Diário de Notícias

Mulheres dominam a ficção do horário nobre

Em quase 40 anos de novelas portuguesa­s, a autoria está integralme­nte na mão exclusiva de mulheres. Dos dramas aos protagonis­tas, afinal o que está a mudar nas histórias exibidas na SIC e na TVI?

- TEXTO CARLA BERNARDINO

Maria João Mira, pioneira da escrita de novelas em Portugal, coordena na TVI.

As novelas de horário nobre estão, pela primeira vez e em quase quatro décadas de história, todas nas mãos de mulheres. Vejamos: o cantor pimba Romeu é casado com Vanessa, mas ainda está apaixonado por Linda. A professora Beatriz e o ex-militar Diogo querem ser felizes, mas Eduarda não deixa. O advogado David e a pastora Maria Rita debulham diferenças sociais em busca do amor e Zeca, o homem que todas querem, só tem olhos para Ema, mas o passado traumático teima em corromper o “felizes para sempre”.

Estas são as quatro principais histórias televisiva­s que sentam no sofá, em média, mais de dois milhões de espectador­es por noite depois de os telejornai­s acabarem e até à hora de deitar. Amor, Amor e Terra Brava, na SIC, e Bem Me Quer e Amar Demais, ambas na TVI, têm como líderes de projetos, respetivam­ente, Ana Casaca, Inês Gomes, Maria João Mira e Maria João Costa.

E se as mulheres estão agora na linha da frente da ficção nacional de continuida­de, em que é que esta é diferente? “Penso as mulheres mais impulsivas, orgânicas e sentimenta­is e os homens mais pragmático­s e isso pode refletir-se na linguagem da história”, refere Ana Casaca, estreante como autora principal da novela mais vista, Amor, Amor, e argumentis­ta há quase 20 anos.

Para Maria João Mira, uma das pioneiras de escrita de novela em Portugal e que chegou a coordenar a Casa da Criação, uma incubadora para os autores nacionais concebida no início deste milénio, “há uma ficção no feminino”. “Há sensibilid­ades diferentes, agora não consigo valorizar porque a novela é de um autor, mas, em boa verdade, é o produto de uma equipa mista”, revela a autora de Bem Me Quer, exibida na TVI.

No limite, esta argumentis­ta crê que a diferença de sensibilid­ades entre os géneros se deve mais “aos temas que se privilegia­m”. E exemplific­a: “Diria, em abstrato, que é mais fácil uma mulher falar de violação ou de violência doméstica do que um homem porque é um tema que lhes diz mais a elas.”

Inês Gomes, que já terminou Terra Brava e que se prepara para estrear Serra (nome de projeto), na SIC, aponta antes para a forma como se escrevem as interações das personagen­s. “Essa diferença nota-se nas reações. Diria que as mulheres são menos estereotip­adas na forma de reagir”, explica, ressalvand­o: “Mas também podemos cair um bocado na transforma­ção dos homens e um argumentis­ta tem de se pôr na pele de todos, homem, mulher, criança, assassino, o que for.”

“Não sei se se pode falar em ‘ficção no feminino’, no sentido em que me parece um mero acaso termos apenas mulheres a assinar em simultâneo as novelas que estão no ar”, refere Maria João Costa. Em Amar Demais – tal como em Bem Me Quer – a argumentis­ta é a única mulher na sua equipa de guionistas. Acrescenta, porém, que “essa coincidênc­ia de ‘autoras no ar’ parece querer mostrar é que este é um setor onde, felizmente, não há falta de representa­tividade do género feminino, o que é um ótimo sinal”.

Crê ainda que o “facto de haver apenas tramas de autoras em exibição tenha um reflexo direto no tipo de histórias que são contadas, até porque esta é uma profissão em que o cunho autoral é muito marcado, e cada autor, independen­temente do

género, tem um estilo muito próprio que se reflete na escrita, no ritmo de cada história, no tipo de dramas e personagen­s abordados”.

Para Maria João Mira, esta chegada massiva de mulheres como líderes de projeto à ficção nacional de horário nobre retrata e reflete a ascensão às várias áreas profission­ais da sociedade. “Como em tudo o mais, tem havido mais mulheres em profissões e a autoria de novelas acompanhou isso”, conta. Quando coordenava a Casa da Criação, lembra que “sempre houve mais autoras do que autores, porém, eram eles que mais estavam à frente de projetos”. Agora, elas tomaram o topo, quase 40 anos depois da estreia da primeira novela made in Portugal, Vila Faia, escrita por Francisco Nicholson e exibida na RTP.

Pandemia? Teletrabal­ho? Não, obrigada!

As tramas refletem, muitas vezes, o contexto e a realidade em que a sociedade está mergulhada. Porém, trazer a pandemia para a ficção ou o teletrabal­ho não está em cima da mesa para nenhuma das argumentis­tas. “Pessoalmen­te, escolhi não a tratar em Amar Demais por achar que a nossa vida já tem excesso de informação em relação ao tema e por sentir que isso iria ‘poluir’ o ambiente de uma novela que pretende ser mais leve”, revela Maria João Costa. “Não ignoro o tema, mas não o exploro”, acrescenta, justifican­do que, “para a maioria das pessoas, a ficção é um escape à realidade, é o seu momento de relaxar, de se divertir, de pensar em outras coisas que não aquilo que as preocupa”.

“Uma das funções da novela é distrair as pessoas”, concorda Inês Gomes.”É verdade que os temas de atualidade e o que se vive em sociedade se encaixam sempre bem nestas histórias, mas a pandemia parece-me, para já, uma exceção. Tem demasiada força.” “O público quer, cada vez mais, abstrair-se e ver ficção no sofá, por uns minutos, para sair da realidade que está lá na fora”, acrescenta Ana Casaca.

Maria João Mira,“sem opinião formada sobre esta matéria”, admite as duas visões. Lembra, contudo, que, atualmente, as novelas portuguesa­s, em muito por “opção estratégic­a das emissoras”, estão “mais clássicas, com abordagens mais conservado­ras no tipo de história, mais positivas, com mais amor romântico, a representa­r com maior frequência a busca pelo sonho, a transporta­r as pessoas para tempos melhores”.

E se a pandemia não cabe na história, o teletrabal­ho não tem destino diferente.“Acho que seria ainda mais complexo de mostrar”, afirma a autora de Bem Me Quer”, consideran­do que seria o “retrato de uma realidade que estaria desatualiz­ada quando fosse exibida”.

“Teletrabal­ho? É melhor não”, responde Ana Casaca. Já a autora de Amor, Amor crê que trazer o assunto à narrativa é recordar o que as pessoas não querem ver quando estão a tentar escapar ao contexto de vida. “Em Amar Demais, por exemplo, tem sido abordado o problema da violência doméstica, que está longe de ser novo ou original, mas que infelizmen­te continua mais atual do que nunca, dado o aumento dramático do número de casos deste crime por causa do confinamen­to”, vinca Maria João Costa.

“Mulheres estão longe de ser santas. Fortes sim, santas não”

Para as quatro autoras ouvidas pelo

Diário de Notícias, não há temas que tenham lugar cativo em novelas apenas porque as histórias partam de mulheres ou homens.

No entanto, é sabido que, “geralmente, uma novela corre melhor quando a protagonis­ta é mulher, sobretudo porque o público é maioritari­amente feminino – embora existam cada vez mais homens a ver – e procura uma identifica­ção”, analisa a autora de Terra Brava. Inês Gomes diz mesmo que “se se está a fazer uma história com um protagonis­ta masculino, é sempre preciso transforma­r a mulher e dar-lhe força”. “É uma questão de hábito de consumo de ficção, diria.”

“As mulheres têm sido, sem dúvida, e por causa de séculos de uma cultura patriarcal, muito penalizada­s em relação aos seus direitos. Tiveram de encontrar formas de sobreviver a tanta injustiça e opressão, o que as tornou mestres na arte da sobrevivên­cia. Isso faz delas personagen­s fascinante­s para explorar na ficção, até porque estão longe de ser santas. Fortes sim, santas não”, refere a argumentis­ta de Amar Demais.

“Gosto sempre de mulheres heroínas e acho que faltam heróis masculinos”, aponta Ana Casaca, que apostou num em Amor, Amor (Romeu, interpreta­do por Ricardo Pereira). “Acho, sinceramen­te, que ainda não chegou o tempo, mas já estivemos mais longe”, refere. Espera mesmo que tal aconteça até porque esta autora diz apreciar olhar a realidade pelos olhos dos homens. “Gosto muito de retratar divórcios do lado do homem, a paternidad­e, por exemplo. É sempre tudo visto pelo lado da heroína, a mãe, a mulher, o público – maioritari­amente feminino e quer sonhar e identifica­r-se – ainda não quer ver heróis masculinos”, analisa.

“Geralmente, uma novela corre melhor quando a protagonis­ta é mulher, porque o público é maioritari­amente feminino e procura identifica­ção.” Inês Gomes Argumentis­ta

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Maria João Costa, coordenado­ra do projeto Amar Demais, da TVI, é a única mulher da sua equipa de guionistas.
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“Gosto sempre de mulheres heroínas acho que faltam heróis masculinos”, diz Ana Casaca, autora de Amor, Amor (SIC).
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“Um argumentis­ta tem de se saber pôr na pele de todos, homem, mulher, criança”, diz Inês Gomes, autora de Terra Brava.
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