O naan que o diabo amassou
NETFLIX O realizador de 99 Casas regressa com um conto de perversão moral que está a ser comparado a Quem Quer Ser Bilionário?, mas que é mais um filme de gangsters hindu. O Tigre Branco encena o confronto entre ricos e pobres numa Índia segregada pelas c
Aeducação moral de um pobre motorista na Índia moderna. É disto que fala a ambiciosa adaptação a The White Tiger/O Tigre Branco, romance de Aravind Adiga premiado com o prémio Booker. Ambiciosa não só numa escala de produção que revela muitos meios, mas sobretudo por servir de retrato de uma Índia e dos seus costumes, em específico a maneira cultural como as castas se dividem e de como a hierarquia entre patrões e criados se torna um cisma social. Ouve-se um motorista a dizer: “Ou odiamos os nossos patrões com numa fachada de amor ou então amamo-los com uma fachada de ódio.”
Realizado pelo cineasta norte-americano de origem iraniana Ramin Bahrani, O Tigre Branco acompanha a transformação de Balram, um jovem provinciano que se torna motorista do filho do mafioso que controla a sua região. Aos poucos, Balram vai entrando num mundo de luxo, de poder e negociatas e percebe que a sua posição no mundo é frágil. O tempo passa e a inocência de Balram esvanece-se e começa a ganhar contornos de ambição. Pelo meio, ouvimos a narração do jovem que se dirige diretamente ao espectador, confrontando-o com a sua distância social e geográfica – nesse sentido, Bahrani está a fazer um filme para as audiências ocidentais. Logo no começo, vemos o motorista com um novo visual e já como empresário a avisar que o empreendedor nesta Índia só se salva se for vigarista e honesto ao mesmo tempo, e acrescenta: “Tem também de ser gozão e crente, vivaço e sincero”, ou seja, um guia para um hindu de casta baixa ser alguém na vida. Depois disso, flashback para as tais lições de vida que nos mostram como aceitou viver no chão de uma garagem do prédio luxuoso dos patrões e, sobretudo, como foi capaz de aceitar ser bode expiatório num crime de negligência cometido pela namorada do chefe. São relatos de um passado contando à distância, epopeia de uma sobrevivência que foi uma autêntica montanha-russa de humilhações e desumanidade. E aí o filme ganha um espelho social cruel: por cada sapo que o motorista engole há sempre um ato de corrupção, um crime sem castigo... É o pão ou a chamuça que o diabo amassou num sistema machista, misógino e criminoso que caracteriza um sistema impune nesta nova Índia que é, afinal, tão velha.
Bahrani filma a miséria humana de um país complexo e atordoado entre o novo capitalismo e uma crença de complacência com uma ferocidade veloz. É um cineasta atento ao respirar da pobreza das ruas, mas também do “salve-se quem puder” do sistema social. A dada altura, a história ganha um lastro de “conto de vingança”, como se o zé-povinho aprendesse com o cinismo dos impunes e corruptos e preparasse um terreno para o take over social. O espírito do criado esmigalha-se e dá luz ao espírito dos esquemas e da retribuição. Talvez por isso, há quem compare a postura do último terço do filme às regras das histórias dos gangsters, e aí a referência direta pode mesmo ser Tudo Bons Rapazes, de Martin Scorsese, mesmo quando todo o guião está mais orientado para aguentar o choque da comparação a Slumdog Millionaire/Quem Quer Ser Bilionário?, o filme de 2008 de Danny Boyle que triunfou nos prémios da Academia de Hollywood. Mas se nesse conto de fadas havia resquícios de comédia e de musical de Bollywood, aqui é tudo negro e violento, mesmo quando há um humor subtil e sempre observacional, mesmo quando há uma ironia inscrita na denúncia das desigualdades políticas na Índia (não falta a personagem de uma líder política que exige luvas aos mafiosos, uma líder supostamente socialista).
Com algumas cedências ao entretenimento, O Tigre Branco desperdiça alguns fatores dramáticos, como o olhar para o desenvolvimento económico e capitalista da Índia contemporânea, tipificado através de um mapa de alusões aos novos negócios e a uma abordagem de escala a partir da qual a personagem de Balram se torna ele próprio um jogador no sistema de lucro e exploração.
Era aí que o realizador poderia ter um ponto de vista mais aceso, fosse ele cineasta que soubesse explorar momentos como a obsessão do motorista com a vinda do primeiro-ministro da China, alusão à forma como ele acredita que a união entre a China e a Índia ajudariam a secundarizar a potência EUA, aqui vista em declínio graças à sodomia e à dependência com os telemóveis.
E também parece ser excessivamente neutra a forma como o fascínio pelos tigres-brancos aparece na intriga, explicando-se ao espectador de forma didática como um pobre pode sonhar em ser um tigre-branco, animal que se distingue dos outros de forma rara entre gerações.
Falado em inglês e em hindu, O Tigre Branco não deixa de ser um objeto raro nas apostas da Netflix. Não deixa de ser um filme dentro do sistema de autores, mas há uma identidade narrativa que o coloca acessível para um público mais oriental, e aí o mercado indiano é o alvo.
Num ano em que há um tremendo engarrafamento na questão da temporada dos prémios, não deixa de ser uma obra que talvez fica a meio caminho... Ainda assim, bem recomendável como conto de caução moral.
Falado em inglês e hindu, O Tigre Branco, realizado por Ramin Bahrani, não deixa de ser objeto raro nas apostas da Netflix.