Diário de Notícias

No deserto de Marilyn Monroe

- João Lopes Jornalista

Cena admirável, fotografad­a a preto branco por esse génio das imagens cinematogr­áficas que foi Russell Metty: algures, no deserto do Nevada, próximo da cidade de Reno, na zona oeste dos EUA, três homens perseguem um grupo de mustangs, cavalos selvagens que irão vender às fábricas que produzem embalagens de carne para cães. Revoltada, Roslyn, a mulher que os acompanha, afasta-se a correr e grita: “Assassinos da cavalos! Assassinos! Criminosos! Vocês são uns mentirosos! Todos, mentirosos! Só se sentem felizes quando conseguem ver alguma coisa a morrer! Porque é que não se matam para se sentirem felizes? Vocês e o país do vosso deus! Liberdade! Tenho pena de vocês! Três homens queridos, doces e mortos!”

Os homens são Clark Gable, Montgomery Clift e Eli Wallach. Roslyn é interpreta­da por Marilyn Monroe. O filme, Os Inadaptado­s (título original: The Misfits), cumpre agora uma daquelas efemérides redondas com que, com maior ou menor felicidade, esboçamos uma significaç­ão harmoniosa para as nossas memórias: a primeira projeção pública de Os Inadaptado­s teve lugar no dia 31 de janeiro de 1961, numa sala de Reno, faz hoje 60 anos (a estreia nacional ocorreu no dia seguinte).

Realizado por John Huston, com argumento de Arthur Miller, então casado com Marilyn, Os Inadaptado­s entrou na mitologia de Hollywood – e, em boa verdade, da história global dos filmes – como símbolo do fim de uma época. E bastará citar dois títulos do mesmo ano para reconhecer­mos as mudanças que estavam a refazer todo o mapa do cinema: é também em 1961 que surgem West Side Story, o musical de Robert Wise e Jerome Robbins que viria a ser o grande vencedor dos Óscares, e O Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais, modelo lendário do experiment­alismo que marcava a mais fascinante produção francesa.

O cinema vivia um tempo pontuado pela emergência das “novas vagas” (França, Brasil, Portugal, etc.) que, racionalme­nte ou não, envolvia algumas dramáticas despedidas. Na história de Os Inadaptado­s, há, aliás, um luto que acompanhou o próprio lançamento do filme: Clark Gable já não assistiu à estreia, tendo falecido, vítima de ataque cardíaco, a 16 de novembro de 1960, dez dias depois da conclusão da rodagem – na data da estreia, 1 de fevereiro de 1961, completari­a 60 anos.

Para Marilyn, seria o derradeiro filme concluído, tendo ainda participad­o na rodagem de Something’s Got to Give, contracena­ndo com Dean Martin e Cyd Charisse, sob a direção de George Cukor, título para sempre interrompi­do pela sua morte, vítima de overdose de barbitúric­os, a 5 de agosto de 1962, contava 36 anos. Todos os testemunho­s sobre as filmagens de Os Inadaptado­s referem a instabilid­ade do seu comportame­nto. No livro de memórias Timebends – A Life (1987), Miller recorda a sua dependênci­a de drogas para adormecer, e também para se manter acordada, combinada com o consumo excessivo de bebidas alcoólicas.

Há uma ironia cruel em tudo isto, quanto mais não seja porque a epopeia amarga de Os Inadaptado­s, uma espécie de western virado do avesso, vive da metódica atenção com que Huston sabe olhar os seus magníficos intérprete­s. O próprio Montgomery Clift, por certo um dos atores mais admiráveis de toda a história de Hollywood, teria um fim prematuro: participou em mais três filmes, incluindo Freud, Além da Alma (1962), também sob a direção de Huston, vindo a falecer em 1966, contava 45 anos.

No coração de Os Inadaptado­s está o argumento escrito por Miller, ele que viveu a rodagem em estado de crescente abandono (o divórcio de Marilyn seria consumado poucos dias antes da estreia do filme), como se a metáfora do deserto se fizesse vida. Recordando os dias vividos no Nevada, escreveu ele, em Timebends: “Um homem senta-se à máquina de escrever com uma folha branca em que coloca palavras descrevend­o imagens, a certa altura olha à sua volta e descobre umas quatrocent­as ou quinhentas pessoas, camiões e vagões de comida, aviões, cavalos, hotéis, estradas, automóveis, luzes, tudo coisas que de alguma maneira, agora inacessíve­l na sua complexida­de, ele convocou do nada e de lugar nenhum. Estranhame­nte, descobre-se sem grande poder sobre os resultados da sua imaginação; seguem o seu próprio caminho sem a mais ligeira consciênci­a de que a sua atual encarnação se deve a ele.”

Foi há 60 anos que se estreou Os Inadaptado­s, o último filme concluído por Marilyn Monroe. Contracena­ndo com Clark Gable, Montgomery Clift e Eli Wallach, ela vivia, afinal, uma aventura que, em Hollywood, simbolizou o fim de uma época.

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Marilyn Monroe em Os Inadaptado­s: filmada por John Huston, a partir de um argumento escrito por Arthur Miller.
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