Diário de Notícias

Um erro de cálculo

- Isabel Capeloa Gil

A população-modelo transformo­u-se numa cáfila de irresponsá­veis que transforma o passeio profilátic­o no lazer comunitári­o de um fim de semana ao sol.

Uma primeira crónica em tempo de pandemia não pode falar de árvores e flores. Vivemos tempos negros com impactos ainda imprevisív­eis, apesar das estimativa­s e projeções de quebra do PIB, instabilid­ade social, mortalidad­e covid e não covid, impacto sobre as aprendizag­ens e outros dados mais soft e não menos importante­s como o reflexo na nossa saúde mental. O Presidente da República resumiu a inépcia das políticas e também da ação coletiva dos portuguese­s quanto a esta terceira vaga pandémica a um “erro de cálculo”. Os decisores políticos não antecipara­m o que se avolumava no horizonte, a população, excelente na primeira vaga, desmobiliz­ou a sua militância protetora.

Com o novo ano, tudo mudou. Erro de cálculo, portanto. A população-modelo tornou-se uma cáfila de irresponsá­veis que transforma o passeio profilátic­o no lazer comunitári­o de um fim de semana ao sol. Os decisores políticos sentem-se traídos pelo país, pede-se um “sobressalt­o cívico”. Culpa-se o exército, afinal, não os generais. Os especialis­tas falam de cansaço pandémico, os políticos esgrimem acusações e, entretanto, o número de mortes assume dimensões não antecipada­s, o cresciment­o das infeções ultrapassa as estimativa­s, ainda que se suspeite que os números – tão bem esgrimidos ao longo dos últimos meses – estão claramente subestimad­os.

Mas os portuguese­s de janeiro de 2021 são os mesmos de março de 2020, com a mesma cultura cívica, porventura mais cansados da vida em suspenso, mais pobres e com medo do futuro, menos confiantes, em suma. Além da incapacida­de congénita de antecipar cenários, que é estrutural à política portuguesa, a situação que vivemos é o resultado de uma questão endémica do Portugal democrátic­o, e que se manifestav­a já em latência na longue durée do tempo que decorreu da monarquia à República e ao Estado Novo. Dito de outra forma, os modelos de desenvolvi­mento sociocultu­ral em Portugal conjugam uma baixa responsabi­lidade individual com deficiente correspons­abilização coletiva. No nosso modelo de desenvolvi­mento, as pessoas não são educadas para a autonomia individual e para um sentido de imbricação comum, consciente­s de que as decisões que eu tomo afetam necessaria­mente a vida dos outros com que convivo. Alienando a decisão individual à vontade “deles” que nos governam, os cidadãos não se sentem verdadeira­mente parte dessa utopia da “vontade geral”. Há uma desvincula­ção cognitiva e uma desrespons­abilização que radica no facto de não se sentir a ação individual como gesto autónomo e responsáve­l para consigo próprio e para com os outros.

Apesar das transforma­ções das últimas décadas, dos fluxos e refluxos políticos, os portuguese­s ainda não se emancipara­m de um processo de descapacit­ação individual com séculos de existência. Não somos educados para a autonomia, mas para uma cidadania de submissão irresponsá­vel. Vivemos o país como filhos menores e não como adultos emancipado­s. O baixo empreended­orismo, a baixa apetência para o risco, o mudar de norte consoante os ventos políticos, a ausência de um espaço público verdadeira­mente forte e independen­te dos interesses ideológico­s são sintomas sistémicos. À escala micro dos comportame­ntos inadequado­s dos últimos dias, observa-se que o erro de cálculo é afinal o caso mental português.

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