Assalto ao Santa Maria foi há 60 anos
O assalto ao Santa Maria, há 60 anos, começou por ser silenciado pelo governo português e, finalmente, encarado como pirataria marítima. Mas, para a investigadora do Instituto de História Contemporânea da Nova e professora da Escola Superior de Comunicação Social, o mundo não tardou a perceber que se tratava de um ato de oposição contra o salazarismo.
A22 de janeiro de 1961, Lisboa em peso saiu à rua para se despedir do popular ator João Villaret, que morrera na véspera, aos 47 anos. Nesse tempo, em que as comunicações não tinham a velocidade de hoje, os milhares de pessoas que acorreram ao funeral, como o resto do país, não sabiam ainda que o elegante navio de cruzeiro da Companhia Nacional de Navegação, Santa Maria, que largara de Lisboa a 9 de janeiro, fora tomado de assalto no mar das Caraíbas. A ação era empreendida em nome do DRIL – Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação, criado por exilados políticos portugueses e espanhóis, à cabeça do qual aparecia o capitão Henrique Galvão, antigo apoiante destacado do salazarismo que, no final da década de 1940, se incompatibilizara com o regime e o galego, Jorge de Soutomayor, antigo oficial da Armada Espanhola. Durante 12 dias, de 22 de janeiro a 4 de fevereiro, o mundo esteve pendente do que se passava a bordo do navio, com os seus 522 passageiros e 350 tripulantes. Este enredo, digno de um filme de ação, teve o nome de Operação Dulcineia. E se o governo português teve intenção de o confundir com um ato de pirataria marítima, em breve tornar-se-ia evidente que era, afinal, um ato de oposição política que tinha como objetivo derrubar as ditaduras de Salazar e Franco. Foi há exatamente 60 anos e marcou, como nos conta a historiadora Maria Inácia Rezola, o princípio do fim do salazarismo. Rezola é autora de livros como O Sindicalismo Católico no Estado Novo, O Conselho da Revolução e a Transição para a Democracia em Portugal e Melo Antunes: Uma Biografia Política.
O assalto ao paquete Santa Maria marca o início de um ano terrível para o salazarismo. Podemos considerá-lo um ponto de viragem? Pode-se dizer que sim. Foi um anno horribilis para Salazar e para o regime. Isso já tinha acontecido em 1931, numa outra conjuntura, quando o ditador ainda estava a consolidar o seu poder pessoal, mas em 1961 a situação internacional era bastante mais adversa. Estamos a viver ainda as consequências do terramoto delgadista e, de um momento para o outro, o regime vê-se sob o ataque de três tipos de forças: a das oposições, que incluem o assalto ao Santo Maria, o golpe da Sé (em 1959) e o de Beja (no final desse ano de 1961), o ataque dos reformistas do regime, como o de Botelho Moniz que desencadeia um golpe em Abril, e, finalmente, os ataques externos, com o início da guerra colonial em Angola e a ocupação pela União Indiana de Goa, Damão e Diu. Tudo isto tendo como pano de fundo uma vaga de agitação social e política considerável, de que resultará, na primavera do ano seguinte, a explosão do movimento estudan
til. Podemos dizer que, a partir deste momento, começa a espera do fim de um regime que já não se adequa nem às realidades do país nem internacionais.
O líder desta operação, Henrique Galvão, era um homem que tinha sido um apoiante destacado do regime, como o fora o próprio Humberto Delgado…
Sem dúvida, basta pensarmos que foi o homem que lançou a Emissora Nacional, instrumento fundamental de difusão da mensagem do regime. Além disso, fora comissário da Exposição Colonial Portuguesa, de 1934, governador da província da Huíla, autor de uma vasta bibliografia sobre o Império Português e é-lhe atribuída a autoria do famoso cartaz de propaganda em que se diz “Portugal não é um país pequeno”, comparando as superfícies de vários países europeus com a extensão do nosso território colonial. Mas a ideia que tenho dele é que a sua postura, quer ainda como apoiante do salazarismo quer como opositor, se destaca sempre pelo radicalismo. Adorava ações espetaculares e sempre de grande dramatismo.
Era um poseur?
O mais possível. Um homem que queria deixar a sua marca na história e que se via a si mesmo como um Dom Quixote, atribuindo à operação o nome de Dulcineia, e mudando o nome do navio de Santa Maria para Santa Liberdade. Tinha, de facto, uma noção muito teatral de si mesmo e da própria história. Como é que o acontecimento foi acompanhado em Portugal? Depois de uma tentativa inicial de silenciamento segue-se o esforço para dizer ao país e ao mundo que se trata de um ato de pirataria marítima. Teria sido um grupo de bandidos a apossar-se do navio, dizia-se. Mas essa ideia não passa internacionalmente. Os assaltantes, digamos assim, dão várias entrevistas a órgãos de comunicação social de todo o mundo. A revista Paris Match faz uma capa com o Galvão, depois de uma operação bastante espetacular da parte deles, que leva um jornalista francês, Gil Delamere, a lançar-se de paraquedas ao mar, sendo resgatado pela tripulação do Santa Maria. Nos números seguintes, já com a colaboração de outros jornalistas como o famoso Dominique Lapierre, chegarão a publicar o diário de bordo de Galvão.
Qual era o objetivo da operação?
O objetivo final, bastante ambicioso para o grupo de 24 homens que tomaram o navio, era lançar a revolução em Portugal e Espanha, derrubando as ditaduras vigentes. Queriam ir até à ilha de Fernando Pó, no golfo da Guiné, e daí para Luanda, onde promoveriam uma sublevação mais ampla em todas as colónias portuguesas. Diga-se que esta estratégia fora delineada com a colaboração de Humberto Delgado, então a residir no Brasil.
Como é que a operação acabou? Em determinada altura, o paradeiro do navio foi descoberto por um cargueiro dinamarquês, que passou a informação à Marinha de Guerra norte-americana. Quando foram abordados por esta em alto mar, houve um momento de tensão que se resolveu a bem, mas nasceu no grupo a perceção de que a operação estava comprometida. Estavam a caminho da costa ocidental africana, mudaram de rota e pediram asilo político ao Brasil. Desembarcaram no Recife, num processo muito mediático, e estabeleceram-se negociações com as autoridades portuguesas e brasileiras para a devolução do Santa Maria a Portugal. Tudo isto muito favorecido pelo recém-empossado presidente do Brasil, Jânio Quadros. À chegada do navio a Lisboa, Salazar estava praticamente afónico, de tal maneira estava desgastado pela situação, e fez o discurso mais breve que lhe conhecemos, o célebre: “Obrigado, portugueses. Temos o Santa Maria connosco.”
O caso do Santa Maria muda as relações do governo português com os seus aliados, nomeadamente com os norte-americanos e com a administração Kennedy? Kennedy tinha chegado há pouco tempo à Casa Branca mas já assumira de forma inequívoca, pela primeira vez numa administração norte-americana, uma posição claramente anticolonial. Essa atitude vai fortalecer posteriormente os movimentos de independência africanos, o que tornará evidente o progressivo e irreversível isolamento de Portugal.
“Um homem que queria deixar a sua marca na história e que se via a si mesmo como um Dom Quixote, atribuindo à operação o nome de Dulcineia.”