Raul M. Braga Pires
O dia em que Portugal quase reconheceu a Polisário e resgatou 17 pescadores de Aveiro
Oembaixador Eurico Paes, actualmente reformado, era à época dos factos que aqui relata o primeiro-secretário da Embaixada de Portugal em Argel. É também membro da Comissão de Relações Internacionais da Sociedade de Geografia de Lisboa, espaço no qual promove conferências, tendo algumas este cunho de memória diplomática.
Na primavera de 1980, a traineira Rainha do Mar, com 17 pescadores de Aveiro a bordo, foi apresada pela Polisário em águas sarauis, que os portugueses julgavam abrangidas no recém-assinado acordo de pescas com Marrocos. Relato do então primeiro-secretário Eurico Paes, em Argel:
“A Embaixada de Portugal em Argel foi imediatamente prevenida do sequestro dos 17 portugueses em águas sarauis pela Embaixada da República Árabe Saraui Democrática (RASD) em Argel (que era onde funcionava o verdadeiro governo saraui), que os homens só seriam libertados se o Ministro dos Negócios Estrangeiros português fosse a Argel negociar com as autoridades sarauis. Esta exigência trazia manifestamente água no bico pois, se isso acontecesse, equivaleria a um reconhecimento (pelo menos implícito) da independência da RASD por Portugal. Transmitido o acontecimento para Lisboa, logo o MNE Freitas do Amaral declarou que não se deslocaria a Argel para negociar a libertação destes detidos ilegitimamente. Prudente, Freitas não quis expor-se ao vexame. Imediatamente toda a imprensa portuguesa se atirou ao governo português, chefiado à época pelo arguto Sá Carneiro. Foi nessa altura que o primeiro-ministro português, já cansado com a pressão mediática e eventualmente receoso do efeito negativo que o assunto causava ao governo, resolveu enviar a Argel, não um membro do seu governo, mas o director das Relações Internacionais (RI) do PSD, para tentar resolver o assunto. Freitas não concordava em negociações com terroristas (como dizia) e, portanto, quis demarcar-se. Seria então uma acção partidária e não governativa.
Uma semana depois do aprisionamento dos pobres pescadores apareceu em Argel o Dr. Luís Fontoura, que dirigia o gabinete de RI do PSD. Trazia duas cartas, recebidas independentemente uma da outra. Uma do MNE Freitas do Amaral, que, não o mandatando para nada, apenas lhe limitava a acção, proibindo-o de falar em nome do governo português. A outra carta, mais institucional e formal, de Sá Carneiro, incumbia-o de representar o governo português nas negociações tendentes à libertação dos homens. Fontoura não tinha, assim, um duplo mandato. Mas também não queria deixar de cumprir o que um e outro dos líderes da coligação governamental lhe tinham recomendado. O grande problema prévio era assim o seu reconhecimento pelos ‘polisários’ como legítimo representante do governo português, para que, negociando com eles a nível de governo, pudessem dizer que o governo de Portugal tinha implicitamente reconhecido o governo da RASD.”
Interrompo a interessante narrativa para ir directo ao problema central, já que a Polisário/RASD exigiu que Portugal reconhecesse oficialmente a sua existência para libertar os 17 cativos portugueses. Como é que o enviado do PSD “descalçou esta bota”? De regresso ao narrador:
“Fontoura, a quem eu tinha entregue um jornal antigo onde, numa visita oficial que Felipe González tinha feito a Argel, ainda como líder da oposição espanhola, tinha respondido à sacramental pergunta que: ‘El PSOE reconoce la existência del pueblo sahraui en lucha.’ Fontoura sorri e toma nota. Vai ao deserto e regressa no dia seguinte com os homens, vitorioso.
À chegada ao aeroporto Houari Boumedienne, rodeado pelos 17 pescadores portugueses, diz aos jornalistas que o interrogam: ‘O PSD reconhece a existência do povo saharui em luta!’”