Um erro de cálculo
A população-modelo transformou-se numa cáfila de irresponsáveis que transforma o passeio profilático no lazer comunitário de um fim de semana ao sol.
Uma primeira crónica em tempo de pandemia não pode falar de árvores e flores. Vivemos tempos negros com impactos ainda imprevisíveis, apesar das estimativas e projeções de quebra do PIB, instabilidade social, mortalidade covid e não covid, impacto sobre as aprendizagens e outros dados mais soft e não menos importantes como o reflexo na nossa saúde mental. O Presidente da República resumiu a inépcia das políticas e também da ação coletiva dos portugueses quanto a esta terceira vaga pandémica a um “erro de cálculo”. Os decisores políticos não anteciparam o que se avolumava no horizonte, a população, excelente na primeira vaga, desmobilizou a sua militância protetora.
Com o novo ano, tudo mudou. Erro de cálculo, portanto. A população-modelo tornou-se uma cáfila de irresponsáveis que transforma o passeio profilático no lazer comunitário de um fim de semana ao sol. Os decisores políticos sentem-se traídos pelo país, pede-se um “sobressalto cívico”. Culpa-se o exército, afinal, não os generais. Os especialistas falam de cansaço pandémico, os políticos esgrimem acusações e, entretanto, o número de mortes assume dimensões não antecipadas, o crescimento das infeções ultrapassa as estimativas, ainda que se suspeite que os números – tão bem esgrimidos ao longo dos últimos meses – estão claramente subestimados.
Mas os portugueses de janeiro de 2021 são os mesmos de março de 2020, com a mesma cultura cívica, porventura mais cansados da vida em suspenso, mais pobres e com medo do futuro, menos confiantes, em suma. Além da incapacidade congénita de antecipar cenários, que é estrutural à política portuguesa, a situação que vivemos é o resultado de uma questão endémica do Portugal democrático, e que se manifestava já em latência na longue durée do tempo que decorreu da monarquia à República e ao Estado Novo. Dito de outra forma, os modelos de desenvolvimento sociocultural em Portugal conjugam uma baixa responsabilidade individual com deficiente corresponsabilização coletiva. No nosso modelo de desenvolvimento, as pessoas não são educadas para a autonomia individual e para um sentido de imbricação comum, conscientes de que as decisões que eu tomo afetam necessariamente a vida dos outros com que convivo. Alienando a decisão individual à vontade “deles” que nos governam, os cidadãos não se sentem verdadeiramente parte dessa utopia da “vontade geral”. Há uma desvinculação cognitiva e uma desresponsabilização que radica no facto de não se sentir a ação individual como gesto autónomo e responsável para consigo próprio e para com os outros.
Apesar das transformações das últimas décadas, dos fluxos e refluxos políticos, os portugueses ainda não se emanciparam de um processo de descapacitação individual com séculos de existência. Não somos educados para a autonomia, mas para uma cidadania de submissão irresponsável. Vivemos o país como filhos menores e não como adultos emancipados. O baixo empreendedorismo, a baixa apetência para o risco, o mudar de norte consoante os ventos políticos, a ausência de um espaço público verdadeiramente forte e independente dos interesses ideológicos são sintomas sistémicos. À escala micro dos comportamentos inadequados dos últimos dias, observa-se que o erro de cálculo é afinal o caso mental português.