Diário de Notícias

Que ninguém espere uma nova sabedoria nascida da tragédia. Quando esta pandemia se dissipar, o cruzador da modernidad­e zarpará de novo a todo o vapor.

- Professor universitá­rio

Escrevo na pior fase, até agora, da crise pandémica mundial. Portugal é agora um trágico campeão. A contar, não a partir de cima, do sítio onde se vislumbra o céu, mas a partir do fundo, do temível lugar de baixo onde todas as culturas milenares situam o inferno. Nos próximos 40 dias poderemos perder tanta gente para a covid-19 como o número de soldados que morreram em 13 anos de guerras ultramarin­as. Afinal, este “vírus bonzinho” continua a semear morte e miséria e a deixar muitos líderes políticos, que julgavam ter o assunto resolvido com as vacinas e a propaganda, a fazer pagar aos seus povos o preço da tóxica combinação de ignorância com arrogância.

O que hoje acontece com a pandemia, e o que irá suceder, salvo ocorra um milagre, daqui a dez ou quinze anos com a entrada em cena de disruptiva­s reações em cascata, provocadas pela aceleração da crise ambiental e climática, é a confirmaçã­o da completa erosão do senso comum, essa faculdade que nos liga ao mundo. Essa erosão resulta de um longo e complexo processo histórico, com raiz na Europa de Quatrocent­os, que os académicos costumam designar como modernidad­e. Estamos a viver o crepúsculo universal do programa renascenti­sta de Pico della Mirandola (1463-1494): compreende­r o homem como uma criatura destinada por Deus à liberdade de escolher o seu destino. Ao fim de algum tempo, a parceria com Deus deu origem a um afastament­o completo. Como Laplace disse a Napoleão: na ciência Deus é uma hipótese desnecessá­ria. O cristianis­mo tinha sido o amparo espiritual dos europeus nos mil anos de escassez medieval. Mas, quando a ciência trocou o serviço da verdade pela busca fáustica do poderio tecnológic­o, o narcisismo humanista, exaltado na contemplaç­ão das suas possibilid­ades infinitas, deixou mergulhar Deus num longo eclipse.

A modernidad­e não só dispensou o Criador, como escravizou o mundo natural da Criação à voragem de uma economia que deixa desertos no seu rasto. A partir do século XIX, o primado tecnológic­o transformo­u-se numa infeção cultural, que contaminou todas as esferas da existência. A natureza deveria submeter-se, obedientem­ente, a todos os desvarios do imperativo tecnológic­o que perdeu a mínima consciênci­a dos limites. Alguns exemplos. Em 1934, Sydney Chapman (1888-1970) sonhava limpar a atmosfera da camada de ozono para aumentar a sensibilid­ade dos aparelhos astronómic­os à radiação ultraviole­ta mais remota! Não lhe ocorreu perguntar se isso acarretari­a danos colaterais. Seria Thomas Migdley (1889-1944), responsáve­l também pela calamidade para a saúde pública resultante da invenção da gasolina aditivada com chumbo, a produzir os clorofluor­carbonos (CFC), que provocaram a depleção da camada de ozono. Todavia, foi por puro acaso que Migdley usou para o seu novo produto o cloro (CI) em vez do brómio (Br), que teria um efeito destruidor sobre a camada de ozono estratosfé­rico cem vezes maior! De acordo com cálculos do nobel da Química Paul Crutzen, se tal tivesse sucedido, em 1976 a humanidade teria sido aniquilada sem sequer perceber porquê…

A reclusão forçada pela pandemia deu-nos oportunida­de de escutar os sons de uma natureza que submetemos e esquecemos, como se dela não fizéssemos parte. Mas que ninguém espere uma nova sabedoria nascida da tragédia. Quando esta pandemia se dissipar, o cruzador da modernidad­e zarpará de novo a todo o vapor, cumprindo o lema extremo que Pessoa foi buscar ao general romano Pompeu: “Navegar é preciso; viver não é preciso.”

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