A perigosa erosão das eleições presidenciais
Não há democracia sem partidos. Também não há partidos em acção representativa sem democracia. Os partidos não são os únicos actores, nem são sequer os sujeitos principais – convém sempre lembrá-lo. Os sujeitos são os cidadãos: constituem o povo, que é o corpo da democracia. Fossem os partidos o principal, o regime seria partidocracia.
A função dos partidos é instrumental: organizar a expressão da vontade popular. Exprimem ideias, por que os seguidores se agrupam no debate colectivo, influenciando a opinião e organizando as escolhas eleitorais. É nefasto para a democracia que os partidos galguem a cidadania, se apossem inteiramente do sistema e se imponham como alfa e ómega da coisa pública.
A nossa democracia atravessa há muito uma crise profunda, cuja génese está nos excessos partidocráticos. O sistema eleitoral das legislativas foi a primeira vítima dessa gula. O aparelhismo partidário e as oligarquias internas atacaram pela vulnerabilidade das listas fechadas: apossaram-se totalmente destas, desprestigiaram a função parlamentar, afastaram os deputados dos cidadãos, generalizaram o desinteresse e o descrédito.
O perigo é fazerem o mesmo às eleições presidenciais.
O Presidente da República não é um chefe partidário. Tem o papel de “Presidente de todos os portugueses”, cabendo-lhe, além do escrito na Constituição, o bom rasto do poder moderador da antiga tradição constitucional. Todos os nossos presidentes não tinham ou afastaram-se de vestes partidárias: Eanes, Soares, Sampaio, Cavaco, Marcelo.
Os seus principais contendores também: Freitas, Alegre, Sampaio da Nóvoa.
Porém, a semente do partidarismo esteve quase sempre na abordagem do PCP: apresentava um candidato para defender o seu território eleitoral. Algumas vezes o candidato desistia antes da votação, como era já a táctica comunista em eleições presidenciais no regime anterior.
Depois, surgiu outra ideia: instrumentalizar as eleições presidenciais para novos partidos ou partidos pequenos conseguirem um efeito de projecção e lançamento. Começou com a UDP, com candidatos desistentes, e foi prosseguido pelos BE, MRPP e PND. Pelo meio, surgiram ainda candidaturas a representar partes de um partido, o PS: em 2006 e 2016.
Esta eleição presidencial é a pior de todas na derrapagem. Só há um candidato a Presidente da República: o incumbente Marcelo Rebelo de Sousa.
Todos os outros não correm para a Presidência; estão a cumprir missões partidárias. Não há outros candidatos a representar áreas alargadas e a apresentar projectos presidenciais alternativos, com visão de cidadania livre. Há candidatos a procurar projecção e crescimento partidários (Mayan, IL e Ventura, Chega), outros a defender território (Ferreira, CDU e Marisa, BE), a afirmar uma parte do PS (Ana Gomes) ou em busca de antena (Tino, RIR).
As eleições não servem para isto. Servem para eleger o Presidente da República, o cargo mais importante do país. A fragmentação e pulverização partidária das candidaturas empobrece muito as eleições. Esta erosão pode matá-las.
E tornar mais fraca e pior a nossa democracia, de que os cidadãos se afastam cada vez mais.
Os partidos políticos existem para servir os cidadãos. Fazem mal ao usurpar a democracia com a agenda dos seus interesses e cavalgar a cidadania em vez de a exprimir.