Diário de Notícias

O génio sentimenta­l

- INÊS N. LOURENÇO

Para comemorar os 100 anos de O Garoto de Charlot,o site France TV disponibil­izou no início do mês Charlie Chaplin, le génie de la liberté, um documentár­io assinado por Yves Jeuland e narrado por Mathieu Amalric, que percorre todas as fases da vida do mestre da pantomima através de imagens de arquivo, algumas inéditas. O filme, que teve o carimbo da seleção oficial do Festival de Cannes 2020 (secção de clássicos), arranca precisamen­te com a cena de The Kid em que o miúdo, Jackie Coogan, cheio de genica, parte os vidros de uma janela à pedrada. E começa-se por aqui talvez porque, de entre as cenas de antologia, esta seja aquela que melhor traduz a génese impulsiva de Chaplin – ele, o menino inglês pobre, quiçá saído do universo de Charles Dickens, que se libertou dessa infância miserável com uma alma de lutador. “O que evoca o meu nome no espírito do cidadão comum? Uma pequena silhueta patética e mal vestida, um chapéu de coco amolgado, umas calças largas, uns sapatos enormes e uma bengala pretensios­a. Sim, esta bengala é verdadeira­mente importante para a minha personagem. Constitui toda a minha filosofia. Não só a conservo como emblema de respeitabi­lidade, mas também com ela desafio o destino e a adversidad­e.” Ei-lo nas palavras do próprio.

Da arte da pantomima, que aprendeu com a mãe, à fama mundial, passando pelo início da carreira nas mãos dos produtores Fred Karno e Mack Sennett, e pelo modelo do dandy alcoólico que deu lugar ao icónico vagabundo, Charlie Chaplin, le génie de la liberté espreita para dentro da janela de Charlot com uma curiosidad­e didática capaz de escrutinar o detalhe político, trágico e cómico da(s) performanc­e(s). The Kid, em particular, evidencian­do o génio da liberdade, será, contudo, a expressão máxima e primitiva de um génio sentimenta­l – ali, o artista confronta-se com o miúdo que foi e nunca deixou de ser. Marlene Dietrich resumiu-o assim: “Num mundo de políticos corruptos, o seu chamado ‘sentimenta­lismo’ era um grande trunfo. Ele poderia metê-los a todos no bolso.”

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