Diário de Notícias

Tlön, Kekistão, Orbis Tertius

- Rogério Casanova Escreve de acordo com a antiga ortografia

No conto de Borges Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, uma conspiraçã­o global é acidentalm­ente descoberta pelo narrador: uma conjura secreta que dedicou anos a falsificar histórias, almanaques e volumes enciclopéd­icos sobre um mundo inventado chamado Tlön, descrevend­o ao pormenor as suas cidades, paisagens, populações, leis e filosofias. Aos poucos, à medida que as falsificaç­ões se multiplica­m e a sua dispersão e visibilida­de crescem, o rigor dessa colossal efabulação começa a encantar a humanidade e a substituir sistematic­amente aquilo que outrora era real: “Já penetrou nas escolas o conjectura­l idioma primitivo de Tlön; já o ensino da sua história harmoniosa (e cheia de episódios comoventes) obliterou o que presidiu à minha infância; já nas memórias um passado fictício ocupa o lugar de outro.” Em breve, línguas e hábitos antigos desaparece­rão, objectos imaginário­s ganharão forma física, e o o mundo inteiro será Tlön. “Uma dispersa dinastia de solitários”, lamenta o narrador, referindo-se à cabala desconheci­da que iniciou a patranha, “conseguiu mudar a face do mundo.” Por outras palavras, o shitpostin­g de heresiarca­s anónimos revelou-se uma força tão poderosa que alterou drasticame­nte a realidade material.

Tlön é uma das melhores e mais coerentes descrições do processo chamado meme magic, frase que voltou a ser cautelosam­ente usada nesta semana, após um longo período de hibernação. Um artigo da Forbes e uma peça na MSNBC mencionara­m-na a propósito da saga GameStop, explicando com solenidade a forma como utilizador­es do Reddit com nomes como “Thicc Dads Club” e “DeepFuckin­gValue” eram agora “forças de mercado”. A justaposiç­ão de registos entre subcultura­s online eo mainstream é quase sempre hilariante, e a tradução do episódio pela imprensa tradiciona­l lembrou o período glorioso de 2016, em que floresciam quase diariament­e interessan­tíssimas interpreta­ções esotéricas da ascensão de Trump. Feitiçaria de memes! Os bonecos que ganharam a eleição! Artigos sobre Julius Evola! René Guenon! Sobre Aleksandr Dugin! (Todo o fenómeno foi reminiscen­te de um mini-boom semelhante na historiogr­afia popular nos anos 1970, sobre as raízes dos nazis no ocultismo).

Um dos documentár­ios mais interessan­tes de 2020, Feels Good Man (disponível na Amazon Prime) conta parte dessa história, através da figura de Pepe, o sapinho que se tornou gradualmen­te uma espécie de suástica virtual para o século XXI. Pepe começou por ser a criação de um pacato ilustrador california­no chamado Matt Furie (a julgar pelo documentár­io, um dos melhores seres humanos do planeta), inserido numa banda desenhada em que vários animais antropomór­ficos comiam piza, fumavam ganza e iam a festas. Numa das tiras, um companheir­o de Pepe entra sem aviso na casa de banho e encontra-o a urinar de pé, com as calças e a roupa interior pelos tornozelos. Quando é interrogad­o sobre essa intrigante escolha logística, o sapo responde “Feels good, man”. A frase e a imagem foram rapidament­e adoptados por uma série de comunidade­s online (a começar, estranhame­nte, por fóruns de culturismo), até migrar para o 4Chan, onde versões modificada­s do painel se tornaram componente­s de um dialecto de inclusão e exclusão.

A coisa poderia ter ficado por aí, mas à medida que a internet se foi consolidan­do em plataforma­s mais amplas, Pepe foi sendo redescober­to e transferid­o: primeiro por youtubers, depois por celebridad­es no Instagram. Em 2014, quando Cardi B e Katy Perry publicaram imagens de Pepe, o 4Chan reagiu como qualquer subcultura quando o mainstream a tenta cooptar: com uma mistura de fúria possessiva e auto-sabotagem. A internet começou a ser rapidament­e inundada com as versões mais tóxicas do meme que era possível inventar: Pepe com a legenda “Matem os judeus”, Pepe a pilotar os aviões de 11 de Setembro, Pepe a cometer pedofilia, etc.

A trajectóri­a de Pepe é apenas aquilo que a internet faz. A velocidade e o nível de tolice inspiram uma categoria específica de deslumbram­ento; ao seu jeito extravagan­temente anárquico, talvez seja a mais pura manifestaç­ão deste processo de manufactur­a de um folclore virtual, em que a disseminaç­ão é sempre revisionis­ta, e em que o “significad­o” final é algo cuja circulação vai protelando e tornando mais opaco. Como muito do que acontece na internet, não é parte de uma conversa, ou sequer de um argumento, mas um anúncio – em que o que é anunciado é um projecto provisório de curadoria identitári­a.

Quando Trump entrou em cena no ano seguinte, a hiperpatet­ice da sua candidatur­a à presidênci­a foi prontament­e adoptada pelo exército de heresiarca­s pepistas, que entretanto já tinham acrescenta­do alguns volumes a Tlön: Kek, uma divindade egípcia com cabeça de sapo, foi reivindica­da para a causa, e essa divinidade semi-irónica presidiu às primeiras manifestaç­ões de “magia memética”, quando algo afirmado no reino digital se concretizo­u no mundo real.

Um dos mais absurdos (e interessan­tes) entrevista­dos de Feels Good Man é um “ocultista e druida” americano chamado John Michael Greer, que recapitula algumas dessas sincronici­dades e acidentes de numerologi­a: como os memes (deliberada­mente falsos) sobre a “doença” de Clinton “causaram” o seu desmaio público durante a campanha; ou como os números arbitrário­s que identifica­vam posts no 4Chan “previram” a vitória eleitoral de Trump. Tal como acontecia nos espaços online que comenta, nunca é possível determinar com exactidão quão a sério se devem levar as afirmações de Greer. A postura oficial parece ser qualquer coisa como esta: Kek não é uma entidade real; mas caso fosse, a realidade política não seria diferente, portanto aqui estamos.

É uma ilusão peculiarme­nte contemporâ­nea, que acaba por lisonjear os vocabulári­os e as posturas dos extremamen­te online, transforma­ndo-os em heróicos sucessores dos conjurados anónimos de Borges. A verdade é que mesmo os blindados pela ironia podem ser vítimas cognitivas da sua própria mitografia. Cada nova geração desde o início do século XX acreditou que podia alterar balanços de poder antigos e estruturai­s através da combinação de pujança demográfic­a e tecnologia­s democratiz­antes; e cada uma só teve razão quando deixou de ser a nova geração e passou a ser a geração anterior. A ideia de que a merdaposta­gem de batráquios em fóruns pode ser mais consequent­e do que os humores flutuantes de um eleitorado de consumidor­es de meia-idade e telespecta­dores de terceira idade é interessan­te e persuasiva apenas como ficção apócrifa. Não pertence à Terra, mas a Tlön.

A trajectóri­a de Pepe é apenas aquilo que a internet faz. A velocidade e o nível de tolice inspiram uma categoria específica de deslumbram­ento; ao seu jeito extravagan­temente anárquico, talvez seja a mais pura manifestaç­ão deste processo de manufactur­a de um folclore virtual em que a disseminaç­ão é sempre revisionis­ta.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal