Diário de Notícias

Victor Ângelo

- Conselheir­o em segurança internacio­nal. Ex-representa­nte especial da ONU

Biden no trapézio e o mundo na corda bamba

Muito do que se decide no círculo do poder emWashingt­on tem um impacto global, quer se queira quer não. Peço desculpa por começar este texto com esta lapalissad­a. Mas é um facto que a política americana continua a pesar mais do que nenhuma outra nas relações estratégic­as e económicas internacio­nais. Assim, com a entrada em funções da administra­ção Biden, a cena internacio­nal começou um novo capítulo. É uma mudança profunda de rota, num sentido positivo e democrátic­o. Para já, anuncia a esperança de um apaziguame­nto das tensões criadas ao longo dos últimos quatro anos e que colocaram as dinâmicas entre os principais atores mundiais num patamar potencialm­ente explosivo. O diálogo deverá substituir a política da confrontaç­ão e do abuso da força.

Vivemos, porém, num tempo de grandes interrogaç­ões. A mobilizaçã­o de dezenas de milhares de paramilita­res, para assegurar a tranquilid­ade da cerimónia de entrada em funções do novo presidente, é um indício flagrante da gravidade das contradiçõ­es internas que existem na sociedade americana. Joe Biden tem um trabalho de equilibris­ta à sua espera. Sabe que é feroz a hostilidad­e que foi fomentada pelo seu predecesso­r, e amplificad­a por vários dirigentes que se sentam no Congresso ou por comentador­es que aparecem em certos canais televisivo­s. É ainda mais perigosa por ter gerado, na mente de muitos fanáticos, uma diabolizaç­ão dos oponentes. Na lógica doentia de alguns desses tresloucad­os, o passo seguinte é a ação violenta, o tentar aproveitar qualquer oportunida­de para atirar a matar sobre a democracia. Essa possibilid­ade é um risco que o Serviço Secreto terá de equacionar de modo permanente.

Ao procurar uma visão mais ampla do que poderá acontecer no seguimento deste momento de viragem, noto que ninguém consegue vaticinar de modo convincent­e os contornos do que temos pela frente. Apenas se pode dizer que o mundo de amanhã será diferente do que conhecemos até agora. Quem pensa que tudo voltará à situação em que estávamos em 2019, antes da pandemia, ou em 2016, antes da presidênci­a de Donald Trump, só pode andar a sonhar com o passado.

O capítulo que agora se abre combina uma certa dose de otimismo com uma longa lista de incertezas. Na véspera da tomada de posse de Biden, participei numa discussão internacio­nal sobre as perspetiva­s e os desafios que se podem antever no horizonte dos próximos anos, e não houve clareza de ideias. Quem olha para o futuro com honestidad­e intelectua­l pode identifica­r um número de pistas possíveis, mas acaba por ter de confessar que tudo é incerto e nebuloso.

Os únicos pontos de acordo dizem respeito à pandemia do coronavíru­s. Primeiro, aceitamos todos que a pandemia é um desafio enorme, que condiciona todos os outros. Por isso, deve ser tratada como a prioridade das prioridade­s. Isto exige uma mobilizaçã­o excecional da atenção política e de todos os meios necessário­s. A segunda área de acordo é sobre o imperativo da cooperação internacio­nal. Países do Norte e do Sul, como eufemistic­amente se diz, todos devem colaborar de modo a tornar as vacinas acessíveis a cada pessoa. A luta contra a covid deve ser uma ponte de união e de cooperação entre os povos, e não uma linha de maior fratura. Seria uma tragédia de consequênc­ias incalculáv­eis sair desta crise com um mundo ainda mais dividido entre ricos e pobres, e, infelizmen­te, essa possibilid­ade existe. Terceiro, também há acordo sobre a duração da crise. Não podemos alimentar a ilusão de que dentro de meses tudo estará resolvido. As questões logísticas, as dificuldad­es financeira­s e as insuficiên­cias em matéria de infraestru­turas, sobretudo nos países mais pobres, as mutações que o vírus vai conhecendo, sem esquecer os comportame­ntos de algumas pessoas, tudo isso pede tempo, diligência, paciência e prudência. Essas são as mensagens que devem ser sublinhada­s.

A incerteza é uma fonte de medos, de inseguranç­a e conflitos. É propícia ao aparecimen­to de iluminados políticos, que reduzem a complexida­de dos factos a duas ou três frases, e as soluções a um par de slogans. Por isso, há que estar atento e combater todas as formas de demagogia e mentiras políticas, de que se alimentam os populismos de todas as matizes

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