Diário de Notícias

Isto de ser português

- Ana Paula Laborinho

Diante de nós, as imagens de médicos e enfermeiro­s exaustos, serviços à beira do colapso, e continuamo­s a passear no paredão à procura do sol. A culpa é sempre dos outros.

As histórias sucedem-se como se sucedem as opiniões, quase tantas como os dez milhões que somos. O presidente da Câmara de Cascais contou que durante o fim de semana havia quem passeasse uma trela sem cão para argumentar que cumpria a lei. Outros diziam que tinham a máscara no bolso e outros acumulavam-se à mesa do restaurant­e invocando o direito de resistênci­a civil. As redes sociais enchem-se de informaçõe­s e contrainfo­rmações, histórias de há meses ou anos apresentad­as como se fossem ontem, locais que se fazem passar por outros e tantas, tantas entorses da realidade que perdemos a capacidade de nos encontrar neste espesso nevoeiro.

No meu percurso de vida, trabalhei mais de uma década fora de Portugal e outra década em relações internacio­nais, o que me deu o privilégio de olhar e sentir o meu país a partir de fora, mas sobretudo acompanhar o olhar que os outros nos lançam. Quase sempre melhor do que aquele que temos sobre nós próprios. Num país como o Japão, por exemplo, ainda hoje se celebra a chegada dos portuguese­s, aqueles que “voando por cima das águas” foram aos confins do mundo. Em terras do Oriente, persiste uma memória dos portuguese­s corajosos, tenazes, curiosos dos outros. É fácil ser português por essas paragens. Em outros lugares, a experiênci­a pode ser agridoce como a imagem dos portuguese­s emigrantes, no tempo em que a passagem pela fronteira era uma experiênci­a de humilhação. Nas últimas décadas, os portuguese­s fizeram caminho a pulso e conseguira­m um reconhecim­ento internacio­nal para o qual contribuír­am muitas figuras que se afirmaram pelas suas capacidade­s: das artes à ciência, mas também em posições de relevo, como António Guterres. Em pouco mais de uma década, fizemos um extraordin­ário percurso na educação com reconhecim­ento internacio­nal. Em vários domínios somos pioneiros e exportámos conhecimen­to. Somos admirados pela capacidade de diálogo que nos coloca como bons negociador­es internacio­nais. Tudo isto somos nós. E de tudo isto nos podemos orgulhar pela imagem que projetamos.

Nos primeiros meses da pandemia, Portugal foi um país muito elogiado pelo comportame­nto da sua população. No mundo ibero-americano em que me movo, muitas vezes me pediram para falar desse extraordin­ário exemplo de cidadania, que nada mais é do que pensar que forma o meu comportame­nto respeita os direitos do outro. Passado menos de um ano, encontramo-nos numa espécie de deriva em que passámos dos melhores aos piores, e empurramos para longe as responsabi­lidades que nos pertencem. Muitos reclamam medidas mais duras como se ainda vivesse dentro de nós o estigma da repressão e precisásse­mos de ordens severas para nos comportar.

Diante de nós, as imagens de médicos e enfermeiro­s exaustos, serviços à beira do colapso, e continuamo­s a passear no paredão à procura do sol. A culpa é sempre dos outros.

Decerto nunca vivemos uma situação de catástrofe tão extrema com todas as suas implicaçõe­s que são também mais desemprego, mais precarieda­de, mais pobreza. As escolas mantêm-se abertas num imenso esforço para que esta geração não fique para sempre marcada por uma pandemia que lhes pode cortar o futuro. É nosso dever de pais e educadores, mais do que defender o fecho das escolas, contribuir para que os mais novos sejam cidadãos responsáve­is e percebam o seu contributo para o coletivo.

Ser português é um orgulho e sempre um mistério.

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