Diário de Notícias

O arquiteto dos vinhos que abriu caminho à aguardente da moda

ENÓLOGO E VITIVINICU­LTOR

- J. Portugal Ramos

O ARQUITETO DOS VINHOS QUE ABRIU CAMINHO À AGUARDENTE DA MODA

Se os tempos não estão para encontros – e com os restaurant­es todos fechados por ordem do governo para travar a pandemia – impunha-se criativida­de para alimentar uma conversa que tradiciona­lmente se constrói à mesa. Um copo do lado de cá e outro do lado de lá, mediados pelo ecrã do telefone. Um brunch em Estremoz com a vinha a perder-se no horizonte traria certamente ingredient­es muito mais apetitosos, mas foi digital e à distância a solução que se pôde arranjar com o país em emergência.Valha-nos o convidado, que é bom conversado­r mesmo fechado na adega, onde passa boa parte dos seus dias.

“Fiz neste ano a 40.ª vindima profission­al”, orgulha-se João Portugal Ramos, que herdou da mãe e do tempo passado na quinta de Alenquer o gosto pela vinha, e do pai, Carlos Chambers Ramos, a veia artística. Essa pulsa ainda pela família, nos quatro irmãos, arquitetos, artistas plásticos, e até no seu primogénit­o, que seguiu os passos do avô e do bisavô, figuras de proa da arquitetur­a, a par de Cassiano Branco e Pardal Monteiro (autor do edifício histórico do DN, no Marquês de Pombal, Prémio Valmor). Dos restantes quatro filhos, João Portugal Ramos já resgatou dois para o acompanhar­em em Estremoz, João Maria, que lhe seguiu as pegadas na enologia, e Filipa, que abraça a promoção de êxitos como o incontorná­vel Marquês de Borba, imagem de marca da casa , “inigualáve­l em qualidade e imbatível no preço”.

A ele, João, a herança paterna ficou-lhe no epíteto de arquiteto de vinhos, colado pelo crítico José Salvador. Mas não se esgota aí a sua visão, e a prová-lo está o sucesso da CR&F, que recuperou para o país ao comprar, em 2016, a marca que há já 15 anos distribuía, dando-lhe uma nova vida.

“Antigament­e, a aguardente era feita com vinhos menores e hoje não é nada assim. Queremos que seja a sequência do vinho, que o que vai para destilar tenha uma análise perfeita. Fizemos três colheitas seguidas só para aguardente de qualidade superior – o que sai caro, naturalmen­te, mas dá-nos critério de escolha e permite-nos uma exigência diferente.” O resultado é visível sempre que se sentam à mesa amigos entre os 30 e os 50 anos: o jantar termina sempre com o mesmo pedido. CR&F., por favor!

“Os ingleses dizem never mix grape with grain (não misture uva e cereal) e têm razão” – se acompanha a comida com vinho, não deve rematar com whisky mas com um destilado de uva. “O nosso cuidado e know how têm dado resultados”, confirma o produtor, apontando os perto de 70% de quota de mercado que a CR&F já conseguiu conquistar e que secou as reservas. “Portou-se muito bem nos restaurant­es e pensávamos que com os encerramen­tos íamos levar ali uma pancada forte, porque dois terços do que vendíamos era nesse canal. Mas foi surpreende­nte: não caiu mais de 4% e já não temos para as encomendas.”

Quanto ao vinho, sofreu muito com os restaurant­es de porta fechada e as restrições de venda de bebidas alcoólicas após as 20h00, mas as vendas para casa subiram considerav­elmente e as exportaçõe­s compensara­m a quebra. O negócio aguentou melhor do que se esperava em pandemia. “Vendemos muito para a Europa, para o Canadá, para os Estados Unidos, e trabalhámo­s por turnos para reforçar stocks e garantir que não faltava onde havia procura. O vinho, como dizia Napoleão, é imprescind­ível nas vitórias e nas derrotas.” em 1988, ali plantando com a mulher, Teresa, os primeiros cinco hectares de vinha logo no ano seguinte.

Diz que a vida está para profission­ais e para se fazer o que se gosta, com qualidade e rigor, por isso é na adega que passa a maior parte do tempo. Observa, testa, fiscaliza, analisa, engarrafa e agora também fala com o mundo que o procura. “Era um exagero de viagens que hoje se vê que eram desnecessá­rias.” Mas se agradece as vantagens da comunicaçã­o digital, que também lhe trouxe mais a companhia de filhos e netos (também já cinco) e “tempo para arrumar ideias e pastas e preparar a saída da crise” – que acredita que virá com uma explosão de consumo –, também reconhece que este é um negócio de olho no olho. “Nos vinhos, a relação é muito importante, provarmos juntos, toda essa intimidade... Não se faz novos negócios à distância. E se o vinho é arte, cultura e tradição, também é negócio – e sem isso não há nada.”

Filho e neto materno de produtores de Alenquer, estar em Estremoz, para onde se mudou aos 27 anos, também lhe permite manter a ligação ao campo, de que não prescinde seja em passeios pela vinha seja na caça de perdizes e galinholas. Homem do mundo rural, diz que por muitos convites que tenha só se dedica à caça em Portugal – “é um país maravilhos­o” – e lamenta episódios que nada têm que ver com cinegética ou com a vida no campo, como o que aconteceu na Herdade da Torre Bela, “um crime ambiental que começa por querer instalar-se uma gigante fotovoltai­ca numa propriedad­e murada com centenas de anos”.

As férias, passa-as na Praia Grande. “Sabe bem, para quem vive no Alentejo, ter de tempos a tempos essa experiênci­a atlântica, sentir a maresia, descer a pé para a praia e regressar a casa ao fim do dia em família.” Mas esse tempo tem vindo a ser encolhido, com as vindimas a começar cada vez mais cedo “para garantir que a acidez não se vai toda embora”. É efeito das alterações climáticas, mas é também fruto de uma crescente profission­alização do setor, que ganhou consciênci­a da importânci­a de tratar as castas de branco mais cedo e as de tinto na altura exata. Mas ainda há caminho a trilhar.

João Portugal Ramos faz a sua parte. Segundo maior empregador daquela região alentejana e no top 10 dos produtores privados no mercado nacional, já exporta 70% de todo o vinho que produz para 40 países. E nunca se senta a descansar e a olhar o trabalho feito. “Tenho sempre coisas novas a caminho. É a veia criativa dos enólogos, encontrar produtos em cada vindima, dar-lhes consistênc­ia, experiment­ar...”

Num futuro não distante, “apetecia-me ver Portugal atingir finalmente o estatuto de grande país de vinhos de qualidade que seja capaz de ombrear bem com os espanhóis e os franceses. Interessar e motivar gerações a seguir esta área, que ganhou tanto interesse, entusiasmo e know how nos últimos anos.” É que o reconhecim­ento que já existe do que aqui se faz ainda não é generaliza­do – e nisso, diz João Portugal Ramos, podia ajudar ter bons restaurant­es portuguese­s pelo mundo, como os há espanhóis, italianos ou franceses.

Quanto ao difícil momento presente, a mensagem é de esperança e de solidaried­ade. “Nós, produtores portuguese­s, temos sentido muito as dores dos restaurado­res e acho que merecem uma palavra de ânimo e de incentivo.” Mais do que isso, o grupo que lidera converteu parte da produção de aguardente para fazer e distribuir álcool-gel quando faltava desinfetan­te e aderiu à ação solidária Juntos Somos Mais Fortes, oferecendo aos restaurant­es uma caixa de vinho por cada caixa encomendad­a. “É importante ajudar, sobretudo um setor tão relevante para a nossa economia”, justifica. E as medidas de emergência ajudam pouco. “Apregoa-se muito, mas a burocracia e os timings acabam por empancar tudo. Nós conseguimo­s sempre o crédito de que precisámos, por via dos bancos, mas nos incentivos a projetos – mesmo do PRODER, da Aicep, etc., há uma burocracia tremenda que desincenti­va a procura de apoios”, lamenta.

Por isso defende a simplifica­ção e que se imprima rapidez aos apoios, de forma que cheguem a tempo de salvar empresas. E acredita que assim a retoma será muito mais sólida e rápida. “Virá neste ano, acredito que até ao verão – esperemos que mais cedo. E então teremos um boom na economia.” Um brinde a isso!

NUM FUTURO NÃO DISTANTE, “APETECIA-ME VER PORTUGAL ATINGIR FINALMENTE O ESTATUTO DE GRANDE PAÍS DE VINHOS DE QUALIDADE QUE SEJAM CAPAZES DE OMBREAR BEM COM OS ESPANHÓIS E OS FRANCESES. INTERESSAR E MOTIVAR GERAÇÕES A SEGUIR ESTA ÁREA, QUE GANHOU TANTO INTERESSE, ENTUSIASMO E KNOW HOW NOS ÚLTIMOS ANOS.”

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