Casos de (in)justiça
Uma justiça de pernas para o ar, que em vez de garantir a reposição do bem cria situações de brutal injustiça e faz, ela própria, as suas vítimas, com contornos de crueldade assinaláveis. É este o retrato que nos deixa quem bem sabe do que fala, o bastonário dos advogados, na entrevista que pode ler nas próximas páginas desta edição. E é uma imagem bem vívida e tenebrosa a que pinta, e que todos conhecemos sobejamente bem: entre atrasos inexplicáveis nos prazos, com sentenças de primeira instância a chegarem a demorar dez anos e um custo (taxas, custas e emolumentos) totalmente desproporcionado em relação à realidade das famílias e das empresas portuguesas – a pensar mais no financiamento do sistema do que na obrigação de garantir o acesso de todos –, a nossa justiça só serve “os muito ricos e os indigentes”.
Há décadas que ouvimos o mesmo diagnóstico, mas não há especialista que consiga curar-nos desta doença que vai corroendo a realidade portuguesa. E não haja dúvidas de que corrói, destrói, mata, porque um país sem justiça é uma nação que não funciona, que não protege, que desresponsabiliza e que premeia e incentiva o mau comportamento. Deixa sem esperança aqueles que cumprem a lei.
Tudo isto se torna mais grave em momentos de extrema violência, de brutalidade social, como o que atualmente vivemos. Basta dizer que nos parece, enquanto sociedade, normal e indigno de contestação que se exija prova de quem se é para algo tão simples como dar um passeio na rua.
A saúde de todos tem de estar no topo das nossas preocupações, sim, mas isso não pode significar que em seu nome se sacrifique os direitos humanos – e é isso que está em causa. Se o permitirmos sem mais, abre-se uma porta que nenhum de nós quer ver o que esconde do outro lado.
Isso não parece, porém, inquietar aqueles que rasgam vestes perante os putativos riscos de colapso de direitos adquiridos que advêm do crescimento dos apoiantes de um partido de extrema-direita. A esta tragédia, que é real e contemporânea, infelizmente já estamos todos habituados. Veja-se como lidamos bem com o facto de banqueiros, políticos e até um antigo primeiro-ministro, acusados de crimes, aguardarem julgamento – já nem falo de cumprirem a pena que possa decorrer de uma sentença de culpa – há anos e anos.
Só quando o caso se torna pessoal é que nos salta a indignação. Só quando é a nós que diz respeito a incredulidade de um processo simples cuja decisão se arrasta sem razão, quando uma indemnização em dívida demora uma década, quando a injustiça nos bate à porta. Se não exigirmos mais, nunca nada vai mudar. E um dia será cada um de nós a ter de lidar com as consequências da sua indiferença.
Um país sem justiça é uma nação que não funciona, que não protege, que desresponsabiliza e que incentiva o mau comportamento.