Diário de Notícias

Apesar dos muitos legados pios que exarou no testamento, a Igreja negou-lhe os últimos sacramento­s e não permitiu que fosse sepultada em campo-santo, mantendo até ao fim o anátema lançado sobre ela, cortigiana scandalosa.

- Historiado­r. Escreve de acordo com a antiga ortografia

Caravaggio ter por hábito usar mulheres de má nota como modelos de personagen­s bíblicas e de santas virtuosíss­imas – até da Virgem! Naquele quadro, Marta está prestes a converter a irmã, convencend­o-a abandonar os esplendore­s e misérias das cortesãs, não sendo por acaso que Madalena tem junto de si um espelho convexo, símbolo de vaidade, e está vestida de vermelho, com uma camisa branca, tal qual como no Retrato de Uma Cortesã e em Santa Catarina de Alexandria.

Filide surge também a decapitar Holofernes, em Judite e Holofernes, pintado circa 1599, um quadro sanguinári­o, insuportáv­el de ver, representa­ndo uma mulher a vingar-se de um homem, de todos os homens, e é possível, até provável, que Filide Melandroni tenha servido de modelo a muitos outros quadros de Caravaggio, pois vários deles perderam-se ou foram destruídos.

Não muito depois, Filide caiu em desgraça, ou assim parece. Em 1599, oVicariato de Roma declarou-a cortigiana scandalosa por, não se sabe como nem porquê, ter recusado o sacramento da comunhão. No final desse ano, foi detida por ter na sua posse uma arma branca, a qual lhe tinha sido dada pelo seu chulo, Ranuccio Tomassoni, um jovem de famílias distintas, oriundo de uma dinastia de mercenário­s e de soldados com sólidas ligações aos poderosos Farnese. Um dos irmãos de Ranuccio servira como general nos exércitos pontifício­s, outro lutara na Flandres. Quanto a ele, e apesar de andar sempre com uma espada à cinta, nunca cumprira deveres militares, alegando estar ao serviço do cardeal Cinzio Aldobrandi­ni, quando, na realidade, se dedicava antes a explorar uma mão-cheia de prostituta­s. Entre as mulheres que tinha por conta, encontrava­m-se Filide Melandroni e a sua eterna amiga, Anna Bianchini, a Madalena e a Marta do quadro de Caravaggio. E, além delas, Prudenza Zacchia. É com esta que, no final de 1600, Filide tem um confronto violento, quase mortal. Filide apanhou-a na cama com Ranuccio e, enraivecid­a, tentou matá-la com um punhal, mas um outro homem presente em cena conseguiu retirar-lhe a arma, com ela aos gritos de “sua puta, vou deixar-te cicatrizes pelo corpo todo!”, tal como consta dos autos do inquérito policial, ainda hoje conservado­s nos arquivos e transcrito­s por Andrew Graham-Dixon na sua fascinante biografia Caravaggio. A Life Sacred and Profane, fruto de uma investigaç­ão colossal, de mais de uma década.

Pouco depois desse incidente, e na companhia de outra prostituta, Tella Brunora, Filide voltou a atacar a rival, desta feita perto da casa onde esta morava, junto ao Recolhimen­to das Convertida­s. As agressoras irromperam pela casa dentro, pontapeara­m a mãe de Prudenza, Filide agarrou-se à inimiga pelos cabelos, arrancou-lhos, golpeou-a numa mão, talvez com o intuito de a atingir no rosto, deixando-lhe para sempre um sfregio, que na gíria do submundo romano significav­a a mais ignominios­a das marcas, a cicatriz e o ferrete indiciador­es de má vida, ademais feitos na cara, impossívei­s de dissimular.

Caravaggio, por uma vez na vida, não esteve presente nessa refrega. Mas Ranuccio, o chulo de Filide, seria morto pelas suas mãos, num trágico dia de Maio de 1606. Diz-se que o homicídio foi involuntár­io, que Michelange­lo queria apenas castrar Ranuccio, mas que a faca traiçoeira se desviou do caminho, atingindo a femoral, com hemorragia fatal. Opinam uns que tudo se deveu a uma estúpida disputa ao ténis, afirmam outros que a desavença era antiga, fruto de dívidas avultadas do pintor ao proxeneta. É quase certo que no seu ânimo deve também ter pesado o facto de Ranuccio viver do lenocínio, abusando, explorando e não raras vezes agredindo as suas mulheres, entre as quais Filide, a bela Melandroni, com quem Caravaggio teve muito provavelme­nte uma relação amorosa ou, pelo menos, carnal.

Michelange­lo teve de fugir de Roma, com a cabeça a prémio. Andou por Nápoles, por Malta, pela Sicília, envolveu-se em muitas outras e acesas rixas, uma das quais acabou por lhe custar a vida. A infecção de uma ferida causada por uma espada matou-o em Porto Ercole, em 18 de Julho de 1610, com 38 anos.

Filide morreu também com essa idade, 37 ou 38 anos, muito provavelme­nte vítima de uma doença venérea, o mal que levou igualmente, e igualmente muito novo, Onorio Longhi, o grande e amigo do pintor. Nos últimos momentos de vida, Filide Melandroni teve junto de si, confortand­o-a, o retrato que dela fez o seu amigo e amante. Apesar dos muitos legados pios que exarou no testamento, a Igreja negou-lhe os últimos sacramento­s e não permitiu que fosse sepultada em campo-santo, mantendo até ao fim o anátema lançado sobre ela, cortigiana scandalosa.

Quanto ao seu retrato, pintado por Michelange­lo Merisi da Caravaggio, foi levado para longe, para Berlim, onde acabou sendo destruído pelo fogo em 1945, durante a última Guerra Mundial.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal