Isto de ser português
Diante de nós, as imagens de médicos e enfermeiros exaustos, serviços à beira do colapso, e continuamos a passear no paredão à procura do sol. A culpa é sempre dos outros.
As histórias sucedem-se como se sucedem as opiniões, quase tantas como os dez milhões que somos. O presidente da Câmara de Cascais contou que durante o fim de semana havia quem passeasse uma trela sem cão para argumentar que cumpria a lei. Outros diziam que tinham a máscara no bolso e outros acumulavam-se à mesa do restaurante invocando o direito de resistência civil. As redes sociais enchem-se de informações e contrainformações, histórias de há meses ou anos apresentadas como se fossem ontem, locais que se fazem passar por outros e tantas, tantas entorses da realidade que perdemos a capacidade de nos encontrar neste espesso nevoeiro.
No meu percurso de vida, trabalhei mais de uma década fora de Portugal e outra década em relações internacionais, o que me deu o privilégio de olhar e sentir o meu país a partir de fora, mas sobretudo acompanhar o olhar que os outros nos lançam. Quase sempre melhor do que aquele que temos sobre nós próprios. Num país como o Japão, por exemplo, ainda hoje se celebra a chegada dos portugueses, aqueles que “voando por cima das águas” foram aos confins do mundo. Em terras do Oriente, persiste uma memória dos portugueses corajosos, tenazes, curiosos dos outros. É fácil ser português por essas paragens. Em outros lugares, a experiência pode ser agridoce como a imagem dos portugueses emigrantes, no tempo em que a passagem pela fronteira era uma experiência de humilhação. Nas últimas décadas, os portugueses fizeram caminho a pulso e conseguiram um reconhecimento internacional para o qual contribuíram muitas figuras que se afirmaram pelas suas capacidades: das artes à ciência, mas também em posições de relevo, como António Guterres. Em pouco mais de uma década, fizemos um extraordinário percurso na educação com reconhecimento internacional. Em vários domínios somos pioneiros e exportámos conhecimento. Somos admirados pela capacidade de diálogo que nos coloca como bons negociadores internacionais. Tudo isto somos nós. E de tudo isto nos podemos orgulhar pela imagem que projetamos.
Nos primeiros meses da pandemia, Portugal foi um país muito elogiado pelo comportamento da sua população. No mundo ibero-americano em que me movo, muitas vezes me pediram para falar desse extraordinário exemplo de cidadania, que nada mais é do que pensar que forma o meu comportamento respeita os direitos do outro. Passado menos de um ano, encontramo-nos numa espécie de deriva em que passámos dos melhores aos piores, e empurramos para longe as responsabilidades que nos pertencem. Muitos reclamam medidas mais duras como se ainda vivesse dentro de nós o estigma da repressão e precisássemos de ordens severas para nos comportar.
Diante de nós, as imagens de médicos e enfermeiros exaustos, serviços à beira do colapso, e continuamos a passear no paredão à procura do sol. A culpa é sempre dos outros.
Decerto nunca vivemos uma situação de catástrofe tão extrema com todas as suas implicações que são também mais desemprego, mais precariedade, mais pobreza. As escolas mantêm-se abertas num imenso esforço para que esta geração não fique para sempre marcada por uma pandemia que lhes pode cortar o futuro. É nosso dever de pais e educadores, mais do que defender o fecho das escolas, contribuir para que os mais novos sejam cidadãos responsáveis e percebam o seu contributo para o coletivo.
Ser português é um orgulho e sempre um mistério.