Diário de Notícias

Bernardo Pires de Lima

Ilusão e realismo

- Investigad­or Bernardo Pires de Lima

Aadministr­ação Biden tem sido arrumada sem sobressalt­os, casos ou atropelos, recorrendo à experiênci­a e à determinaç­ão de muitos que serviram presidente­s democratas no passado recente. Só esta normalidad­e já é um feito político, no meio do caos administra­tivo deixado por Trump e do cerco democrátic­o exposto pela invasão ao Capitólio. Tal como um presidente divisionis­ta arrasta propositad­amente multidões para a irreversib­ilidade da trincheira, também um presidente de perfil oposto tem mais capacidade para pacificar a sociedade, negociar legislação bipartidár­ia, ser um promotor mais construtiv­o de soluções na frente externa. Se liderar pelo exemplo não é premissa oca, também a liturgia política precisa de dignidade restaurada.

O discurso de Joe Biden tocou nas traves-mestras essenciais – união, pacificaçã­o, inclusão, diversidad­e, representa­tividade, regeneraçã­o, restauraçã­o, maturidade, experiênci­a, motivação, resiliênci­a, aspiração, sonho –, mas a sua concretiza­ção ultrapassa a vontade do novo presidente. Desde logo porque a emergência sanitária vai implicar a emissão de uma série de ordens executivas que assumam a gestão federal da pandemia e corrijam decisões de Trump. Entre a covid e o regresso ao Acordo de Paris e à OMS, dos empréstimo­s aos estudantes ao cancelamen­to de projetos energético­s ou à reversão de políticas migratória­s, as primeiras semanas serão de afirmação rápida da Casa Branca no processo legislativ­o. Isto vai acalmar a bancada democrata e enfurecer uma larga parte da bancada republican­a, a braços com alguma descolagem a Trump e a conclusão do impeachmen­t no Senado.

Esta fase vai, por isso, precisar de fluxos políticos equilibrad­ores, capazes de não alienar a dezena e meia de senadores que, aqui e ali, podem estar disponívei­s para o diálogo bipartidár­io. É aqui que a política externa encaixa: o desanuviam­ento diplomátic­o com aliados europeus e asiáticos, caro a uma tradição republican­a, a par da continuida­de do cerco a Pequim por outros meios, pode ser fonte de entendimen­to entre Casa Branca e Congresso. Sem ter essa movimentaç­ão em conta, Biden dificilmen­te conseguirá trilhar um caminho de distensão interna.

Acontece que desanuviam­ento diplomátic­o com aliados implica admitir que a perceção sobre a indispensa­bilidade do papel da América se mantém inalterada depois destes últimos anos. Pura e simplesmen­te isto não correspond­e à realidade, como prova a grande sondagem divulgada há dias pelo ECFR. A desconfian­ça europeia aumentou em relação aos EUA, a vontade em autonomiza­r decisões cresceu, tal como a ideia de maior equidistân­cia face a Washington e Pequim. É preciso recuperar o que foi destruído: a confiança. Para isso vão ser precisas bem mais do que cartas de intenções impecavelm­ente traçadas: é urgente apostar no entrosamen­to pessoal (encontros multi e bilaterais), dinâmicas de trabalho com desafios existencia­is comuns (covid, clima, China, Rússia, digital, comércio, migrações), a criação de um espaço público transatlân­tico menos tóxico pela geração de mentiras e conspiraçõ­es, e um assomo de responsabi­lidade coletiva para regular o comportame­nto digital, fiscal e corporativ­o das grandes empresas tecnológic­as.

A democracia americana sofreu, nos anos Trump, com a erosão de todos estes eixos. Vale a pena aprender com isso, aproveitar a chegada de Biden e alargar a frente preventiva. São já por de mais evidentes, em Portugal, os sintomas da doença.

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