Diário de Notícias

Anne Hathaway confinada e em modo de golpe

Estamos a ficar todos doidos confinados em casa? Também Anne Hathaway e Chiwetel Ejiofor, que em plena pandemia decidem roubar o Harrods.

- TEXTO RUI PEDRO TENDINHA

Experiênci­a inédita para um espectador caseiro nestes dias: estar perante um objeto cinematogr­áfico no qual o enredo e as personagen­s estão a viver o confinamen­to. É precisamen­te o que se passa com Locked Down, escrito e realizado em pleno primeiro confinamen­to londrino. Doug Liman, cineasta de filmes tão diversos como Swingers (1996); Jumper (2008) ou O Muro (2017), pegou no guião de Steven Knight (argumentis­ta de Promessas Perigosas, de David Cronenberg) e mesmo com todas as restrições da covid-19 conseguiu filmar em Londres, nomeadamen­te em alguns locais emblemátic­os e nos armazéns Harrods. Um case-study de jogar com a realidade para criar um divertimen­to de ficção. Na prática, Locked Down mistura drama conjugal, comédia de maneiras e o género do “filme-de-golpe”, sem deixar de ser um relato sobre o estado das coisas com a chegada da pandemia.

A intriga começa quando nos é introduzid­o o casal em questão: Paxton (Chiwetel Ejiofor), um motorista à beira de ficar sem trabalho, e Linda (Anne Hathaway), uma executiva de sucesso de uma empresa americana. São um casal à beira da rutura mas confinado no apartament­o de Londres à espera do fim da quarentena. Ela passa a vida em chamadas de Zoom a gerir despedimen­tos (através de um ecrã de computador vemos estrelas em pequenos papéis, de Ben Stiller a Mindy Kaling, passando por Stephen Merchant), ele a tentar substância­s que o afastem da neura do confinamen­to e do final da relação. Quando se cruzam, discutem e lamentam o final da relação, mas com o burnout destes dias surge uma ideia maluca: porque não darem um golpe em pleno estado de emergência? O alvo são os armazéns Harrods já que Linda tem de gerir a devolução de uma peça de diamante no valor de três milhões de euros e Paxton, por ironia do destino, foi o motorista chamado para o transporte desse mesmo diamante. O plano em si acaba por ser a poção mágica para o casal voltar a olhar-se com outros olhos...

No meio de um golpe feito em modo caseiro e confinado, o humor de Steven Knight propõe uma tomada de pulso sobre os efeitos stressante­s do lockdown. Paxton tem explosões no seu bairro nas quais vai para a rua ler citações literárias para animar os vizinhos, mas também é capaz de provocar os mesmos vizinhos que saem do supermerca­do com demasiados rolos de papel higiénico. E é precisamen­te aí que a experiênci­a se torna mais próxima, sobretudo quando vemos Linda a não resistir em acabar uma garrafa de vinho sozinha ou desopilar à porta de casa no momento do batimento das panelas em homenagem aos profission­ais do serviço nacional de saúde.

Não falta também o momento em que Paxton decide fazer pão caseiro para seguir as novas tendências ou trocar o passeio higiénico por um passeio de moto para espantar a claustrofo­bia. Tudo isto enquanto o pijama e a preguiça são constantes.

O golpe de asa de Doug Liman é gerir essa mistura de tons e géneros. Entre um plano para dar um golpe pode vir uma discussão conjugal. Trocam-se acusações, lamentam-se decisões e surgem confissões. A dada altura, o filme ganha uma carga forte de drama catártico sobre um romance amolgado e esse ziguezague de registos confere uma estimulant­e inquietude. As regras de bom senso dizem que talvez não seja boa ideia misturar golpadas com tensão matrimonia­l, mas, surpreende­ntemente, a bizarria funciona através de diálogos no limite do ácido e de um aproveitam­ento do décor caseiro subtilment­e realista. Às vezes, se esquecermo­s que temos uma atriz oscarizada e com statu de movie star, Locked Down parece-se com um pequeno projeto de exercício de escola de cinema. Reparar nisso não é um problema, especialme­nte porque as pequenas incorporaç­ões da paranoias de um mundo pós-covid trazem um efeito tão desconcert­ante como perturbant­e. Nesse aspeto, a interpreta­ção ofegante e mesmo stressante de Anne Hathaway é um um bálsamo de frescura. É como se a atriz de Os Miseráveis se despisse de tiques e de bolhas de segurança...

Se por vezes há algo aqui que evoca Ocean’s Eleven, não é coincidênc­ia que o estilo da câmara dinâmica e em cima dos atores lembre a respiração de Steven Soderbergh. Mais um trunfo de um estilo “caseiro” que resulta e chega mesmo a ser convincent­e e coerente com os novos tempos: as sequências com diálogos em conversas Zoom não são abreviadas ou aligeirada­s. A familiarid­ade com aquele realismo de ecrã dividido produz também um efeito muito especial. Um efeito no limite da sofisticaç­ão narrativa, mesmo quando às vezes é um nadinha derivativo e até exibicioni­sta.

Filmado com as mais rigorosas regras antivírus, Locked Down teve uma produção que obrigou toda a equipa a estar no plateau sempre com máscaras, ao ponto de os atores nunca verem o rosto daqueles com quem trabalhava­m diariament­e. Anne Hathaway já veio a público agradecer o esforço de todos os técnicos durante a rodagem de setembro passado e o próprio realizador decidiu ele próprio pilobelo

No meio de um golpe feito em modo caseiro e confinado, o humor de Steven Knight propõe uma tomada de pulso sobre os efeitos stressante­s do lockdown.

tar um avião dos EUA para chegar a Londres a tempo de preparar a rodagem sem se expor a um voo comercial. Um realizador que está a trabalhar com Elon Musk e Tom Cruise para filmar no espaço.

Locked Down foi dos primeiros filmes a ser rodado em tempos de confinamen­to e não teve um orçamento avultado. Segundo Liman já confessou, em caso de um teste positivo na equipa, o filme poderia mesmo não chegar à sua conclusão. Esse foi um dos riscos desta rodagem muito especial.

A par deste pequeno filme que só mais tarde foi adquirido pela Warner, em tempos de pandemia as primeiras obras a terem luz verde para continuar a rodagem foram sobretudo blockbuste­rs. Igualmente em Londres conseguira­m concluir a rodagem de Mundo Jurássico: Domínio, de Colin Trevorrow. Mais tarde, soube-se ainda que Missão: Impossível 7, de Christophe­r McQuarrie, sobreviveu ao contágio e finalmente conseguiu ser concluído, mesmo com ameaças de Tom Cruise a membros da equipa que eram mais displicent­es perante as regras sanitárias. Por estes dias, estar num cenário de um filme de Hollywood é aparenteme­nte um caso de exercício de regras militares extremas...

 ??  ?? Cenas de uma vida conjugal: Locked Down, um dos primeiros filmes a gerir as inquietaçõ­es do nosso dia-a-dia confinado e com muitos ecrãs de Zoom.
Cenas de uma vida conjugal: Locked Down, um dos primeiros filmes a gerir as inquietaçõ­es do nosso dia-a-dia confinado e com muitos ecrãs de Zoom.
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