Ventura caído ao mar
Afirmações insensatas e polémicas gratuitas, exemplificadas pelo “batom” e o “avô bêbado”, afugentaram, dia após dia, portugueses que são sensíveis aos problemas identificados por Ventura.
André Ventura não é a causa do mal-estar, é um dos sintomas. Erra-se ao diabolizar os seus eleitores, tratando-os como “deploráveis”. Ventura deveria ter articulado políticas públicas que respondam aos anseios do seu eleitorado, mas optou pela radicalização. Como Ícaro, quis aproximar-se do Sol. Acreditou ter o mundo nas mãos. Não tinha.
À semelhança de Ícaro – e pelas mesmas razões –, André Ventura caiu ao mar. Dispunha, nos primeiros dias da campanha, de condições ímpares para emergir como o grande vencedor do sufrágio presidencial. Desperdiçou-as e, independentemente do resultado obtido, sairá desta corrida pior do que entrou. Ventura é, sem dúvida, um político talentoso. Apercebeu-se da desilusão e do descontentamento que alastram na nossa sociedade. Virtualmente sozinho, criou um partido para lhe dar expressão e fez-se eleger como deputado. As sondagens dão-lhe esperança quanto ao futuro. Não é, convenhamos, pouco.
Mais importante, trouxe para um debate público fossilizado temas que, por muito que possam desagradar à maioria – e por muita incoerência interna que possam revelar –, preocupam largas faixas da população. Nem sempre o fez da melhor forma. Mas deu voz aos anseios daqueles que sentem que o país os defraudou. A portugueses que receiam o acentuar do empobrecimento, da corrupção e da erosão dos valores tradicionais. A portugueses que não vislumbram oportunidades de mobilidade social e, por isso, deixaram de depositar confiança nas elites, nas instituições e no regime. André Ventura não é a causa do mal-estar, é apenas um dos seus sintomas.
Erra-se ao diabolizar os eleitores de Ventura, tratando-os como “deploráveis”. Erra-se quando se tenta silenciá-los porque são incómodos. Erra-se ao adjetivá-los de rústicos, ignorantes, misóginos e racistas. Uns serão, a vastíssima maioria não o é. As esquerdas erram quando voltam a levantar o velho e estafado espantalho do “fascismo”. Tamanha falta de imaginação leva-as a propor a ilegalização do Chega e, acompanhados por alguma direita, a traçar a suicidária estratégia do “cerco sanitário”.
No fundo, Marisa Matias, João Ferreira e Ana Gomes investem contra moinhos e, para problemas reais, insistem nos mesmos dogmas que nos trouxeram até aqui. Eis, aliás, a receita infalível para uma maior radicalização e para robustecer a convicção de que as elites políticas estão definitivamente alienadas do país real.
Em contraste, Marcelo e Mayan apontaram estratégias que procuram ir ao encontro dos anseios dos eleitores de Ventura. Marcelo, previsivelmente, defende uma abordagem “mais social” e assistencialista. Pretende a evolução na continuidade. Tranquiliza e soma votos, mas apenas adia o problema. Mayan optou por uma abordagem reformista destinada a dinamizar a sociedade e a gerar a mobilidade social. Não traz votos e provoca a resistência de um país sonolento, instalado e complacente. Todavia, são abordagens que, pelo menos, apontam um rumo.
Curiosamente, Ventura, que deveria ter articulado políticas públicas destinadas a responder aos anseios do seu eleitorado, optou pela radicalização da retórica justicialista. Não propôs um rumo, reiterou soundbites. Todavia, a denúncia não equivale a um programa para uma sociedade mais decente. Ao proclamar a intenção de ser o presidente de alguns portugueses, dividiu em vez de agregar. Refugiou-se no quadrado, no seu gueto eleitoral. Quando se esperava que fosse construtivo, distribuiu dinamite. Consolidou o seu núcleo duro de eleitores à custa da exclusão de novos votantes.
Embalado pelos sucessos recentes, ultrapassou várias linhas vermelhas. Afirmações insensatas e polémicas gratuitas, exemplificadas pelo “batom” e o “avô bêbado”, afugentaram, dia após dia, portugueses que são sensíveis aos problemas identificados por Ventura, justamente porque reivindicam uma sociedade decente. Como Ícaro, quis aproximar-se do Sol. Acreditou ter o mundo nas mãos. Não tinha.