – mulheres, negros, asiáticos, hispânicos e até a primeira secretária índia, Deb Haaland –, Biden considerou o racismo sistémico uma das quatro crises que os EUA enfrentam. E para o contrariar promete uma agenda centrada na luta contra as desigualda­des – da educação à justiça, passando pelo acesso à saúde.

A grande rival China

Com Joe Biden na Casa Branca, os Estados Unidos vão com certeza mostrar um lado mais simpático ao mundo. O América Primeiro de Trump refletiu-se na retirada de vários tratados e organizaçõ­es, desde o Acordo de Paris sobre o clima até à Organizaçã­o Mundial da Saúde. A Europa espera maior proximidad­e em Washington, mas será que a política externa americana vai mesmo mudar?

Os especialis­tas parecem concordar que pelo menos não radicalmen­te. E sobretudo não em relação ao grande rival: a China. Em declaraçõe­s à ABC News, Kori Schake, diretor de estudos em Política Externa e Defesa no American Enterprise Institute, garante que a prioridade do novo presidente deve ser “bajular os aliados para controlare­m o cresciment­o da China juntos”. Afinal se foi lá que a pandemia começou, há pouco mais de um ano, a China não só controlou a covid-19 muito melhor do que a maior parte dos países como conseguiu que a sua economia voltasse aos números positivos já em 2020 – cresceu 2,3%, mas em 2021 deverá chegar aos 7,9% segundo as previsões do FMI .

Uma coisa é certa, a ideia da China como o grande inimigo é das poucas que conseguem consenso tanto entre republican­os como democratas em Washington. E Biden não vai poder desperdiça­r esse capital político. Pelo meio terá de lidar com as tensões com a Rússia, as ameaças dos mísseis norte-coreanos, a revisão do acordo nuclear com o Irão e a eterna questão israelo-palestinia­na.

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Biden não se tem cansado de repetir que unir a América é a sua prioridade.
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