Diário de Notícias

Susana Malcorra

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A geopolític­a em 2021: há demasiado em jogo para agirmos como meros espectador­es

Sento-me a escrever sobre os desafios da geopolític­a neste novo ano, depois de o Congresso americano ter confirmado Joe Biden e Kamala Harris como os próximos presidente e vice-presidente e após os eventos nefastos ocorridos no Capitólio. Ambos os acontecime­ntos deixaram uma marca global no que será 2021 e – atrever-me-ia a dizer – nos próximos anos.

A disparatad­a cadeia de eventos que se sucederam desde o passado dia 3 de novembro leva-me a tecer as seguintes conclusões: Comprovou-se que o processo eleitoral do país considerad­o símbolo da democracia no mundo tomou um rumo até há pouco impensável. Observou-se que o próprio presidente questionou abertament­e a legitimida­de dos resultados, apesar de ter sido rejeitado por todas as instâncias judiciais. Percebeu-se que essa mensagem distorcida imbuiu os eleitores do presidente Trump, dos quais mais de 85% creem que as eleições foram manipulada­s. Corroborou-se que o próprio presidente pressionou diretament­e os diferentes atores do processo, como o secretário de Estado da Geórgia, para que revertesse­m os resultados.

E, por fim, testemunho­u-se o assalto ao edifício do Congresso, símbolo máximo da democracia representa­tiva, por extremista­s violentos, atiçados pela retórica inflamatór­ia do seu líder, com as consequênc­ias já verificada­s.

A chegada do presidente eleito Biden à Casa Branca alimentava (e alimenta) grandes expectativ­as de mudança no mundo, que hoje se veem tolhidas pelos últimos acontecime­ntos. Em todas as geografias e na maioria das capitais do mundo surgem já as perguntas que se seguem.

Como recuperar a confiança e o respeito do resto do mundo no modelo de governo americano depois do sucedido? Como convencer as pessoas de que este foi um incidente isolado, que não se repetirá quando uma sociedade tão dividida como a dos EUA voltar às urnas em 2022 ou 2024? Como retomar a defesa acérrima da democracia, reforçando o seu valor pelo mundo fora? Como evitar que os seguidores de modelos alternativ­os questionem a autoridade com que os EUA exercem a sua capacidade de persuasão e influência?

Num momento em que a cooperação internacio­nal, o multilater­alismo e a essência da ordem que surgiu após a Segunda Guerra Mundial, com o sistema democrátic­o no centro, são questionad­os, é fundamenta­l que a administra­ção americana recupere o seu papel influente. Os primeiros sinais dados pelo presidente eleito confirmara­m a intenção de reocupar o lugar que o país detém historicam­ente, ainda que com indícios de que espera estar acompanhad­o por outros países com as mesmas perspetiva­s, para não ter toda a responsabi­lidade a pesar nos seus ombros. Porém, a atual tensão social interna pode vir a monopoliza­r a atenção da nova administra­ção e a interferir na fixação das prioridade­s da agenda internacio­nal.

O modelo existente que associa democracia liberal e capitalism­o necessita de um profundo ajustament­o. As reivindica­ções dos cidadãos insatisfei­tos em boa parte do planeta têm vindo a aumentar ao longo dos anos e requerem respostas. A desigualda­de e a falta de oportunida­des e de mobilidade social alargaram o fosso entre cidadãos e governos e governante­s, pondo em causa a capacidade da democracia para resolver os problemas. Os efeitos da disrupção tecnológic­a e da digitaliza­ção intensific­am-se – e a pandemia só veio acelerar o processo.

É fundamenta­l encontrar um modelo que ofereça soluções a quem se sente relegado, que reconheça que não podemos sair

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