Rute Agulhas
As mulheres também abusam sexualmente
Estava eu a terminar a crónica desta semana quando recebi uma notificação: “Mãe detida por ter imagens e vídeos da filha em poses eróticas.” Uma mulher de 29 anos que terá começado a abusar sexualmente da filha quando esta tinha 9 anos. O assunto fez-me rescrever a crónica semanal mudando para este tema.
As situações de abuso sexual cometidas por mulheres são ainda muito pouco conhecidas. Em mais de duas décadas de trabalho pericial nesta área avaliei apenas seis ou sete situações em que existia, em todas elas, o mesmo denominador comum – a existência de uma relação familiar ou de grande proximidade afetiva com a criança.
A literatura sobre o tema é escassa e os dados estatísticos nem sempre são significativos, atendendo à pequena dimensão das amostras, o que pode ser explicado pelo reduzido número de sinalizações deste tipo de crime. Acredita-se que as situações reveladas representem apenas uma pequena parte da realidade. Pois falamos de um crime que nem sempre é entendido como tal, pelo simples facto de ser cometido por uma mulher.
Queiramos ou não, a mulher ainda é olhada pela sociedade em geral como a vítima de violência. Pelo contrário, o homem é mais facilmente associado ao papel de agressor. Ao mesmo tempo, a mulher/mãe é associada à prestação de cuidados e ao afeto positivo, parecendo quase impossível que uma mãe abuse sexualmente de um filho ou uma filha.
É, pois, necessária a desconstrução desta representação social dos papéis de género e assumir, de forma clara, que homem e mulher podem cometer (e cometem) os mais variados tipos de crimes. Ainda, que o amor de mãe não é inato e que, por isso mesmo, pode maltratar de formas muito diversas os seus filhos.
Neste contexto, quer a sociedade em geral quer o sistema profissional e judicial tendem a negar ou a minimizar este tipo de crimes. Sejamos honestos. Se uma criança nos disser que dorme com a mãe ou com a avó, salientamos a importância da autonomia e de um espaço próprio para a criança. Se nos disser que dorme com o pai ou com o avô, acende-se de imediato uma luz de alerta na nossa cabeça.
As vítimas que relatam estas situações são também mais desacreditadas e a ausência habitual de indícios físicos reforça esta dúvida que culmina, não raramente, no arquivamento dos processos e, consequentemente, na desproteção das crianças.
Pensemos também na prevenção do abuso sexual. Até há bem pouco tempo, este era um assunto tabu que permanecia sem ser abordado junto das crianças. Existe hoje uma maior sensibilização para a importância em abordar o tema, o que é facilitado pela existência de materiais lúdicos especialmente estudados para o efeito. Ainda assim, e pese embora as mensagens transmitidas às crianças sejam já no sentido de desmontar a ideia de que os abusadores sexuais são sempre homens estranhos e com cara de maus, temos um caminho a percorrer no que respeita à mensagem de que quem abusa pode ser homem ou mulher, conhecido ou desconhecido.
E, sim, pode ser a própria mãe.